Como a sua infância alimenta a sua vida?
Os processos de desenvolvimento construídos durante a infância irão nos pertencer por toda a vida, provendo confiança, afeto, estima por ser quem se é, segurança e criatividade

O vivido nas fases iniciais constrói as primeiras memórias, as primeiras marcas, as primeiras experiências. Todas as coisas primeiras deixam traços muito fortes, sensações quando muitas vezes nem temos palavras para decifrar ou compreender.
O início da vida apresenta suas potências e desafios. A necessidade de cuidados, proteção, rede de apoio e pessoas que se importem em nos nutrir de cultura e afeto.
Graças à nossa imensa plasticidade psíquica, nos reconstruímos ao longo de vida inúmeras vezes e estamos sendo em desenvolvimento, dispostos a contínuos reposicionamentos identitários graças à aprendizagem do vivido e das relações.
Entretanto, os processos de desenvolvimento construídos durante a infância irão nos pertencer por toda a vida, provendo confiança, afeto, estima por ser quem se é, segurança, criatividade, capacidade de brincar, sentir fruição pela vida, lidar com desafios, amar, experimentar o mundo, relacionar-se, ousar, produzir esperança e sonho.
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Quando a criança que nos habita vive em masmorras de medo, vergonha, solidão, sensação de fracasso, insegurança, abandono, rejeição, culpa, silêncio, ausente de estímulos e liberdade para ser, o adulto sofre, adoece, e o adolescente titubeia no seu desenvolvimento.
Aqueles que se dispõem a cuidar de crianças precisam zelar inicialmente pela criança que vive dentro de si e que pode potencializar vida e criatividade ou medo, raivas e inseguranças.
Quem cuida das crianças deveria estar disposto a compreender que há um compromisso com a formação de um sujeito, com sua vida psíquica, sua vitalidade, seu desenvolvimento físico, cognitivo, social e ético.
Crianças precisam de ambientes acolhedores, não violentos, onde sejam vistas em suas necessidades e recebam o apoio para seu processo de independência e ação sobre o mundo, precisam ser desafiadas a compreender a realidade, a descobrir quem são, que experiência do mundo estão inseridas, qual o contexto, e que possuem suporte e apoio emocional incondicional para crescer.
Elas necessitam do olhar amoroso que lhes apresentará às leis e limites, que produzirão suporte para o sonho, o desejo e a esperança; precisam de tempo presencial com qualidade e vínculo, precisam ser vistas como são e reconhecidas e validadas em seus desejos e diferenças; com acesso aos direitos e às políticas públicas garantidoras do seu bem-estar, protegidas de violências que lhes roubem o desejo de viver e ser.
Infelizmente, podemos passar a vida sem cuidarmos da criança que vive em nós e sem atentarmos para as dores que isso acarreta. Podemos não ter recebido o abrigo adequado para nossas emoções e inquietações, podemos ter sido ensinados a silenciar ou acumular culpas e dores pelas fantasias decorrentes do vivido não simbolizado, conversado, pensado ou questionado.
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Assim, sem nem percebermos, esses conteúdos nos assaltam de forma intempestiva e permeiam nossas relações, nossa capacidade de trabalhar, nosso olhar sobre nós e nossa saúde. Inúmeras vezes, repetimos à exaustão padrões de adoecimento e prisões por posturas que nos atravessam há anos e que poderiam ser ressignificadas.
É muito comum ficarmos reféns de questões traumáticas que ainda não podem ser enfrentadas enquanto adultos, e aguardarmos que outros nos salvem ou cuidem de nós, pois ainda não podemos nos perceber em condições de nos cuidar e abrigar novos movimentos para o doloroso.
Existem muitos adultos que ainda não podem viver a vida adulta e não puderam se alimentar das potências de vida da infância.
É sempre possível olhar para a criança que vive em nós e conversar com ela, observar o que ela precisa, o que falta, quais os perdões, quais os afetos, quais as dores, quais os cuidados profissionais que podem ser oferecidos, quais os desejos, quais os sonhos, quais as mágoas, quais os medos. Entender que o que é vivido na infância é visto com o olhar e as fantasias daquele momento, e que esse olhar pode nos atravessar em qualquer época da vida.
Assim, como a sua infância lhe alimenta de alegria, vida, felicidade e esperança ou ela vive faminta, sem fome, sem desejo, à espreita de que você possa parar e perceber que se ela não está bem cuidada, você pode ficar sem reservas de alegria, confiança criatividade, amor e esperança para amar, brincar e trabalhar.
*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.