Mudança de discurso da oposição sobre combate à pandemia coloca prefeitos em saia-justa no Ceará

Lockdown, vacinação e tratamento precoce são temas que expõem contradições no bloco opositor na gestão da crise sanitária

Escrito por Flávio Rovere , flavio.rovere@svm.com.br
Caucaia
Legenda: Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, decretou lockdown após orientação do Governo do Estado
Foto: José Leomar

As estratégias políticas do grupo de oposição ao Governo do Estado no contexto da pandemia de Covid-19 podem gerar situações pouco confortáveis para prefeitos cearenses ligados ao bloco. Embora costumem ter poucas divergências no campo ideológico, gestores municipais acabam expostos à análise de indicadores objetivos e a eventuais críticas relacionadas às mudanças de posicionamento de alguns discursos.

Na avaliação de cientistas políticos entrevistados pelo Diário do Nordeste, temas como vacinação, tratamento precoce e lockdown têm colocado lideranças em xeque. 

O discurso de cobrança por mais celeridade na imunização, por exemplo, indicado pela campanha #AgilizaCamilo, encabeçada pelo deputado federal Capitão Wagner (Pros) e acompanhada por outros parlamentares, acende os holofotes sobre os índices de vacinação dos principais municípios comandados pela oposição no Ceará.

Todos têm indicadores abaixo da média estadual, de acordo com os últimos dados da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa). Segundo atualização da última terça-feira (6), o Ceará tem aplicadas 97,42% das primeiras doses previstas para a meta da atual fase e 37,14% das segundas doses. 

Entre os municípios com opositores de Camilo na prefeitura, apenas Caucaia, do prefeito Vitor Valim (Pros), tem um dos indicadores superior à média estadual, com 42,44% de segundas doses aplicadas. O percentual de primeiras doses previsto na meta, porém, está abaixo: 86,86%.

Em Maracanaú, do prefeito Roberto Pessoa (PSDB), os índices são de 87,77% (primeira dose) e 35,84% (segunda dose); em Juazeiro do Norte, do prefeito Glêdson Bezerra (Podemos), 88,92% (primeira dose) e 27,16% (segunda dose); e em São Gonçalo do Amarante, do prefeito Professor Marcelão (Pros), 96,10% (primeira dose) e 31,62% (segunda dose). 

Caucaia, Maracanaú e Juazeiro chegaram a integrar lista de municípios que teriam suspensos os repasses de doses, devido ao não cumprimento das metas de vacinação, mas o avanço do índice de imunização per capita reverteu o impasse, relacionado a uma decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). 

Tratamento precoce 

Outro tema que atrai ruído instantâneo dentro da polarização dos debates é o “tratamento precoce”, combinação de medicamentos sem eficácia comprovada contra Covid-19 defendida insistentemente pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e apoiadores, embora sem amparo de estudos que justifiquem a propaganda. 

O assunto voltou a ganhar repercussão no início desta semana, quando Jair Bolsonaro postou vídeo em que o prefeito de Chapecó (SC), João Rodrigues (PSD), creditava o suposto sucesso do município em relação à Covid-19 à adoção do tratamento precoce, entre outras medidas. O prefeito mostrava uma ala de tratamento semi-intensivo vazia, com imagem e discurso que passavam sensação de tranquilidade em relação à pandemia. João Rodrigues apontava queda expressiva nos casos confirmados e “internamentos próximos de zero” no município catarinense. 

O que mais chamou atenção, porém, foi uma série de omissões por parte do prefeito. Depois que ele assumiu a prefeitura, em janeiro, o número de óbitos por Covid-19 em Chapecó saltou de 123 para 539 (até o último dia 6), aumento de 338%. No início do mandato, em janeiro, João Rodrigues instalou um ambulatório especializado no tratamento precoce. Outras medidas tomadas por ele foram a liberação de eventos e a ampliação do horário de funcionamento de bares, com direito a apresentações musicais ao vivo.  

O prefeito também omitiu que, àquela altura, as UTIs da cidade continuavam lotadas e que a redução recente de casos trazia os efeitos de um lockdown realizado entre 22 de fevereiro e 8 de março. A repercussão respingou em apoiadores do presidente, inclusive no Ceará. 

Lockdown no Ceará 

A resistência ao lockdown tem sido uma marca de gestões alinhadas com o discurso de Bolsonaro, crítico das medidas de restrição desde o início da pandemia.

No Ceará, a adoção do isolamento social rígido em todo o Estado a partir do dia 13 de março foi precedida pela recomendação, no início daquele mês, de que todos os municípios com risco “alto” ou “altíssimo” para Covid-19 adotassem as mesmas medidas impostas inicialmente apenas a Fortaleza. Dos municípios de oposição, apenas Caucaia se antecipou, decretando lockdown no dia 12, um dia antes do início do decreto estadual. 

Após as tentativas, sem sucesso, de controlar o avanço da pandemia sobre o sistema público de saúde com medidas menos restritivas, o prefeito de São Gonçalo, Professor Marcelão, foi um dos que reconheceram a importância do lockdown.

“Fizemos de tudo. Agradeço o apoio dos comerciantes. Muito obrigado pela compreensão de vocês. Estamos juntos, mas a prefeitura de São Gonçalo, o prefeito de São Gonçalo, nesse momento, queremos salvar vidas”, disse nas redes sociais. 
Professor Marcelão
Prefeito de São Gonçalo do Amarante

Vacinas 

Quando se trata do alinhamento ao discurso do presidente Bolsonaro, outro tema que mais atenção é a vacina. Apoiadores que, até pouco tempo atrás, priorizavam a defesa do “tratamento precoce” e se ocupavam de atrair descrédito principalmente para o imunizante CoronaVac, chamado pejorativamente de “vacina chinesa” ou “vachina”, passaram a reunir esforços em apontar méritos do Governo Federal em torno da vacinação.  

Episódio que simboliza a rápida mudança no discurso de apoiadores do presidente Bolsonaro aconteceu na semana passada, quando parlamentares ligados ao Governo Federal foram ao Aeroporto Pinto Martins aguardar a chegada do último lote de doses. Estavam presentes os deputados Capitão Wagner (Pros), Soldado Noelio (Pros), Delegado Cavalcante (PSL) e André Fernandes (Rep), além do vereador Carmelo Neto (Republicanos). 

A outrora questionada “vachina” representa 86% das doses recebidas pelo Estado do Ceará até agora. 

Alinhamento vertical 

As mudanças de estratégias e discursos da oposição no Ceará durante pandemia têm sido objeto de estudo do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do grupo, o cientista político Cleyton Monte aponta a dinâmica por trás do fenômeno. 

“O bolsonarismo, principalmente quando trata de mensagens para lideranças políticas, é hierarquizado, tem uma coesão. Então, muito mais que uma força partidária, ele funciona dentro de uma perspectiva vertical. Se o líder muda de posição, ou dá sinais disso, os parlamentares, as lideranças que o seguem, acabam indo na mesma perspectiva”, analisa. 

Para Monte, a queda de popularidade de Bolsonaro entre grupos de maior renda, segundo as últimas pesquisas de opinião, são motivos tanto para o discurso agora a favor das vacinas, como das críticas ao lockdown. 

“O Bolsonaro ainda tem um apoio significativo nos grupos empresariais, comerciais, que foram e são muito afetados pelas medidas de restrição. Isso o coloca em uma situação de ter que dar sinais invertidos. Eu sinalizo para a vacinação, mas ao mesmo tempo sou contra o lockdown, principalmente porque é uma medida pensada, articulada e desenvolvida pelos governadores, que são a grande força de oposição ao Governo Federal”. 
Cleyton Monte
Cientista político

Fatura eleitoral 

Também pesquisadora do Lepem, a cientista política Monalisa Torres destaca que, além das implicações sanitárias e humanitárias, incoerências nos discursos de Bolsonaro e aliados podem ter repercussões eleitorais. 

“Em 2020, os candidatos a prefeito que responderam de forma minimamente satisfatória às demandas da população em relação ao enfrentamento da pandemia foram reconduzidos aos cargos ou elegeram sucessores. Quem teve avaliação acima de 40% em geral foi reconduzido. Quem ficou abaixo, em grande maioria, não foi. Espera-se que essa cobrança também seja feita em 2022”, projeta. 

Monalisa Torres aponta, ainda, uma “radicalização” no discurso que politizou a pandemia, a partir do conceito “vida x trabalho”, que Bolsonaro vem levando ao limite desde o ano passado.

“As medidas de proteção à vida não excluem os cuidados com os segmentos econômicos diretamente afetados, mas a forma como o presidente Bolsonaro tem conduzido e radicalizado esses posicionamentos fizeram com que as lideranças alinhadas a ele comprassem essa briga nos estados”, avalia a pesquisadora. 

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