Consórcio do crime: como o monopólio do 'jogo do bicho' uniu empresários à cúpula de facção no Ceará

Até a próxima quinta-feira (27), o Diário do Nordeste veicula a série de reportagens 'Consórcio do Crime': Apostas fora da lei

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
consorcio do crime
Legenda: Dentro do esquema, ameaças aos populares e a movimentação de, pelo menos, R$ 25 milhões deram o 'tom' do que os investigadores trataram como um 'consórcio do crime'.
Foto: Arquivo

De avisos ameaçadores disseminados por uma facção ao processo de lavagem de dinheiro com a distribuição de valores milionários para fomentar o 'mundo do crime' no Estado do Ceará. Há duas semanas, a Polícia Civil do Ceará desarticulou um esquema grandioso, que uniu a alta cúpula de uma facção carioca a empresários cearenses. A defesa dos empresários nega os crimes.

A reportagem do Diário do Nordeste teve acesso a documentos com a trajetória da investigação que culminou na deflagração da 'Operação Saturnália' para combater o 'monopólio do jogo do bicho' no Estado e demais crimes relacionados com a prática.

Dentro do esquema, ameaças aos populares e a movimentação de, pelo menos, R$ 25 milhões deram o 'tom' do que os investigadores trataram como um 'consórcio do crime'. Oito mandados de prisão foram expedidos. Um dos alvos permanece foragido, estando no Rio de Janeiro sob o apoio de outros membros da cúpula da organização. O outro foragido é um advogado.
 

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QUEM SÃO OS ALVOS DA OPERAÇÃO SATURNÁLIA

  • Douglas Honorato Alves - líder da facção carioca no Ceará. Ocupou a posição após a prisão de Max Miliano Machado da Silva. Está foragido, no Rio de Janeiro
     
  • Paulo Roberto Soares Sampaio - já responde por homicídio, associação criminosa, porte de arma de fogo e receptação. Lidava diretamente com Honorato
     
  • Alisson Robério Morais Pereira - Conhecido como 'Mourão' determinava a prática de crimes em nome da facção, a benefício da loteria parceira da facção. Ordenava o fechamento das concorrentes
     
  • Marco Antônio Bastos Gomes - Sócio administrador da loteria, empresário.
     
  • João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças - empresário e sócio da loteria.
     
  • Márcio José de Lima Souto - 'Testa de ferro' na loteria, homem de confiança da empresa que lidava diretamente com a facção, sendo usado como meio de blindar os reais. Articulador entre os dois núcleos da aliança
     
  • Leonardo Aragão Bernardo - Advogado no Ceará. Seu nome surge a partir dos prints em conversas com Douglas. Suspeito de se valer da função para levar e trazer recados da facção. Permanece foragido.
     
  • Paulo Laércio Bastos Gomes. Ex-sócio da loteria, desvinculando-se aparentemente após a aliança com a facção, mas as investigações apontam que ele continua exercendo gerência 

 

esquema monopolio jogo
Legenda: Em um dos documentos obtido pela reportagem há que participantes do esquema fizeram uma ligação entre si no dia 19 de abril de 2022
Foto: Reprodução

 
A investigação, que culminou na operação batizada de “Saturnália”, teria iniciado a partir de uma reportagem do Diário do Nordeste, que noticiava: "Ameaças e cobranças milionárias: monopólio do 'jogo do bicho' junto a facção é investigado no Ceará".
 
O delegado titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas do Ceará (Draco), Kléver Farias, conta que Douglas já vinha sendo investigado como uma das principais lideranças desse grupo criminoso.
 
Já o advogado, “fazia uma espécie de gerenciamento, intermédio com os sócios da loteria e os membros da facção, participando ativamente na determinação de fechamento de casas e na exploração do jogo do bicho em si”, conforme Kléver.
 
A defesa de Marco Antônio, João Victor e Paulo Laércio disse que eles  já foram interrogados e prestaram relevantes esclarecimentos à Autoridade Policial, os quais estão sendo aprofundados pela atuação da defesa e "revelarão que as suspeitas que ainda recaem sobre si decorrem de incompreensões e de duelos de narrativas fomentadas por desafetos e concorrentes".

"De todo modo, não obstante o elevado respeito que se nutre pela Polícia Civil e pelo Poder Judiciário, a prisão preventiva estabelecida é absolutamente desnecessária, uma vez que as diligências de busca e apreensão realizadas coletaram os elementos informativos considerados úteis à elucidação dos fatos, além de terem sido bloqueados diversos bens dos investigados. Assim, esperamos que os pedidos de revogação da segregação cautelar dos nossos constituintes, formulados junto ao juízo de primeiro grau e ao Tribunal de Justiça, sejam deferidos, de forma que permaneça absolutamente preservada a continuidade da persecução penal, a qual revelará o total alheamento destes em relação aos supostos crimes apurados", disse a defesa do trio.

A reportagem também contactou a defesa do investigado Márcio José, que disse não querer se posicionar até o momento. Os demais não foram localizados.

COMO A POLÍCIA CIVIL CHEGOU AOS SUSPEITOS

No segundo semestre de 2021, a Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco) passou a receber informações a respeito de ações criminosas contra casas lotéricas em diversas regiões do Ceará. Os investigadores aprofundaram as análises e verificaram a existência de uma espécie de consórcio entre a alta cúpula de uma facção de origem carioca e um grupo de donos de casas de apostas, os quais estipularam quais bancas poderiam funcionar em cada local", conforme relatório da PCCE.
 
Em menos de 30 dias foram distribuídos seis comunicados de facções (conhecidos como 'salves' ameaçando populares. Acionamento do policiamento ostensivo seguido de boletins de ocorrência comprovaram as ameaças:  "Após a disseminação das ameaças contidas nos informativos supramencionados, verificou-se a execução de atos de violência, tendo havido duas ocasiões distintas de incêndio".
 

O QUE DIZIAM OS AVISOS


 PRIMEIRO TRECHO DO AVISO (22 de setembro de 2021)

"Todos os cambistas , gerentes e motoqueiros que querem resguardar a suas vidas , que procurem outra banca para trabalhar , pois a partir desse informativo o funcionário dessas bancas que desacreditar vai morrer se trabalhar nessas bancas , e está sujeito a perder tudo que tem em áreas nossas se caso desacreditar é tentar ludibriar nós
 Não é o que queremos , porém será necessário para que os nossos inimigos não se fortaleçam contra nós" (sic)
 
SEGUNDO AVISO (28 de setembro de 2021)
"RAPAZIADA ELES DESACREDITOU VOCÊS PEGAM OS CAMBISTAS NA BALA E TACA FOGO NAS BANCAS. Todas essas bancas tem que ser brecadas imediatamente. Todos os donos e frentes das áreas botem para gerar nesses apoiadores de alemão" (sic)

TERCEIRO AVISO - 07/10/2021
"Viemos comunicar a todos nossos integrantes que como forma de boa fé a pedido de algumas pessoas muito respeitadas por nós resolvemos avaliar a situação das bancas de jogo no Ceará para que possamos analisar MINUCIOSAMENTE a participação de cada banca em grave situações que foi nos relatado . E também a pedido de algumas pessoas que trabalham com jogo e estão passando necessidades por falta de emprego , nós vamos deixar todas as bancas voltar a trabalhar por 10 dias.

QUARTO AVISO - 15/10/2021
"Se for comprovado alguma coisa vão perder o direito definitivo de trabalhar em áreas nossas , aproveitem a oportunidade, pois quando a porta se fechar não irá abrir novamente não" (sic)
 
QUINTO AVISO -18/10/2021
"Parar de vez essas bancas. Se não fica sem emprego" (sic)
 
SEXTO AVISO - 20/10/2021

"TODAS ESSA BANCAS ACIMA ESTÁ BRECADAS E TODA MAQUINETA QUE TROUXEREM. DESSAS EMPRESAS CITADOS OS NOMES PAGAREMOS $200 REAIS POR CADA. MÁQUINA DE JOGO" (sic)
 
A Polícia deu início a uma operação sigilosa com autorização de interceptações de comunicações telefônicas para apurar os crimes de extorsão,  organização criminosa e lavagem de dinheiro por empresas que atuam no ramo de loterias e, paralelamente, no jogo do bicho e integrantes da facção criminosa.

faccao jogo do bicho
Legenda: Facção recebia pelo menos 20% dos valores arrecadados nas áreas dominadas
Foto: Reprodução

 
Em agosto de 2022 os investigadores apresentaram relatório ao Judiciário, pedindo deferimento dos mandados de prisão, mandados de busca e apreensão e autorização para extração de informações dos celulares interceptados. No dia 3 de outubro o magistrado da Vara de Delitos de Organizações Criminosas deferiu os pedidos.

 
O MOMENTO DAS PRISÕES

No último dia 13 de outubro os mandados foram cumpridos em diversos pontos do Estado, dentre eles em um condomínio de luxo na Capital. Foram apreendidos 17 veículos (avaliados em quase R$ 5 milhões), cerca de R$ 800 mil em espécie, joias, armas de fogo, documentos, computadores, maquinetas e cadernos de contabilidade.

apreensao carros jogo do bicho
Legenda: Foram apreendidos 17 carros, dentre eles veículos de luxo
Foto: Divulgação/PCCE

 
"Há mais ou menos um ano, a nossa Inteligência detectou que a facção criminosa oriunda do Rio de Janeiro estava buscando aliança com exploradores do 'jogo do bicho' aqui no Estado, como forma de obter recursos financeiros"
Sandro Caron
Secretário da SSPDS


O valor milionário repassado à facção representava cerca de 20% do faturamento do "jogo do bicho".

 
Kléver Farias destaca que os criminosos perceberam no ‘jogo do bicho’ uma forma de enriquecimento rápida atrelada a um método menos arriscado “do que o próprio tráfico de drogas”.
 
“A partir do momento que eles fazem a inserção do dinheiro do jogo do bicho, geram mais renda na facção. O modus operandi permanece o mesmo, que é justamente impor a vontade através da força”
Kléver Farias
Delegado titular da Draco


A PARTICIPAÇÃO DE POLICIAIS

A possível participação de policiais no esquema permanece sob apuração. O que se sabe até o momento é que os agentes, principalmente aqueles da reserva, prestam serviço de segurança aos empresários e às próprias casas lotéricas. 

A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) informa que existem 6 procedimentos disciplinares instaurados para a devida apuração de agentes da Segurança Pública envolvidos com jogo do bicho, que permanecem em trâmite. 
 
Um PM foi preso por portar irregularmente uma arma, mas solto ao pagar fiança. A reportagem apurou que pelo menos outros cinco militares estavam no prédio abordado, mas não havia crime que configurasse flagrante, nem mandado de prisão expedido para eles.

 "Até o momento esse foi o único que realmente verificamos. Com a análise dos objetos que foram apreendidos, sem sombra de dúvidas, vai ser feita uma investigação a respeito disso. Se eventualmente se comprove a prática por parte de policiais, com certeza vão sofrer as penalidades da lei", diz o titular da Draco, se referindo ao militar detido.

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