Da saúde ao futebol, Copa América vira foco de novo embate entre Bolsonaro e governadores

Desde que assumiu a Presidência da República, em 2019, Jair Bolsonaro vem colecionando crises com os governadores; pandemia intensificou conflitos

Escrito por Flávio Rovere , flavio.rovere@svm.com.br
Taça da Copa América
Legenda: Bolsonaro confirmou na terça (1º) que Brasil sediará Copa América
Foto: Reprodução

O anúncio da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) de que, após desistências de Colômbia e Argentina, o Brasil sediaria a próxima Copa América, entre os dias 13 de junho e 10 de julho, gerou reações divididas.

Embora alguns estados estejam dispostos a receber a competição e discutir as condições para tanto, a pressão daqueles que se opõem ao torneio cria contornos de mais uma crise federativa, em que Governo Federal e entes estaduais divergem publicamente sobre algum tema. 

Transferências de recursos, medidas restritivas relacionadas à pandemia, vacinas, inaugurações de obras, acusações de vazamentos de informações são, ao lado do torneio continental de seleções, alguns dos motivos que levaram o presidente da República a contendas com governadores, por vezes travadas na Justiça. As constantes crises desfizeram alianças e aprofundaram diferenças.

No Ceará, Camilo Santana (PT) já foi protagonista de polêmicas envolvendo Jair Bolsonaro (sem partido), com quem já trocou farpas algumas vezes. 

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Copa América 

Tão logo a Conmebol publicou que realizaria a Copa América no Brasil, com agradecimento direto a Bolsonaro e sua equipe, governos estaduais passaram e se posicionar em relação à possibilidade ou não de receberem o torneio.

Governadores de Bahia, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul se recusam a sediar jogos do evento, enquanto São Paulo e Bahia se colocam à disposição, desde que respeitadas as normas sanitárias de seus estados. Amazonas, Distrito Federal e Mato Grosso estão propensos a discutir os protocolos para realizar o torneio. 

Em nota oficial, o Governo de Pernambuco se pronunciou da seguinte forma:  

“Apesar de ainda não ter sido procurado oficialmente pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o Governo do Estado reforça que o atual cenário epidemiológico não permite a realização de evento do porte da Copa América no território de Pernambuco." 
Governo de Pernambuco
Sobre a Copa América

Na Bahia, inicialmente o governador Rui Costa (PT), que já chamou Bolsonaro de “aliado do vírus”, chegou a admitir sediar a Copa, sem público, mas depois afastou qualquer possibilidade. 

Arena Fonte Nova
Legenda: A decisão pelo reforço de medidas de maior restrição ocorre para tentar conter o aumento de casos de infecção pelo coronavírus
Foto: Governo da Bahia

“O estádio (Arena Fonte Nova), inclusive, em função da pandemia, está provisoriamente ocupado por leitos de UTI. Portanto, aqui na Bahia, não poderão ocorrer jogos de qualquer Copa, em função do uso do estádio para salvar vidas humanas”, disse o governador baiano em pronunciamento oficial, em que também afirmou que “a prioridade que queremos é vacina”. 

A cobrança pela imunização da população também foi o argumento do governador piauiense, Wellington Dias (PT), que preside o consórcio de governadores do Nordeste. 

“Muito facilmente o Governo Federal brasileiro disse sim para que possamos sediar a Copa das Américas no futebol. A pergunta que eu faço é: e as vacinas? É a vacina que nos coloca no patamar seguro, tanto para eventos esportivos, mas também para a volta às aulas presencias, que é uma prioridade, turismo, comércio, indústria poderem funcionar, todos os setores”. 
Wellington Dias
Governador do Piauí

Apesar das críticas, Bolsonaro confirmou nesta terça (1º) a intenção de realizar o torneio. "No que depender de mim, de todos os ministros, inclusive o da Saúde, já está acertado, haverá [Copa América no Brasil]. O protocolo é o mesmo da Libertadores, é o mesmo da Sul-Americana", disse o presidente a apoiadores. 

Ele disse já ter recebido a anuência de quatro estados para receber os jogos: Distrito Federal, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Goiás. Um quinto estado teria confirmado depois, mas o presidente não revelou qual.

Repasses federais 

Um dos temas a que Bolsonaro mais recorre para mobilizar apoiadores contra os governos estaduais é a destinação de verbas federais a eles.

No final de fevereiro, usou as redes sociais para expor, em somatório de valores diretos para saúde e outras áreas com os valores indiretos de suspensão e renegociação de dívidas, os montantes que teriam sido destinados em repasses da União a cada estado até 15 de janeiro. 

A publicação gerou uma onda de críticas aos governadores, acusados genericamente de malversação dos recursos. Os gestores responderam. Carta assinada por 19 governadores colocava os repasses como "obrigação constitucional" e não como "concessão" ou "favor", e apontava parcela "absolutamente minoritária" destinada pelo Governo Federal à Saúde. 

Camilo Santana 

Um dos signatários da carta, Camilo Santana já protagonizou outras situações de tensão com o presidente da República. Uma delas ocorreu na última visita do chefe do Planalto ao Ceará, em 26 de fevereiro, quando Camilo o criticou por promover aglomerações no Estado.

Antes mesmo da visita, o governador chamou a agenda em solo cearense de um “grave equívoco”. 

Em Tianguá e em Caucaia, sem máscara e em eventos com flagrantes aglomerações, Bolsonaro criticou as medidas de isolamento promovidas pelos governadores e chegou a afirmar: "O governador que fecha seu estado, o governador que destrói emprego, ele é que deve bancar o auxílio emergencial". 

jair
Legenda: Bolsonaro não usou máscara e nem evitou o contato com apoiadores enquanto esteve no Ceará
Foto: José Dias/PR

Pelas redes sociais, Camilo rebateu dizendo que “aqueles que debocham da ciência, ignoram a luta dos profissionais de saúde para salvar vidas, e, principalmente, desrespeitam a dor das milhares de famílias vítimas da Covid, receberão o justo julgamento”. 

Em junho do ano passado, chegou-se a cogitar encontro entre Camilo e Bolsonaro, na primeira visita do presidente ao Ceará depois de eleito. O governador, porém, não compareceu à inauguração de trecho da Transposição do Rio São Francisco no Cariri cearense. A justificativa foi a pandemia. 

STF e medidas de isolamento  

No último dia 27, Bolsonaro e o advogado-geral da União, André Mendonça, protocolaram Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando medidas de isolamento em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraná.

A ação afirma que decretos de distanciamento "violam o princípio democrático" e que “não há espaço válido no ordenamento jurídico pátrio que autorize prefeitos e governadores decretarem unilateralmente medidas de lockdowns e toques de recolher”.

Bolsonaro em 'motocada' que promoveu aglomeração no Rio de Janeiro
Legenda: No último dia 23, antes de ajuizar a última ação contra medidas de isolamento no STF, Bolsonaro promoveu uma 'motocada' com aglomeração no RJ
Foto: Alan Santos/PR
 

Em março, o ministro Marco Aurélio Mello já deu decisão desfavorável ao Governo em ação semelhante movida contra Bahia, do Distrito Federal e Rio Grande do Sul. Na ocasião, o ministro apontou visão “totalitária” do presidente. 

 Ainda no ano passado, quando Bolsonaro tentava liberar uma série de atividades em todo o País, o Supremo decidiu que União, estados e municípios têm responsabilidades “concorrentes” na Saúde Pública. Ou seja, na ausência de medidas federais para conter a pandemia, os demais entes podem agir. 

Antigos aliados 

O modus operandi de conflito constante levou o presidente a romper relações com governadores que, no passado recente, já foram seus aliados. Caso do governador de São Paulo e do ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), entre outros. 

Em São Paulo, governador e presidente se elegeram com a dobradinha chamada de BolsoDoria, mas romperam ainda em 2019, com seguidas críticas de João Doria a Bolsonaro e a nítida intenção do tucano de se descolar do chefe do Palácio do Planalto e se credenciar como presidenciável em 2022.

As desavenças se acentuariam ainda mais com a pandemia, especialmente em relação às vacinas, motivo de tensionamento constante e trocas de ofensas entre ambos e seus respectivos aliados. 

Legenda: O início da vacinação no Brasil foi alvo de disputa entre Doria e Bolsonaro
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O rompimento com Witzel viria também em 2019, partindo de desalinhamentos políticos no Rio de Janeiro e culminando com a acusação de Bolsonaro de que o até então governador teria vazado e manipulado informações sobre as investigações do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco (Psol), com o objetivo de prejudicar sua imagem e se beneficiar na corrida presidencial em 2022. 

Witzel, no entanto, acabaria deposto do cargo em abril deste ano, por suspeitas de desvios de verbas da saúde durante a pandemia. Isolado politicamente, o ex-governador foi convocado para depor na CPI da Covid-19 no próximo dia 16, e já afirmou que deve apresentar indícios de crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro. 

“Extremismo” 

Cientista política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart avalia que as constantes crises entre Bolsonaro e os governadores não só enfraquecem o Pacto Federativo, que prevê a cessão de poder e competências da União para os entes, como denotam a postura de “extremismo” e de “concentração de poder” do presidente ao fazer política. 

“O extremismo se caracteriza pela força de uma convicção, com ênfase e intensidade muito fortes, e a dificuldade de ouvir outros lados, de aceitar outras opiniões, de perceber as múltiplas dimensões de um fenômeno. Então todo extremismo tende a ser simplificador”. 
Mayra Goulart
Professora da UFRJ

"No caso do bolsonarismo com os governadores, ele tem dificuldade de ouvir outros posicionamentos e com qualquer um que assuma qualquer tipo de protagonismo perto dele", completa.

Quanto à estratégia de sediar a Copa América, a cientista política vê como uma tentativa de desviar o foco dos problemas que o País vem enfrentando. “É mais uma forma de criar factoides, de criar diversionismo, de tirar a atenção das calamidades econômicas, sanitárias e sociais que estão acontecendo”, analisa Mayra Goulart.