Projeto que reconhece templos religiosos como essenciais em Fortaleza pode gerar conflitos
Não há previsão legal no âmbito estadual deste reconhecimento, o que abre caminho para questionamentos, alertam juristas
O projeto de lei que reconhece igrejas e templos religiosos de qualquer culto como atividade essencial em Fortaleza pode gerar conflito com a legislação Estadual. Como não há a mesma previsão no âmbito do Ceará, a medida pode ser alvo de questionamentos. É o que apontam juristas. O principal ponto de impasse é sobre a aplicação da medida em caso de situações mais graves da pandemia, tendo em vista que os decretos municipais com restrições sanitárias seguem o estadual - e nesse último caso, o funcionamento dos equipamentos religiosos não é considerado atividade essencial.
De autoria do vereador Ronaldo Martins (Republicanos), a matéria foi aprovada na quarta-feira (18) com apoio de parte da base do prefeito Sarto Nogueira (PDT). Foram 27 votos favoráveis e três abstenções. Com a deliberação da Casa, o projeto seguiu para sanção do chefe do Executivo municipal, que pode sancioná-lo ou vetá-lo.
O projeto de lei estabelece "igrejas e templos de qualquer culto como atividade essencial em períodos de calamidade pública no município de Fortaleza, sendo vedada a determinação de fechamento total de tais locais". A proposta permite, no entanto, a limitação do número de pessoas presentes nesses espaços, "de acordo com a gravidade da situação e desde que por decisão devidamente fundamentada da autoridade competente". Além disso, a medida também prevê regulamentação da lei por parte do Poder Executivo.
"Bom senso"
Para o presidente da Ordem dos Advogados Brasil secção Ceará (OAB-CE), Erinaldo Dantas, a medida poderia causar conflitos se houvesse um entendimento claro do Estado de que as igrejas e templos não podem abrir. O que, para ele, não é o caso.
"O que eu entendo é que as igrejas poderão permanecer abertas para o fiel poder entrar e seguir a crença dele. Mas que ele vai ter que seguir os protocolos de segurança sanitária. Pode abrir, mas não pode cultos com aglomerações. Pode abrir obedecendo às restrições estabelecidas pelo Estado. É ter uma dose de bom senso. Não vejo um conflito jurídico nessa ordem, a não ser que o Estado entenda que, mesmo com a lei municipal, as igrejas não podem abrir. O que não parece ser", afirmou
Ele ressalta, ainda, que a se a norma puder ter mais detalhes será melhor, já que algumas pessoas "tentam encontrar alguma forma para fazer do jeito que acham que é o certo". "O fundamental é o controle sanitário rigoroso", acrescentou, salientando que para muitas pessoas os espaços de fé são essenciais para manter a sanidade mental.
Saia justa
O professor de Direito Constitucional e também membro da OAB-CE Fernandes Neto também reconhece a importância dos templos e igrejas, mas acredita que a medida pode gerar conflito entre os decretos dos entes federados, já que o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano passado, confirmou a autonomia dos estados, Distrito Federal e dos municípios na tomada de decisões de medidas administrativas e normativas no combate à Covid-19. Naquela ocasião, o Governo Federal havia estabelecido, por decreto, atividade religiosa de qualquer natureza como essencial, em meio à pressão de igrejas e da bancada evangélica.
"Se o prefeito sancionar, vai haver um confronto entre os decretos dos entes. Mas aí valeria a questão municipal, no meu entendimento, considerando a decisão do Supremo. Eu acho, no entanto, que politicamente não ocorrerá, porque o prefeito deve se unir ao governador. Se Fortaleza divergir, outros municípios podem questionar o Estado e pode ser um precedente perigoso para que os municípios no interior começar a decidir o que é e o que não é atividade essencial. Já que outras cidades poderiam deliberar sobre isso e definir igrejas e templos religiosos como atividade essencial", pondera Fernandes Neto.
Para ele, inclusive, a decisão da Câmara foi unicamente política e coloca o prefeito em uma saia justa. "Se ele vetar, será uma medida muito antipática perante o eleitorado religioso. Se ele aprovar, vai ter uma disparidade entre os religiosos e não-religiosos. É algo muito subjetivo, porque para uma pessoa religiosa, pode ser essencial. Para um não-religioso, pode não ser. Precisa ser avaliado do ponto de Constitucional, e constitucionalmente não é um serviço essencial, como saúde, alimentação", frisa.
A Prefeitura de Fortaleza foi procurada, mas disse apenas que a Procuradoria Geral do Município ainda não recebeu o projeto.
Divergências políticas
Autor da matéria, o vereador Ronaldo Martins salienta que as autoridades sanitárias podem impor restrições no número de pessoas presentes nos locais, justamente para impedir eventuais aglomerações. Ele justifica, no entanto, que os locais não podem é ficar fechados, por servirem de amparo para diversas camadas da população.
"Nesse período de pandemia, as igrejas tiveram um papel fundamental e estão tendo nesse período de calamidade. Pessoas desempregadas, pais de famílias desesperados se dirigem a elas. Então, são vários voluntários que arrecadam alimentos, que ajudam pessoas que estão desempregadas, passando fome, com dificuldade, pessoas que tentaram suicídio, que estão em desespero... E eu vejo que a igreja fechada é um prejuízo", defende.
Contrário à medida, o vereador Guilherme Sampaio (PT) fez algumas ponderações sobre a matéria no dia da votação dela em plenário, na quinta (18). Ele pediu, ainda, que o projeto fosse retirado de pauta para ser melhor analisado.
"Não tem nada mais essencial do que alimentar a espiritualidade. Igrejas e religiões são os instrumentos que a gente se utiliza para isso. Mas é outra discussão considerar a atividade essencial do ponto de vista de que tem que funcionar para a sociedade minimante sobreviver. Neste sentido e numa pandemia, isso não pode ser considerado estritamente uma atividade essencial. A Câmara se excedeu e faltou prudência na apreciação rápida dessa matéria sem uma discussão maior", afirmou.
Funcionamento
Conforme o decreto do Governo do Estado publicado na quarta-feira (17), as igrejas e templos religiosos do Ceará podem funcionar todos os dias até 20h. O horário reduzido segue até o próximo dia 28.