Pesquisas evidenciam casos de automutilação em escolas da Capital

Estudos acadêmicos revelam dilemas emocionais e psicológicos de adolescentes, mas ainda não existem dados sistematizados na rede de ensino em Fortaleza; escolas e famílias devem ficar atentas aos sinais de sofrimentos

Escrito por Redação , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br

Cortes camuflados pelas roupas. Ainda que a tentativa seja de encobrir as situações de dores afetivas e mentais, o corpo as evidencia. Dilemas, sobretudo, de adolescentes, do gênero feminino, demonstrados em autoagressões. Embora formalmente as secretarias de Educação - municipal e estadual - ainda não tenham a sistematização de casos de automutilação, pesquisas acadêmicas feitas em escolas de Fortaleza, nos últimos anos, revelam que o problema está presente e cresce.

Pesquisadoras alertam que esse comportamento, em que o corpo é autoviolentado, evidencia dilemas emocionais e psicológicos. As escolas e as famílias precisam estabelecer mecanismos de acolhimento das dores desses jovens.

A situação não é isolada. Na pesquisa "O papel da educação para jovens afetados pela violência e outros riscos no Ceará e Rio Grande do Sul", realizada pela socióloga Miriam Abramovay, coordenadora de Estudos e Políticas sobre a Juventude da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), os relatos de automutilação surgiram espontaneamente na análise que nem sequer tinha esse foco.

"Quando eu percebi, ela estava toda cortada e não soube explicar porque fez aquilo", relata uma mãe (de identidade preservada) ao falar da filha de 14 anos. A adolescente não sabe descrever exatamente o que a motivou a se cortar, mas fala em tristeza, angústia, dor... Descarregadas no próprio corpo. O caso não teve registro na escola, muito menos no conselho tutelar. Um misto de desinformação e susto marcou essa experiência.

"Nós trabalhamos o tema da violência desde 2002. Essa questão da automutilação nunca tinha aparecido. É recente. O trabalho consistia em fazer uma pesquisa de campo e depois fazer uma proposta de plano de ação. Quando nós começamos a fazer a pesquisa, eles começaram a contar casos de automutilação, não falando deles mesmos, mas depois sim", explica.

Falta de diálogo

A pesquisa feita entre 2016 e 2017, explica a professora, ouviu relatos de infelicidade e falta de diálogo, seja com a escola, com a família e até com os amigos. A investigação, conta Miriam, além de Fortaleza, incluiu escolas de Porto Alegre. As cidades têm aspectos bastante diferentes, mas dilemas similares. "Apesar das especificidades e diferenças, a juventude tem questões comuns, esteja ela onde estiver".

De acordo com Miriam, os relatos dos adolescentes reiteram a literatura científica. "A automutilação é uma forma de os jovens sentirem que eles existem nesse mundo. É forma de evitar o suicídio. Isso era exatamente o discurso desses meninos e meninas. Tanto que, em Porto Alegre, depois do trabalho realizado por nós, um menino e uma menina entregaram o chamado kit mutilação ao professor que começou a participar das ações".

Em abril, o Governo Federal sancionou a Lei 13.819 que cria a Política de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. A norma estabelece a notificação compulsória de casos de automutilação em escolas e hospitais e obriga esse tipo de instituição a acionar imediatamente os conselhos tutelares.

Hoje, nos oito conselhos tutelares de Fortaleza não existe um quantitativo específico desta violação. Segundo a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), ela pode está inserida em conflito familiar ou situação de risco. Como os conselhos tutelares são independentes, a Funci diz não ter domínio dos dados

Conflito

A psicóloga escolar Lorena Lopes, em sua pesquisa de mestrado defendida em 2017, fez a escuta analítica de adolescentes que praticaram automutilação em Fortaleza. Conforme Lorena, que atende em uma rede particular de ensino, cinco adolescentes do gênero feminino, entre 15 e 17 anos, foram ouvidas.

As entrevistadas alegaram passar por conflitos familiares e estarem com problemas em relações afetivas. "A gente percebe que era uma forma de alívio. Elas praticavam a automutilação para aliviar algo emocional em uma dor física. É uma forma de escoar a tensão emocional".

Para a psicóloga, um dos caminhos de ajuda para os adolescentes é apostar na escuta qualificada. "Uma das adolescentes, toda vez que vinha a vontade de praticar o corte, ela escrevia cartas e me levava essas cartas. Foi a forma encontrada por nós nos atendimentos. Quando elas começaram a falar, isso ia se organizando na cabeça delas", diz.

O apoio psicológico nas escolas é um fator fundamental para auxiliar esses casos. De acordo com ela, esse tipo de comportamento pode ser sinal de um quadro psiquiátrico mais acentuado, mas pode também indicar dilemas emocionais momentâneos.

A pesquisadora Miriam Abramovay reitera e indica ainda que é necessário criar programas de convivência escolar que agreguem a participação dos estudantes. "Vimos que onde eles (adolescentes) desenvolveram programas, eles sentiram que eram alguém. Que eram importantes. Isso mudou a percepção deles sobre eles mesmos. Eles participavam. Diziam, agora não precisamos mais nos mutilar. Temos coisas mais importantes para fazer", exemplifica.

Projeto

Em Fortaleza, em 2018, o Ministério Público do Estado do Ceará criou o projeto Vidas Preservadas, o qual teve adesão das secretarias de Educação municipal e estadual. Conforme a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), o desenvolvimento do Projeto Professor Diretor de Turma e a contratação de psicólogos educacionais que fazem o acompanhamento das unidades de ensino são ações que podem ajudar a reverter essa situação.

Atualmente, 30 profissionais, distribuídos nas 20 Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação e nas três Superintendências das Escolas Estaduais de Fortaleza fazem atendimentos, segundo a Seduc. No âmbito do programa do MP, a Secretaria informa que está desenvolvendo também um projeto-piloto intitulado Guardiões da Vida, em algumas escolas da Capital em parceria com o Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

A Secretaria Municipal da Educação (SME) informa que também integra o projeto do MP e tem atuado na construção do Plano Municipal de Promoção em Saúde, Prevenção e Combate ao Suicídio de Fortaleza. Nesta ação, a Pasta está coletando dados acerca das ocorrências em saúde mental nas unidades da rede municipal. Os dados, destaca a SME, servirão para orientar a construção de políticas e ações a serem desenvolvidas diante das demandas apresentadas.

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