Duas delegadas e 24 inspetores são denunciados por crimes como tortura e associação criminosa no Ceará

Segundo a denúncia do Ministério Público do Ceará, estão incluídos outros crimes como extorsão e tráfico de drogas. Os promotores pediram as prisões dos policiais que atualmente estão lotados em diversas delegacias

Escrito por Emanoela Campelo de Melo e Emerson Rodrigues , seguranca@svm.com.br
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Foto: Unidade de Arte / SVM

O Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) do Ministério Público do Ceará (MPCE) denunciou 26 policiais civis do Ceará e outras seis pessoas (lista abaixo) por participarem de um esquema que envolvia crimes como tortura, tráfico de drogas, corrupção, extorsão, abuso de autoridade, peculato, prevaricação e associação criminosa. Dentre os acusados há duas delegadas que durante anos estiveram à frente da Delegacia de Combate ao Tráfico de Drogas (DCTD).

A reportagem do Diário do Nordeste teve acesso à denúncia, que é parte de uma investigação sigilosa. A peça de 298 páginas é assinada por seis promotores e traz detalhes do esquema. Segundo o órgão ministerial, policiais civis e informantes populares faziam parte de uma "estrutura ordenada e institucionalizada, com diferentes níveis de relacionamento e de distribuição de tarefas, direcionada à obtenção de vantagens" o que, quando é feito de forma ilícita, se configura como organização criminosa.

A investigação durou pelo menos três anos e a denúncia foi apresentada no último dia 18 de agosto de 2021. Dentre os pedidos feitos pelo MP ao Poder Judiciário estão requerimentos de busca e apreensão nas residências dos denunciados, suspensão do exercício de função pública direcionada aos agentes (alegando que os acusados possuem grande influência no Sistema de Segurança Pública do Ceará), quebra do sigilo telemático dos materiais apreendidos, afastamento do sigilo bancário e fiscal e até mesmo prisões.

A Assessoria Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Ceará (Adepol), que faz a defesa das delegadas denunciadas, representada pelo advogado Leandro Vasques, disse que vai aguardar ter acesso aos autos para se pronunciar objetivamente sobre a denúncia. "Somente quando nossas constituintes forem citadas iremos rebater uma a uma as acusações. Acreditamos que um grave ruído de comunicação possa estar havendo. Para ficar num solitário exemplo: Interpretações elásticas de diálogos de WhatsApp são um convite ao fazimento de injustiças", disse Vasques, que completa "as delegadas denunciadas sempre pautaram suas ações na régua da estrita legalidade".

Por nota, o Sindicato dos Policiais Civis do Ceará (Sinpol/CE) disse ter protocolado pedido de acesso ao processo para tomar conhecimento dos fatos. Conforme o coordenador jurídico do Sindicato, Kaio Castro, até o fim da tarde dessa quarta-feira (22), eles não tinham conhecimento de nenhuma decisão judicial que tenha recebido ou não a denúncia do Ministério Público. "O que sabemos é que o processo se encontra em sigilo e até o presente momento não foi deferida a nossa habilitação e não temos como nos manifestar", disse.

Liderança

Para os promotores, a liderança da organização ficava a cargo da delegada Patrícia Bezerra e do inspetor-chefe Petrônio Jerônimo dos Santos, o 'Pepeu'. A dupla já foi condenada pela Justiça Federal no ano passado em decorrência da Operação Vereda Sombria, que apurou crimes como corrupção, tortura e associação criminosa.

Ainda não há informações se mandados foram expedidos e cumpridos. O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) foi procurado, mas não emitiu posicionamento oficial até a publicação desta reportagem. O documento do Gaeco é dividido em 26 fatos, todos eles datados nos anos de 2016, 2017 e 2018, em Fortaleza e Região Metropolitana. 

Consta nos autos que os policiais civis se aproveitavam de informações privilegiadas obtidas por meio de informantes ou durante as investigações. Assim, eles abordavam suspeitos específicos para que apreendessem grande quantidade de drogas. 

Devido ao modus operandi dos policiais, os suspeitos se tornavam vítimas de extorsão e eram obrigados e pagarem quantias de valores diversos. Segundo o MP, a prática acontecia com a conivência e proteção das delegadas da Especializada.

COMO OS CRIMES ACONTECIAM

De acordo com o Gaeco, o abordado flagrado com algum objeto ilícito ou mandado judicial em aberto era extorquido até mesmo sob tortura, ameaçado ser preso em flagrante para que entregasse alguma informação sobre traficantes maiores e mais quantidade de drogas.

"Para garantir o esquema do grupo, os delegados se desdobravam no atendimento às exigências dos inspetores, seja para livrar algum informante naquelas situações que, de alguma forma, fugiram ao controle, seja para livrar e proteger os próprios policiais que participavam das operações, tendo à frente a pessoa de Petrônio Jerônimo dos Santos", segundo trecho da denúncia.

trecho denuncia

"Se, por um lado, as grandes apreensões perpetradas pelos policiais traziam notoriedade, fama e destaque à DCTD e, consequentemente, aos seus gestores (delegados); por outro, as abordagens operadas nos bastidores possibilitavam o aferimento de altos valores monetários para os envolvidos in loco nas ações, notadamente inspetores e informantes, já que o deslinde destas não cessava antes da prática de extorsões, torturas, peculatos e de toda sorte de abuso de autoridade" MPCE

Conforme MPCE, enquanto os delegados conseguiam elogios junto à cúpula da Segurança Pública, os inspetores conseguiam as vantagens financeiras ilícitas. "Ao fecharem os olhos para os abusos cometidos, os delegados podiam contar com policiais altamente motivados e proativos"

Os promotores ainda detalham na acusação que uma característica marcante da organização criminosa delatada é a tentativa de blindagem dos seus membros toda vez que algum fato criminoso operado por eles levantava suspeita ou virava alvo de investigação.

trecho denuncia mp


"O JOGO SÓ COMEÇOU"

Com o passar dos meses e o sucesso das ações, parte dos policiais da DCTD criou um grupo no Whatsapp para traçarem juntos estratégias de autodefesa, já que vinham chamando atenção da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD) e da Coordenadoria de Inteligência (Coin) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

O grupo chamado 'Nuinc/MP' era composto pelos inspetores Petrônio, José Audízio, Fábio Benevides, Rafael Domingues e Antônio Júnior. A delegada Patrícia foi adicionada no dia seguinte. Por lá, conforme o MP, os agentes combinavam o passo a passo dos relatos para que não entrassem em contradição. Patrícia também orientava o inspetor-chefe a como proceder nas suas declarações ao Ministério Público, segundo a denúncia.

policia civil denuncia dctd operacao
Legenda: Os policiais civis denunciados eram lotados na Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas (DCTD)
Foto: Divulgação/SSPDS

O segundo escalão da organização criminosa, conforme o órgão ministerial, era composto por Anna Cláudia Nery, lotada na Delegacia da Mulher e que investiga o caso de racismo contra a delegada Ana Paula Barroso, e Antônio Chaves Pinto Júnior, conhecido como 'AJ'. Anna Nery era quem, para o MP, exercia ao lado de Patrícia Bezerra a função de garantir as torturas e até mesmo possibilitar encontros entre investigadores e informantes.

"A cada passagem destacada no relatório técnico fica evidente que Anna Cláudia tinha pleno conhecimento das condutas sorrateiras praticadas pelos seus policiais, pelo menos no que diz respeito, para além do uso escuso de informantes, ao cotidiano uso de torturas e agressões físicas como forma de se obter informações, e assim, facilitar grandes apreensões"
Gaeco

TORTURAS

Consta na denúncia que em maio de 2017 foi identificada uma sequência de mensagens que tinham como pano de fundo a apreensão de quatro quilos de drogas, com informações levantadas pelo setor de análise de interceptações da DCTD. Os policiais Alex Sales e Rafael Domingues participaram da ocorrência e chegaram a um local onde o entorpecente estaria escondido. Os diálogos entre os servidores lotados na Especializada deram conta que havia a possibilidade do traficante investigado ser agredido física e psicologicamente pelos agentes.

Alex gravou um áudio dizendo que o traficante, conhecido como 'Tota' havia tirado a droga e escondido em outro local e os policiais não estavam encontrando. Foi então que Anna Cláudia Nery teria afirmado de forma categórica que: "Então bota ele pra cuspir, porque ele disse que ia entregar".

Patrícia pergunta pouco tempo depois no que deu. O policial Airton diz que "tão na peia" e Anna ri. Em seguida Alex fala: "tá clareando, coisas boas virão". Então a delegada titular complementa dizendo: "Claro que esse fedorento aí, nas mãos do Alex e do Rafael juntos, ouviu a voz do anjo da morte... mas é isso mesmo, a gente colhe o que planta, ne?" (sic).

Os policiais instigavam a cada operação o que chamam de S.A.C.O: "Sistema Avançado de Conversação Objetiva". Um jargão que indica o uso de filmes plásticos como objeto de tortura através da sufocação para obter informações.

Legenda: Conversa em grupos de WhatsApp entre os policiais denunciados

Legenda: Conversa em grupos de WhatsApp entre os policiais denunciados

Legenda: Conversa em grupos de WhatsApp entre os policiais denunciados

Legenda: Conversa em grupos de WhatsApp entre os policiais denunciados


PRISÃO PREVENTIVA

O MPCE destaca que a organização criminosa era, em sua maioria, composta por policiais civis, pessoas que têm fé pública e que deveriam trabalhar para proteger a sociedade, resultam em "um efeito deletério em todo tecido social".

A denúncia do Gaeco ainda pontua que a maior parte dos denunciados já constam em outros processos criminais ou investigações, justificando que se continuarem soltos trarão riscos para a instrução processual e podem causar prejuízos à ordem pública.

"Só a decretação da medida cautelar de afastamento das funções, não será suficiente para impedir a continuidade dos crimes praticados pelos denunciados, exemplo claro disso foi o comportamento adotado pela denunciada Patrícia Bezerra, que três dias após ter sido deflagrada a operação Veredas, criou um grupo de Whatsapp denominado de 'O jogo só começou' para se articular com os demais denunciados e criar estratégias para prejudicar o processo, bem como a adoção de condutas direcionadas contra autoridades e órgãos públicos, sem falar da natureza permanente do crime de integrar organização criminosa", disse o Gaeco em trecho da denúncia.

Quem são os denunciados e onde eles estão atualmente:

  1. Anderson Rodrigues da Costa, inspetor, Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco)
  2. André de Almeida Lubanco, escrivão, escrivão, 10º Distrito Policial
  3. Anna Cláudia Nery da Silva, delegada, Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza
  4. Antônio Chaves Pinto Júnior, inspetor, Departamento de Recursos Humanos
  5. Antônio Henrique Gomes de Araújo, inspetor, Departamento de Recursos Humanos
  6. Antônio Márcio do Nascimento Maciel, inspetor, Departamento de Informática
  7. Cristiano Soares Duarte, inspetor, 12º Distrito Policial
  8. Edenias Silva da Costa Filho, inspetor, Delegacia de Roubos e Furtos (DRF)
  9. Eliezer Moreira Batista, inspetor,  Gabinete da Superintendência da Polícia Civil
  10. Fábio Oliveira Benevides, inspetor, Departamento de Recursos Humanos
  11. Fabrício Dantas Alexandre, inspetor, Departamento de Polícia Judiciária Especializada
  12. Francisco Antônio Duarte, recolhido no Centro de Triagem e Observação Criminológica (CTOC) *(não é policial)
  13. Francisco Alex de Souza Teles, inspetor, Departamento de Recursos Humanos
  14. Gleidson da Costa Ferreira, inspetor, Departamento de Polícia Judiciária Especializada
  15. Harpley Ribeiro Maciel, inspetor, 5º Distrito Policial
  16. Ivan Ferreira da Silva Júnior, inspetor, 8ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)
  17. João Filipe de Araújo Sampaio Leite, delegado do Piauí, ex-inspetor da PCCE.
  18. José Abdon Gonçalves Filho, recolhido no Centro de Triagem e Observação Criminológica (CTOC) *(não é policial)
  19. José Airton Teles Filho, inspetor, Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos e Cargas (DRFVC)
  20. José Amilton Pereira Monteiro, inspetor, 8º Distrito Policial
  21. José Audízio Soares Júnior, inspetor, Departamento de Gestão de Pessoas
  22. José Ricardo do Nascimento, recolhido no Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne (Cepis) *(não é policial)
  23. Karlos Ribeiro Filho, inspetor, Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos e Cargas (DRFVC)
  24. Madson Natan Santos da Silva, inspetor, Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais
  25. Marcos Vinícos Alexandre Gonçalves, em liberdade endereço não confirmado *não é policial
  26. Patrícia Bezerra de Souza Dias Branco, delegada, Assessoria Jurídica da Polícia Civil do Ceará
  27. Petrônio Jerônimo dos Santos, inspetor, Departamento de Gestão de Pessoas
  28. Rafael de Oliveira Domingues, inspetor, Departamento de Gestão de Pessoas
  29. Raimundo Nonato Nogueira Júnior, inspetor, Departamento de Gestão de Pessoas
  30. Thiago Morais da Silva, em liberdade endereço não confirmado *(não é policial)
  31. Walkley Augusto Cosmo dos Reis, inspetor, Delegacia de Roubos e Furtos (DRF)
  32. Weverton Moreira de Brito, recolhido na Casa de Albergado de Fortaleza *(não é policial)
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