Sem comprovar gastos, TSE vê irregularidades em 97% dos partidos

Cobrado pelas instâncias nacionais, o financiamento partidário no País não tem as contas esclarecidas como determina a lei. Dados de 2014 apontam que apenas um partido conseguiu cumprir com as obrigações financeiras

Escrito por Wagner Mendes e Luana Barros ,
Legenda: TSE multou partidos em situação irregular.
Foto: Foto: Roberto Jayme/TSE

Com um atraso de cinco anos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluiu nos últimos dias o balanço da prestação de contas dos partidos políticos brasileiros. Dos 32 que tentaram explicar como gastaram o dinheiro público referente ao financiamento partidário de 2014, apenas um conseguiu cumprir a legislação, o que gera uma interrogação no uso de recursos públicos pelas legendas no País. 

Outros 11 tiveram as contas aprovadas com ressalvas, ou seja, com deficiências nos registros. E 20 foram desaprovadas. Como punição, os partidos devem devolver aos cofres públicos cerca de R$ 27 milhões e ter o repasse de cotas suspenso. A reportagem analisou os processos das prestações de contas da verba partidária que constam no site do TSE para entender as irregularidades mais comuns identificadas pela Corte Eleitoral. 

Na grande maioria dos casos, os partidos não comprovaram como o dinheiro do contribuinte foi gasto, o que é grave, se tratando de recurso público. Nos processos, os ministros cobram a entrega de documentos que justifiquem o uso regular dos recursos. 

Em muitos casos, os comprovantes só aparecem após uma decisão de ministros contra a legenda. Ou melhor, quando o relator das contas reprova os dados que recebeu, antes mesmo da análise em plenário. Nos recursos, os advogados das agremiações conseguem reduzir os impactos das irregularidades, mas ainda não completamente. 
Na análise das contas dos diretórios nacionais das legendas, o TSE identificou no antigo PR, hoje PL, por exemplo, documentos com indícios de falsificação. No PSDB, foi identificada a aplicação irregular das cifras. O dinheiro foi utilizado em áreas que não são compatíveis com atividades político-partidárias. 

Um dos casos mais graves é o do antigo PHS, que foi incorporado ao Podemos em 2019. O partido não conseguiu comprovar como gastou 93,30% do que recebeu naquele ano. A Corte exigiu, como punição, que a sigla devolvesse aos cofres públicos R$ 2,8 milhões, e que ela deixasse de receber 11 cotas (das 12 por ano) do Fundo Partidário. 
Outro problema recorrente é o não cumprimento da aplicação do percentual de 5% para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. (Na edição de amanhã, o Diário do Nordeste vai aprofundar o assunto). 

Dificuldades 

Na teia das irregularidades apresentadas pelo TSE, os bastidores das prestações de contas mostram não apenas a possibilidade de corrupção, mas também o amadorismo com o gerenciamento das finanças. 

De acordo com o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto, na rotina dessas legendas, principalmente no Interior, há uma “desorganização” e um “desleixo” com os valores pela falta de profissionalização financeira. 

“Há um desleixo por parte dos partidos políticos que não se fazem assessorar por uma boa assessoria jurídica e contábil, especializada em gastos políticos”, diz ele. A má gestão em âmbito municipal acaba prejudicando as prestações de contas nacionais. 

Autor do livro “Partidos Políticos: Desafios Contemporâneos”, o especialista cobra que, mais do que saber comprovar como gastou a verba, é preciso que as siglas prezem pela qualidade na execução do dinheiro da sociedade. 

“Eles têm que zelar pela qualidade do gasto do dinheiro público ou privado, arrecadado de doações dos partidos, e devotar esse dinheiro na busca das finalidades de cada partido, na formação dos seus quadros, no fomento de candidaturas femininas, na criação de estruturas fixas nos estados e nos municípios”, cobra. 

Comissões 

Para o especialista em direito eleitoral, Leonardo Vasconcelos, os problemas na transparência pública dos valores utilizados pelas legendas no País começam na fragilidade das comissões provisórias (organização precária em cidades onde não há diretório formal das siglas), que, segundo ele, só eram vistas com prestígio em ano eleitoral. 

“Passada essa fase (eleitoral) não se preocupavam com prestação de contas ou qualquer coisa referente aos partidos. Assim, temos muitos diretórios com pendências de contas. Com a mudança eleitoral, que exigiu que para concorrer existisse o diretório municipal, apesar de a exigência ainda não ser imperativo, já mudou muito o interesse”, explica o especialista. 

A dificuldade municipal em revelar como o dinheiro público foi empregado acaba tensionando uma cadeia que chega à instância nacional. “Cada um vai ter que prestar contas do que recebeu e, as vezes, isso pode causar um evento em cadeia. Se em um município o partido não prestou contas, então não vai aprovar o repasse do estadual para o municipal. É tudo comprovado por transferência bancária”, diz Vasconcelos ao pontuar que todas essas pendências são cobradas no TSE. “O TSE pode até aprovar as contas, mas com ressalvas”, explica. 

Partidos 

Para o cientista político da Universidade Federal do Ceará, professor Cleyton Monte, o mau uso do dinheiro ainda nas instâncias partidárias leva insegurança ao eleitor caso aqueles dirigentes que não comprovaram os gastos sejam eleitos em disputas para o Legislativo ou Executivo. 

“Eu parto do princípio que o apreço pelo serviço público é uma questão básica. Começa na gestão do partido. Quando as figuras forem eleitas, vão fazer a mesma coisa com o recurso do gabinete porque têm aquela visão de que o recurso público é daquela pessoa que está utilizando o recurso público”, diz. 

Segundo o pesquisador, os partidos dependem muito dos fundos “porque eles não têm uma interligação com a sociedade”. “Você tem muitos partidos, siglas das mais diversas, mas eles não têm uma representatividade junto ao eleitorado no sentido de se conectar com a sociedade”, pontua. 

Para o professor, em geral, não há diálogo com a juventude, com o meio ambiente, com a classe média, entre outras áreas. Esse distanciamento não faz com que a população se aproxime dessas agremiações. “A grande questão é: por que não se faz? Porque os partidos já sabem que vão receber recursos públicos”.

De acordo com o sociólogo da Universidade Federal do Ceará, Jonael Pontes, um dos fatores que determinam esse afastamento entre partidos políticos e sociedade é a corrupção, tão comum no País.

“A preocupação da sociedade com a corrupção e os problemas que dela derivam está diretamente relacionada ao surgimento de escândalos que envolvem diversas variáveis, desde enriquecimento ilícito de políticos, agentes públicos, licitações manipuladas, denúncias de propina ou tráfico de influência. Neste caso específico, a reprovação das contas de 20 do total de 32 partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral”, diz Pontes.

O pesquisador argumenta que a prática “demonstra a falta de responsabilidade e de transparência ao lidar com a coisa pública”. Para o sociólogo, “é de extrema importância a autonomia dos órgãos de controle” para a fiscalização do uso do dinheiro. Ele cita que o fenômeno da crise de confiança nos partidos está presente em quase todas as democracias contemporâneas. 

Versões 

O Diário do Nordeste procurou as legendas em âmbito nacional, através dos contatos nos sites oficiais e também nas redes sociais, e fez questionamentos sobre os pontos de irregularidades do TSE. 

O DEM respondeu que as contas foram parcialmente rejeitadas “por decisão monocrática do relator” e que “o partido apresentou recurso ao plenário”. “O Democratas enfatiza ainda que confia no provimento do recurso e na reversão da decisão”, diz a nota. 

O Solidariedade disse que as contas “foram aprovadas pelo TSE, tendo sido determinada a devolução ao erário da importância de R$ 67.462,28, o que representa apenas 0,77% do total de recursos do Fundo Partidário recebidos” no ano. A legenda diz que tratam-se de valores “ínfimos”, “um dos menores dentre todas as prestações de contas de 2014”. “O que revela a seriedade e transparência que norteiam o Solidariedade”. 

Já o PSDB afirmou que “o partido vai recorrer da decisão, que não foi unânime”. O PSD declarou que “o partido teve as contas aprovadas e apresentou embargos às ressalvas feitas, que demonstram a correção dos atos”. Nenhuma das respostas se aprofundaram nas questões apontadas pelo TSE. As demais legendas não responderam.

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