Os monstros que vivem em nós, mas só percebemos nos outros
Muitas vezes ficamos assombrados e perplexos com a brutalidade, a crueldade, o terror e nos indagamos de onde isso vem, quem pode cometer algo tão terrível.

Desde criança, as histórias sobre os monstros nos encantam. A ferocidade, o mistério, a doçura, a ambivalência, os enigmas, a sedução. Qual seu passado, quais segredos escondem, qual sua história, o que nos assusta, qual a sabedoria, o que nos educa, o que nos encanta, o que nos causa fascínio, medo e angústia?
A história por trás dos monstros revela muitas vezes o que Freud já chamava atenção sobre o "estranho familiar", aquilo que nos incomoda e que aparentemente soa estranho e distante, mas que revela algo de íntimo e nosso. Ou seja, o que nos aparenta estranho, muitas vezes diz do familiar interno que temos dificuldade em reconhecer e aceitar. Aquilo que nos causa repulsa, vergonha, medo, humilhação, desejos que não aceitamos, ideias absurdas que negamos em nós e que tendemos a perceber e atacar nos outros.
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Tal mecanismo inconsciente de defesa, chamado de projeção, consiste em atribuir a outrem desejos, ideias e afetos que nos pertencem, no intuito de preservar uma imagem idealizada de si, evitar lidar com conteúdos internos que seriam desagradáveis, diminuir a ansiedade e encontrar soluções amenizadas de culpa para o “ataque” a outrem. É o que acontece por exemplo, quando um político cruel e que cometeu atos horríveis, acusa e atribui aos outros atos que são seus ou quando alguém ataca aos outros insistentemente, mas relata ser perseguido e atacado.
O estranho se manifesta nas artes, nas relações, na história, no cotidiano. Usamos máscaras, produzimos filmes de terror, contamos histórias sobre o assustador e medonho que habita a humanidade. Muitas vezes ficamos assombrados e perplexos com a brutalidade, a crueldade, o terror e nos indagamos de onde isso vem, quem pode cometer algo tão terrível. E infelizmente, a resposta reside em nossa própria espécie, nos próprios humanos.
Como nos proteger dos monstros que nos habitam? Os monstros que matam, que destroem os vínculos, que debocham do afeto e da ingenuidade, que enganam, mentem, violentam, manipulam, que desejam do outro aquilo que não é possível dar, que tramam guerras, discórdias, que violam direitos, que exploram, que se satisfazem do sofrimento alheio, que machucam com ferocidade e crueldade.
Não à toa, assustam as crianças, pois no período em que começam a experimentar a confiança e a lei, descobrem a existência da maldade e dos desejos proibidos. E precisamos ensinar as crianças que os monstros podem ser vencidos, mas e quando eles ganham concretude no cuidar? Quantas vezes, o monstro é o pai, a mãe, o professor, o vizinho, o chefe, o amigo, quantas vezes somos nós os monstros dos outros.
Por vezes somos assombrados pelos nossos desejos, em sonhos ou nas fantasias de vigília.
Somos confrontados a compreender e a integrar aspectos desconhecidos e assustadores nossos e a construir e desenvolver recursos para manter nas ideias, nas fantasias, nos projetos artísticos, de trabalho, científicos, na capacidade de destruir e construir, nas artes, o medonho que existe em nós.
A história da civilização conta como é possível construir recursos para nos proteger dos monstros, para tentar contê-los, porque eles não desaparecem. Estão lá, à espreita de serem alimentados com ideias, afetos, incentivos, com narrativas que autorizem que saiam e cacem. Quando estamos cansados, irritados, frustrados, doentes, abandonados, quando o objeto do nosso desejo nos frustra, quando algo se torna inacessível, criamos as condições adequadas para que eles mostrem as garras e causem danos a nós ou aos outros.
Quantas vezes nos assustamos conosco, quantas vezes assustamos aos outros com nossos aspectos desconhecidos? Quantas vezes negamos, tentamos amordaçar e fazer desaparecer, quantas vezes os monstros vivem em cavernas e lugares remotos dentro e projetados para fora de nós.
É preciso cuidar do que se alberga em nós, do que nos causa medo, vergonha, raiva, repulsa; dos desejos proibidos que não reconhecemos nem aceitamos, para não sermos surpreendidos com as garras do que nos habita e cairmos na ilusão de que a maldade aloja-se somente no outro e que em nós vive apenas o senhor da bondade.