Dez bairros com mais mortes por Covid-19 estão na periferia de Fortaleza

Na Barra do Ceará, o número de mortes aumentou em mais de sete vezes em menos de um mês, indo de seis para 45; avanço dos óbitos nas áreas pobres escancara abismo socioeconômico em Fortaleza

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

A Covid-19 pode até não escolher raça, gênero nem classe social, como muitos dizem, mas as mortes pela doença, pelo menos em Fortaleza, têm tido alvo certo: as áreas pobres da cidade. Seja pela impossibilidade de isolamento em moradias precárias, seja pela falta de acesso à saúde pública, o número de casos confirmados e de mortes rapidamente migrou da zona rica às mais vulneráveis. Hoje, dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) escancaram o abismo socioeconômico: dos dez bairros com mais mortes pela doença pandêmica, todos estão na periferia.

O novo coronavírus entrou pelas portas do Meireles e da Aldeota, na Regional II, que no primeiro boletim divulgado pela SMS, em 15 de abril, tinham 179 e 139 confirmações da doença, e eram seguidos por Cocó (65), Fátima (42) e Dionísio Torres (39), também considerados de alto padrão. Na lista dos dez mais infectados, à época, todos estavam entre os maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza.

As mortes, contudo, já indicavam um caminho inverso. Apesar de, no referido boletim, contar com "apenas" 21 casos confirmados de Covid-19, a Barra do Ceará já ocupava a segunda posição em número de óbitos (6), atrás apenas do Meireles (7). Entre os dez maiores registros, estavam ainda Fátima (5), Aldeota, Cristo Redentor, Vicente Pinzón, José Walter e Jangurussu, cada um com quatro perdas confirmadas.

O relatório mais recente de casos e óbitos pelo novo coronavírus em Fortaleza foi divulgado nessa quarta-feira (13) pela SMS, e consolidou a conclusão infeliz de que a pandemia se somou aos já incontáveis castigos vivenciados pela pobreza na Capital. Apesar de não detalhar o número de confirmações por bairros, o boletim mostrou um crescimento exponencial dos óbitos em locais vulneráveis: a Barra do Ceará, por exemplo, aumentou em 7,5 vezes o número de mortes em menos de um mês, passando de seis para 45.

O segundo bairro com mais óbitos é o Vicente Pinzón (35), que apesar de ser vizinho de Meireles, Aldeota e Varjota, amarga um dos piores IDHs da Cidade. A lista dos dez pontos com maiores números de mortes por Covid-19 segue com Cristo Redentor (31), Cais do Porto (25), Vila Velha, Carlito Pamplona, Granja Lisboa (22 cada), Quintino Cunha, Planalto Ayrton Sena e José Walter (20 cada). Meireles, a título de comparação, tem 19 mortes, igualado a Mondubim e São João do Tauape. Já a Aldeota tem 18, junto com o Álvaro Weyne.

Isolamento

Quem vivencia os possíveis fatores para essa invasão do novo coronavírus à periferia é a líder comunitária Angela Maria de Sousa, de 67 anos, moradora da comunidade Raízes da Praia, no Vicente Pinzón. Ela relata que agente de saúde e água potável "só agora, depois da ação da Defensoria (Pública do Estado)". Além disso, afirma que "é impossível se isolar". "Estamos naquela pressão, uns com medo dos outros. Já perdemos duas pessoas, e tem mais doentes. Tem um senhor que mora com mais seis na mesma casa, só um vão com um banheiro. O pessoal é carente, não tem estrutura, os barracos são tudo de tábua, poucos de tijolo", descreve Angela.

O déficit habitacional e a ausência de ações de assistência social são decisivos para o avanço da pandemia, avalia Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria. "Uma necessidade grave é garantir o isolamento não só preventivo, mas após o diagnóstico da pessoa. Quando o posto de saúde vê que não é caso de internação, esquece de que muitos não têm condições de cumprir a quarentena" pontua.

O infectologista Robério Leite aponta que "o sistema de saúde já está com menos capacidade de dar resposta, e isso pode explicar o aumento de óbitos na periferia, que tem pouco acesso à saúde. Isso era inevitável, reflete a sociedade que nós criamos". Ele menciona ainda a falta de saneamento.

"Temos uma doença que transmite por gotículas, superfícies, mãos. Com pouca higienização, a taxa de contaminação tende a ser maior nesses locais".

Além da atenção em saúde, a defensora pública Mariana Lobo define as assistências social e econômica como cruciais. "Temos uma precariedade tanto no saneamento básico como na política habitacional, por exemplo. É preciso que a assistência social atue na ponta, esteja nessas comunidades para identificar os problemas, orientar, diagnosticar os locais mais vulneráveis e quem são os grupos de risco, para que exista uma retaguarda diante da Covid-19", analisa.

Em debate online organizado pela Defensoria, na última segunda-feira (11), o gerente da Vigilância Epidemiológica de Fortaleza, Antônio Lima, destacou como "raridade" o fato de uma doença altamente transmissível atingir primeiro a área nobre e depois migrar à periferia. "Nossa questão social é histórica. Em comunidades de baixo poder aquisitivo, habitações precárias, muitos habitantes por domicílio, casas sem janela, sem acesso à água potável, o isolamento se torna muito mais complexo do que em áreas nobres da cidade, em que se pode estar em casa com internet, alimentos providenciados, e não precisa estar preocupado com a sua sobrevivência", listou.

Ações

Ao mencionar o auxílio emergencial concedido pelo Governo Federal, Antônio também alertou para a necessidade de fortalecer a rede de proteção social e de executar o lockdown.

"As epidemias têm essa capacidade de revelar e potencializar as nossas desigualdades sociais e econômicas. E estamos vendo isso agora em Fortaleza e no interior, uma velocidade de propagação muito elevadas em áreas de densidade demográfica muito alta. Sobretudo no Pirambu, Cais do Porto, Serviluz, e descendo pra áreas mais vulneráveis. É uma pressão grande no sistema, reforçando a necessidade de isolamento social rígido".

Questionada sobre as ações desenvolvidas na periferia de Fortaleza para combate e prevenção ao novo coronavírus, a SMS informou que, dentre outras ações, a Prefeitura mantém as visitas domiciliares dos Agentes Comunitários de Saúde prioritariamente aos pacientes que são do grupo de risco (acamados, gestantes, puérpera até 45 dias pós-parto, idosos e pessoas com comorbidades). Esses profissionais, relata a pasta, fizeram mais de 1.300 visitas durante o período de isolamento social e identificaram 201 casos suspeitos.

Outra medida é a circulação de caminhões pulverizadores iniciada no dia 20 de abril, que jorram uma cortina de solução bactericida por cerca de 10 metros por onde passa. Até o momento, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, o veículo e as equipes já percorreram vias em todas as regionais, em mais de 80 bairros e suas adjacências. Dentre eles, estão oito dos 10 bairros que mais registram mortes. A exceção são Cais do Porto e Vila Velha.

A SMS destacou, ainda, a distribuição de cestas básicas, na primeira etapa, destinadas a alguns profissionais autônomos e a beneficiários do Bolsa Família. Mas, segundo a pasta, até quarta-feira (13), apenas 40% do público contemplado foi alcançado pela busca telefônica realizada pela Prefeitura. Outra ação voltada à periferia é a disponibilização de renda auxiliar para feirantes, autônomos e ambulantes cadastrados junto à Prefeitura. O benefício é de 100 reais mensais.

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