A vida depois de um seqüestro

Escrito por Redação ,
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Medo, angústia, apreensão. Estes são alguns dos sentimentos que assombram as vítimas de seqüestro

Tudo começa, quase sempre, com uma abordagem que mais parece um assalto. Homens fortemente armados, em mais de um veículo, cercam a vítima em um de seus trajetos mais comuns (para casa ou para o trabalho, por exemplo). Mas pode ser na porta da escola, no caso de adolescentes. Na entrada de consultórios médicos. Não há mais local ou hora certa para acontecer.

Os bandidos, sempre em número de três ou quatro, apontam as armas, fazem ameaças, abrem a porta do carro, ´arrebatam´ a vítima. Tudo em fração de segundos. Muito rápido. ´Quando vi, já estava sentado ao lado dos bandidos, com os olhos vendados, de cabeça baixa. Em dado momento, me tiraram de um veículo e trocaram para outro. Isto ocorreu umas três vezes´, lembrou X. (identidade preservada), uma das vítimas de seqüestro no Ceará, nos últimos três anos.

Para ele, ainda no trajeto para o primeiro cativeiro, os seqüestradores falaram sobre sua família, detalhes que ficaram em sua cabeça. ´Sabiam o nome dos meus pais, irmãos, sabiam de viagens´, conta, em seu depoimento à Polícia.

Apreensão

O desespero da vítima já começa no caminho. ´Quando passavam por algum local que tinha Polícia por perto, se preparavam com suas armas. Diziam que se mandassem parar o carro, iam atirar´, recorda-se X.

E o carro segue. Tudo preparado no cativeiro, a quadrilha mantém contato entre si, normalmente utilizando apelidos. Quarto escuro com um colchão, correntes, algemas. Este é o quadro mais comum do ´habitat´ do refém enquanto estiver ´sob as asas´ dos bandidos. Há relatos de todos os tipos:de quem foi tratado com razoável dignidade, com direito a chocolate no cativeiro, há o de quem ficou vários dias acorrentado a uma cama, senado no chão, tendo que fazer suas necessidades básicas em um buraco no chão do quarto.

O seqüestro é tão marcante na vida de uma pessoa que ele é capaz de se recordar - por mais traumático que isso seja - de todos os sons e odores do cativeiro, com detalhes. ´Como ficamos com os olhos vendados, acabamos nos fixando em outros sentidos. Parece que ela ficam mais apurados´, explica. X. se recorda de vozes, inclusive de crianças, que ouviu na chegada do cativeiro.

Ansiedade, angústia, dor, saudade, desespero, medo, pavor, tensão. Estes são os sentimentos mais comuns dentro de um cativeiro. Sentimentos que, mesmo com o término do seqüestro, não dão sossego. Os resquícios do crime se mostram no dia-a-dia, sem hora ou lugar certos.

LEMBRANÇA
Vítimas se recordam de todos os sons do cativeiro

O Diário do Nordeste teve acesso, com exclusividade, ao depoimento de uma pessoa que já vivenciou a experiência dolorosa de ser seqüestrada.

X. foi a vítima. Ele lembra que os primeiros barulhos que ouviu ao chegar no cativeiro foram o de ´pessoas conversando e crianças chorando´. Poucos dias ele passou por lá. Essa característica, revela a Polícia, ´são os cativeiros intinerantes´. Atualmente, nos casos de seqüestro investigados pela Polícia, fica evidenciada a existência de dois, três, até quatro cativeiros para um mesmo refém, um artifcício utilizado para despitar a Polícia.

Dentre as horas angustiantes de cativeiro, é comum que a vítima seja obrigada a escrever cartas ou ser fotografada para que o material seja encaminhado à família, em tom de apelo. ´Tudo eles fazem para sensibilizar a família da gente, querendo apressar o pagamento do resgate´, revela X..

Depois

E depois? Quando o seqüestro termina, ficam as ´cicatrizes´. ´Ninguém esquece, nunca mais. A gente fica tendo ´flashbacks´ do cativeiro, dos bandidos falando. Ninguém sabe se o pior é imaginar quando o resgate vai ser pago ou se é o medo de a Polícia chegar, de repente, e ter um tiroteio. Isso fica na cabeça depois também´, lembra X..

Segundo esta vítima, o trauma se estende para os familiares, amigos, colegas de trabalho, enfim, para todos os que acompanharam os dias de angústia mais de perto.

Família

´Quando a gente esquece por uns instantes, a família faz questão de lembrar. É um trauma para o resto da vida, por isso é difícil falar no assunto, embora às vezes dê vontade de desabafar´, justifica outra vítima que desistiu, no último momento, de dar entrevista ao jornal.

NÚMEROS CRESCENTES
Divisão foi criada para atender à demanda

No Ceará, o número de seqüestros vem crescendo nos últimos anos, o que resultou, inclusive, na criação de uma Divisão Especializada, dentro da Polícia Civil, para apurar os casos.

Os delegados e policiais da Divisão Anti-Seqüestro (DAS) - criada em setembro de 2006 - lidam com uma pessoa viva nas mãos de bandidos sedentos por dinheiro, por isso, todo cuidado é pouco. O trabalho é delicado porque envolve também as famílias que, normalmente, não querem a Polícia por perto. ´É a primeira ameaça que os seqüestradores fazem, geralmente num primeiro contato. Avisam logo que, se a Polícia for envolvida no caso, o risco é maior´, conta a esposa de um empresário já seqüestrado.

Investigações

Naturalmente, a Polícia tem que investigar. Este é o seu trabalho. Mesmo sem a vontade da família, a Polícia tem que dar um jeito, correr atrás do prejuízo. O delegado Jaime de Paula Pessoa, titular da DAS, ressalta que ´desde que a Divisão foi criada, mais de 20 casos de seqüestros já foram investigados´.

No ano passado, foram 13 seqüestros. ´Apesar da insistência dos bandidos em deixar a Polícia de fora, as famílias têm, pelo menos, que comunicar o caso à Polícia, confiar no nosso trabalho. O seqüestro é um crime de ação pública, não precisa de autorização para ser investigado´, ressalta o delegado Antônio dos Santos Pastor, adjunto da ´Anti-Seqüestro´.

Mecanismos

Segundo ele, a Polícia Civil do Ceará já desenvolveu diversos mecanismos de investigação que foram bem-sucedidos nas mais diversas situações. ´Temos que estar preparados para tudo, procuramos nos atualizar sempre e nos cercar da melhor estrutura possível de investigação´, endossa Pastor.

CRUELDADE
Criança foi executada em Camocim, em 1992

Um dos primeiros casos de seqüestro, no Ceará, foi o de uma criança de apenas seis anos de idade. Ela era Natália Albuquerque Lopes, estudante, que morava no Centro do município de Camocim. A menina desapareceu de frente de casa, onde brincava, perto de um posto telefônico.

Os seqüestradores mantinham contato com a família da criança, exigindo 40 milhões de cruzeiros, que era a moeda corrente. Isto foi em 1992.

No dia oito de agosto daquele ano, o caso acabou se revelando uma tragédia. Natália foi encontrada morta em uma cacimba, com pauladas na cabeça. Toda a trama do seqüestro da menina ocorrera na casa vizinha a de seus pais e foi perpetrada por três mulheres interessadas em extorquir dinheiro da família. Vânia Félix Ferreira e sua irmã Tânia, e a doméstica Isa Sousa do Nascimento foram acusadas pelo crime.

ENTREVISTA
´O seqüestro é um crime perverso, hediondo, malvado. A vida está, todos os dias, por um fio´

Jaime de Paula Pessoa
Delegado de Polícia, titular da DAS

Como trabalha a DAS?

´O nosso objetivo é identificar e prender todos os envolvidos em seqüestros, sempre. A nossa busca é incansável, não pára. Temos que prender todo mundo envolvido em um caso. Um integrante que fique de fora pode articular outro grupo, outra ação criminosa. Nosso compromisso é de não deixar nenhum crime sem resposta´

Qual o índice de sucesso nas investigações, já que se tratam de casos complexos?

´Todos os seqüestros ocorridos em 2007, por exemplo, foram investigados e esclarecidos. Atualmente estamos há quatro meses sem seqüestro no Estado. Neste período, aproveitamos para dar continuidade às investigações de casos passados, prender seqüestradores foragidos. Há quadrilhas que foram desarticuladas mas restaram um, dois foragidos. Então o nosso trabalho caminho nestas direções. A maioria está identificada´.

O que, exatamente, caracteriza o crime de seqüestro?

´O seqüestro está previsto no artigo 159 do Código Penal Brasileiro (extorsão mediante seqüestro). Tem que haver pedido de resgate. O que se chama hoje de ´seqüestro-relâmpago´, na verdade, é o roubo qualificado, uma modalidade diferente de crime´.

Como ficam as vítimas e as famílias de pessoas seqüestradas durante o seqüestro?

´Todo crime, por menor que pareça, como um furto, por exemplo, tem um potencial de abalo para a vítima. No seqüestro isso é bem mais sério, a sua vida todos os dias está por um fio. Os seqüestradores manipulam a vida da vítima e da família, com ameaças, a cada instante. Isso é um massacre. Dez, 30, 60 dias, não interessa o tempo que o refém passar no cativeiro. O seqüestro, para a vítima e a família, dura uma eternidade´.

E depois que o seqüestro termina?

´Fica uma cicatriz aberta. O seqüestro acaba mas as pessoas continuam apreensivas. Acabamos virando até conselheiros, o que vai além do nosso trabalho. As pessoas ficam temerosas e passam a nos consultar sobre suas mudanças de hábito´

A DAS tem o suporte necessário para a demanda de seqüestros que existe hoje no Ceará?

´As nossas investigações têm que ser rápidas, ágeis. Temos um bom suporte tecnológico, de informática e equipamentos para os policiais. Mas a Divisão precisa de mais. Precisamos de mais viaturas, especialmente as descaracterizadas, que são fundamentais neste nosso serviço. Temos uma promessa do superintendente da Polícia Civil, Luiz Carlos Dantas, em atender a este pedido. Nós estamos confiando nisso´.

ANÁLISE
O receio de tocar no assunto

Nathália Lobo

A idéia inicial era fazer uma reportagem reunindo o depoimento de vítimas, não identificadas, sobre suas angústias durante o cativeiro e receios após o crime. Infelizmente, isto não foi possível.

As pessoas que foram seqüestradas, no Ceará, mostram uma característica em comum: o medo da exposição, de ser alvo da ação de bandidos novamente. Algumas delas ainda chegaram a conversar, timidamente, com a equipe de reportagem. Uma, que parecia disposta a conceder uma entrevista completa, desistiu, no último momento. Entendemos a apreensão destas pessoas e de suas famílias, diante dos absurdos que constatamos analisando os casos a que tivemos acesso.

A conclusão a que se chega é que, realmente, o seqüestro é um crime perverso, como disse o delegado Jaime. Deixa cicatrizes profundas, que vão à alma das pessoas.

Nathália Lobo
Repórter

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