Independente do horário, academias cheias. O tempo de funcionamento foi ampliado até a madrugada, com a multiplicação de centros 24 horas. O mercado fitness vive uma expansão no Brasil, com cerca de R$12 bilhões movimentados só em 2024, segundo a consultoria Credence Research. Mas um fenômeno silencioso acompanha esse movimento: o de pessoas que fazem exercícios, mas desgostam do próprio corpo.

A “geração saúde”, que frequenta as academias, vive num contexto fortemente influenciado pelas redes sociais: segue dicas de exercícios para aumentar o bíceps, a dieta do momento para secar a barriga, o melhor procedimento para corrigir o nariz… Mas, muitas vezes, negligencia a própria saúde mental. 

“Minha vida seria infinitamente melhor se eu não precisasse treinar até não aguentar mais, só para ver se consigo gostar minimamente de mim mesmo e para esconder que eu não queria ser grande, mas sim magro o suficiente para usar camisa P e calça 36”.

O desabafo do jovem estudante pernambucano Yan*, de 17 anos, está exposto em um de seus perfis na internet. Mesmo praticando musculação quatro vezes na semana, ele permanece insatisfeito diante do espelho.

“A musculação me ajudou com questões que antes me traziam insegurança. Mas, com o tempo, também trouxe a dismorfia corporal”, relata à reportagem. “Me faz sempre pensar que, não importa o que eu faça, meu corpo sempre é insuficiente”.

Mas, afinal, até que ponto esse desejo de “melhorar” o corpo é saudável? Quando ele passa do limite e pode se transformar no sofrimento psíquico chamado de Transtorno Dismórfico Corporal (TDC)?

Nesta reportagem especial, o Diário do Nordeste conversou com jovens insatisfeitos com a própria aparência e com profissionais especializados no assunto, para discutir a convivência saudável consigo mesmo dentro da perspectiva da saúde mental.

Corpo desfeito

No caso de Yan, os problemas corporais surgiram ainda na infância. Além do ganho de peso, alguns traumas o levaram “a descontar as emoções na comida” – único escape que lhe trazia conforto. No entanto, isso colaborou para que o jovem se veja, até hoje, de forma negativa.

“Acabei desenvolvendo em mim uma ansiedade social, baseada na percepção de que as outras pessoas me viam da mesma maneira que eu me vejo. Essa relação piorou com o tempo e criou um ambiente interno de auto-ódio”, revela.

Para lidar com os dilemas internos, Yan faz acompanhamento psicológico, mas ainda enxerga um caminho “difícil” para desconstruir um padrão de pensamento que já está cimentado em seu modo de se ver no mundo.

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Segundo o médico cearense Caio Dias, psiquiatra com ênfase em saúde mental e bem-estar físico, o diagnóstico da dismorfia é desafiador porque o indivíduo, muitas vezes, não reconhece o problema como tal.

Porém, aponta, ele é mais comum em adultos jovens devido à fase de inseguranças e à influência das redes sociais, que promovem comparações irreais entre a realidade e os corpos das telas. 

Fátima Vasques, psicóloga voluntária do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim), vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a distorção de imagem atrela a satisfação do indivíduo a uma mudança no corpo – porém, ela não ocorre na prática.

“Alguém diz: ‘não gosto do meu nariz, mas se eu melhorar, vou ser feliz’. Ele condiciona o bem-estar a isso. Mas, quando ‘faz’ o nariz, percebe que não muda nada. A vida em si não muda, mas ele expõe o dado corpóreo como um juízo de valor em relação a isso”, exemplifica.

Especial

O que é dismorfia corporal?

A dismorfia corporal e o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) estão relacionados à forma como uma pessoa percebe o próprio corpo, mas há diferenças entre as duas condições.

A dismorfia corporal é um termo mais amplo utilizado para descrever a insatisfação com a aparência. Ele está ligado à distorção da autoimagem, ainda que ela não interfira de forma grave na vida dos pacientes (exemplo: achar o próprio nariz feio, mesmo sendo considerado normal por outras pessoas).

Já o TDC é o diagnóstico clínico de um transtorno mental reconhecido pela psiquiatria, caracterizado por uma preocupação obsessiva e irracional com “defeitos” da aparência, capaz de afetar o dia a dia social, profissional e psicológico dos indivíduos.

A pessoa pode evitar se olhar no espelho ou sair de casa, buscar cirurgias desnecessárias ou desenvolver sintomas de ansiedade e depressão - as duas principais comorbidades relacionadas à condição, segundo Caio Dias e Fátima Vasques.

“A pessoa às vezes já tem um corpo legal, mas não se enxerga assim”, afirma o psiquiatra. “Por mais que você faça uma avaliação física e veja que os números estão compatíveis com um percentual de gordura mais baixo, ela não consegue compreender”. 

Jovem na academia fazendo exercício de ombros com halteres
Mulher de costas de regata branca, segurando halteres vermelhos na academia
Homem de camisa laranja treinando agilidade em cones na areia
Legenda: Nas redes sociais, reclamações sobre o corpo mesmo com rotina de exercícios se multiplicam
Foto: Fernanda Siebra/Helene Santos/JL Rosa

Apesar dos sinais conhecidos, confessados a amigos ou familiares ou publicados nas redes, os dados sobre o transtorno ainda carecem de sistematização. Diferentes estudos na literatura científica internacional mostram que, na população geral, a prevalência de TDC varia de 0,7% a 2,4%, acometendo uma maioria feminina.

Outras pesquisas indicam que esse percentual pode chegar a 12,5% em pacientes candidatos ou submetidos a cirurgias plásticas, também com prevalência de mulheres na faixa dos 30 anos.

Mesmo com a falta de informações, a psicóloga Fátima Vasques aponta que os homens também são acometidos sobretudo pela dismorfia muscular, cuja preocupação excessiva se dá sobre o tamanho e a forma dos músculos.

Nem mesmo o Ministério da Saúde (MS) possui estudos robustos sobre a condição. Procurado pela reportagem, o órgão não detalhou casos específicos de TDC entre 2020 e 2024 porque o Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) permite o registro de códigos diagnósticos somente até o terceiro dígito - e o transtorno está catalogado como F45.22. 

“Os dados que constam no SIA referentes à subcategoria F45.2 Transtorno hipocondríaco, uma forma de transtorno somatoforme (dentro da qual está o Transtorno Dismórfico Corporal), são de 13 casos em 2020, 9 em 2021, 11 em 2022, 6 em 2023 e 4 em 2024”, respondeu. 

Por isso, o MS aponta “baixa prevalência” do transtorno e sugere que os dados devem ser interpretados “considerando a interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais”.

O psiquiatra Caio Dias acredita que os números não devem ser tão baixos assim, mas pondera que eles são difíceis de mensurar porque podem ser interpretados como ansiedade. “O diagnóstico fica mais complicado por conta disso”, entende o profissional.

De fato, dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), triados e analisados pelo Diário do Nordeste, indicam que há um adoecimento mental e comportamental cada vez maior na faixa etária de 15 a 34 anos, relacionados sobretudo a transtornos ansiosos, neuróticos e de humor.

Segundo o monitoramento, há sucessivos aumentos anuais desde 2020, quando houve 25,7 mil internações por essas causas, em todo o País. Já em 2024, o número bateu 39 mil acolhimentos. Veja a situação em cada Estado:

“A ansiedade, até certo ponto, é normal e pode ser benéfica pra gente se preparar melhor para alguma situação. Se a gente ficasse totalmente indiferente, também não seria normal”, diferencia Caio. “Mas ela passa a ser um transtorno quando começa a atrapalhar, a causar algum tipo de sofrimento, ou prejuízo, ou quando a pessoa passa a sofrer com aquilo”.

Redes sociais: motor de frustração

Jamerson Filipe tem 33 anos e é personal trainer em Pernambuco. Enquanto profissional da área de academias, ele se cobra muito quanto à própria aparência e se descontenta até mesmo quando o emagrecimento foge ao seu controle. “Se eu pegar uma gripe, ou passar uma semana sem me alimentar direito e perder peso, vou ficar insatisfeito”, relata.

Assim como Yan, o medo do espelho tem um histórico negativo. Quando adolescente, Jamerson era “o mais magro da sala” e tinha problemas com escoliose e cifose. Para fugir do bullying, entrou no mundo da musculação aos 19 anos e, até hoje, mantém uma rotina de exercícios seis vezes na semana.

“Acredito que passei da fase de me comparar com o corpo dos outros. Criei maturidade e me sinto bem com meu corpo, mas não me vejo muito afastado da academia porque já me sentirei a pessoa mais magra do mundo”, confessa.

Jovem pratica atividade dando salto mortal na frente do pôr do sol
Homem alongando a perna, segurando o pé para trás. Ele usa um tênis verde e camiseta branca
Homem jovem de camisa azul levantando um halter em um treino de braço, com concentração no exercício
Legenda: Não só mulheres, mas também homens têm sentido aumento da pressão estética
Foto: João Luís/Agência Diário/Helene Santos

Já o estudante paulista Krad*, de 18 anos, continua sem se achar bonito mesmo fazendo academia. “No fim do dia, me sinto um pouco melhor, mas detesto meu corpo e ainda me acho feio pelado”, diz.

À reportagem, o jovem se descreveu como uma pessoa “horrível, patética e sem sal”. “Literalmente, consigo nomear/enxergar qualidades em todo mundo, menos em mim mesmo”, reflete, indicando passar por um momento de adaptações na rotina.

No começo, a academia me ajudou bastante, mas com o tempo, comecei a me pressionar a melhorar e ficar mais bonito. Mas cada vez mais, me vi ficando para trás e apenas regredindo.
Krad (nome fictício)
Estudante de 18 anos

Krad ainda não faz terapia, mas pensa “seriamente” em buscar ajuda. Enquanto isso, as inseguranças com o corpo são reforçadas pelo celular, “principalmente vendo várias pessoas bonitas só existindo nas redes sociais”.

Adones Pereira, profissional de educação física e personal trainer há mais de 15 anos, em Fortaleza, costuma receber fotos de quem os alunos querem ser: normalmente atores, atrizes, modelos ou fisiculturistas. “Eles querem muito entrar no corpo de alguém que idolatram como perfeito”.

Na observação cotidiana, ele percebe que isso afeta muito mais as mulheres, provavelmente pelo “padrão de beleza imposto pela TV, revistas e redes sociais”. Isso não impede que os homens também sejam “muito impactados pelo padrão para cuidar da aparência”.

“As redes sociais podem impactar positivamente pela adesão à prática de atividade física, mas negativamente pela frustração e raiva quando não se alcançam os resultados desejados”, reflete Adones. “As pessoas querem viver uma vida que não é a delas. Buscam se assemelhar a quem tem uma rotina totalmente diferente, tentam fazer as mesmas coisas, mas não entendem que são mundos distintos”. 

Outro papel danoso das redes, para a psicóloga Fátima Vasques, é que, mesmo que o indivíduo se perceba com dismorfia ou TDC, tenderá a buscar grupos que o aceitem e reforcem o mesmo discurso. “São outras pessoas que retroalimentam essas impressões, então ele se mantém na doença, no transtorno”, diz.

Especial

Como identificar a dismorfia corporal?

Primeiramente, é importante ressaltar a necessidade de um diagnóstico médico para isso. Porém, os profissionais consultados pela reportagem apontam alguns sinais de que você ou algum conhecido pode estar sofrendo de Transtorno Dismórfico Corporal:

  • Passar horas no espelho procurando supostos “defeitos”
  • Evitar fotos, espelhos ou eventos por se sentir feio(a)
  • Continuar insatisfeito(a) mesmo após procedimentos estéticos
  • Comparar-se obsessivamente com outras pessoas nas redes sociais
  • Achar que elogios são apenas gentileza de outras pessoas

Por outro lado, uma relação saudável com o próprio corpo envolve:

  • Entender que “beleza” não tem padrão e nem se liga a simetria ou juventude
  • Reduzir o tempo em redes sociais, para evitar o uso de filtros e comparações
  • Compreender que imperfeições fazem parte do ser humano
  • Buscar ajuda profissional para o tratamento

Jovem negro segurando uma prancha ao lado do corpo e olhando para o mar
Mulher negra espiando pela fresta de uma persiana branca
Homem musculoso de boné branco e regata preta faz exercício para ombros em frente a espelho de academia
Legenda: Apoio de profissionais é relevante para que jovens aprendam a lidar com diferenças e frustrações
Foto: Kid Jr./Camila Lima/Fabiane de Paula

Acolhimento é a saída

A universitária mineira Amanda*, 21, sabe bem como as comparações são danosas. Ela começou a tomar remédios para emagrecer aos 15 anos, com acompanhamento de um endocrinologista, e entrou na academia para acelerar o processo. Resultado: começou a fazer cardio em excesso, sem se alimentar direito, e desenvolveu anorexia.

Para a jovem, é “horrível” tratar psicologicamente as sequelas do transtorno alimentar porque se compara “a todo momento” com modelos de conteúdo fitness que consome na internet. Se, antes, elas eram um incentivo, agora reforçam o quanto ela está longe do perfil que considera magro.

“Atualmente, me enxergo da mesma forma que eu era na adolescência, mesmo tendo perdido metade daquele peso e praticando musculação 6 vezes na semana”, revela.

Amanda conta que, embora faça acompanhamento psicológico para a anorexia, “a distorção está sempre na minha mente”. Contudo, reconhece que, sem acompanhamento, viver com esse fardo seria ainda pior.

A conversa é um momento sagrado entre o profissional e o paciente. O que é falado ali não pode ser aberto para outras pessoas. Então, é um momento de segurança, de relaxamento, de poder se abrir.
Caio Dias
Psiquiatra

A psicóloga Fátima Vasques ressalta que a psicoterapia para esses casos normalmente se baseia na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), cujo foco é a autonomia do paciente para enfrentar situações desconfortáveis. 

O método, indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para transtorno de pânico e ansiedade, é relacionado à medicação com antidepressivos e ansiolíticos. 

“Esse indivíduo tem distorções cognitivas. Ele maximiza, abstrai seletivamente, se compara ou busca pessoas que confirmem aquilo que ele pensa sobre ele”, indica. “O intuito da TCC é fazer com que o indivíduo ressignifique esses contextos, se autoaceite naquilo que é e perceba que a única forma de transformação é se responsabilizar pela própria mudança”.

O psiquiatra Caio Dias completa: a ajuda profissional visa acolher o paciente sem julgamentos, oferecendo um espaço seguro e sigiloso para a reflexão e o direcionamento imparcial.

“Muitas vezes só essa escuta, só nesse falar do paciente, ele já melhora, tem um alívio em colocar aquilo para fora”, garante. “O profissional de saúde mental vai estar lá para acolher e tentar fazer com que ele veja aquela situação de uma forma diferente, que mude a forma de pensar”.