Águas do Velho Chico estão apenas iniciando sua jornada pelo Ceará

A largada em Jati aumenta a segurança hídrica, mas sinaliza o início de outros desafios: redução de perdas na calha dos rios, outorgas e os conflitos entre usuários. Governo Federal já trata com os estados a “conta da água”

Escrito por Melquíades Júnior e Antônio Rodrigues ,
Legenda: Do reservatório de Jati, a água deve seguir pelo Cinturão das Águas até o açude Castanhão
Foto: Helene Santos / SVM

Ao contrário do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro, a “novela enorme” ainda não chegou ao fim. Mas é possível dizer que um importante capítulo acabou e teve início outro, rumo ao desfecho, com a chegada das águas do Rio São Francisco ao Ceará. Isto porque, virada uma página, é a vez de se colocar na mesa novos desafios que, na prática, têm como finalidade a chegada ao usuário. Dito de outro modo, o real fim da novela: água na torneira do cearense.

Apesar da reação contida do Estado com a abertura da válvula na manhã de ontem, pela ausência do governador Camilo Santana e auxiliares à inauguração do trecho com o presidente Jair Bolsonaro, justificada pela pandemia, o momento foi recebido com alívio e satisfação também por autoridades e especialistas em gestão das águas no Ceará. A começar pelo secretário estadual de Recursos Hídricos, Francisco Teixeira, avaliando que “a chegada das águas é o aumento da segurança hídrica para os períodos de seca, como a que tivemos recentemente e que ainda perdura no interior. O intuito da Transposição é o atendimento preponderante do abastecimento humano”.

Teixeira fala com a autoridade de quem é um dos poucos a participar de todas as etapas da construção da Transposição, desde seu projeto, seja como assessor no então Ministério da Integração, secretário Nacional de Infraestrutura Hídrica e, depois, como próprio ministro, em 2013. 

Sabe que muita água será perdida no caminho de Jati até o Castanhão, visto que o recurso hídrico desce do ‘rio de concreto’ que é o canal e cai novamente em calha natural de rio por cerca de 300 km até chegar ao açude Castanhão. É mais que o dobro da distância percorrida em canal de Cabrobó (PE) a Jati (CE), por onde chegou ao Ceará.

“Quem vai receber essas águas é a Cogerh. Vai fazer chegar ao Castanhão. No meio do caminho pode atender cidades, mas temos esse problema da condução dessa água pelo caminho natural, que vai ter muita perda por infiltração. A ideia é que, no futuro, a distribuição seja toda por meio de adutoras, que garantem uma perda mínima”, explica Francisco Teixeira.

Questão agrícola

A outorga da água para uso agrícola não deverá ocorrer, pelo menos, nos anos em que durar essa fase pré-operacional. Mas o fato de se destinar prioritariamente ao abastecimento humano não impede a comemoração, desde já, pelo setor agrícola. O exemplo se encontra nos principais perímetros irrigados do Ceará, situados no Vale do Jaguaribe. 

Com essas águas chegando ao Castanhão, a demanda reprimida causada pela segurança hídrica poderá se destinar aos plantios. E numa espécie não onerosa de ‘jeitinho brasileiro’, o que não iria do Castanhão para irrigação, para poder atender à Região Metropolitana de Fortaleza, poderá ser usado em plantios quando o Velho Chico já conseguir percorrer os 700km até aumentar a segurança hídrica de Fortaleza (já garantida, pelo menos, até julho de 2021 pelos açudes da própria RMF). 

“A gente chama isso de ‘ganho de sinergia’. A Transposição, ao dar um manancial mais seguro, com maior disponibilidade de água, permite que aquele açude local atenda outras demandas, como é a agrícola”, explica Francisco de Assis Souza Filho, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos na época da concepção do projeto que levou à construção da Transposição. O professor alerta para um dos maiores problemas que tiveram início com a largada das águas: a significativa perda de ‘água em trânsito’ pelos rios. 

É por isso que, nas previsões dos governos Federal e Estadual, as águas do Velho Chico só deverão chegar ao açude Castanhão daqui a dois meses. Só após essa chegada será possível mensurar o tamanho do que se perdeu no caminho. A Secretaria de Recursos Hídricos pretende propor à União que, após esse primeiro teste, as águas possam manter fluxo até as bacias no primeiro semestre de cada ano, quando as chuvas ajudam a fluir água na calha dos rios com menos perdas.

Conta

O fim dessa fase pré-operacional, iniciada ontem, será o começo do pagamento da conta da água pelos estados – a Paraíba já recebe as águas há três anos, pelo Eixo Leste, mas ainda não começou a pagar. A reportagem apurou que o Governo Federal já começou a pressionar o Ceará, assim como outros estados, para a transferência desse custo (a operacionalização ainda é toda mantida pela União). A discussão já tem durado alguns anos, mas esbarra na falta de convergência em torno de uma “tarifa mais palatável”, segundo Francisco Teixeira. 

O pagamento da água pelo preço de hoje, somando custo de energia, chegaria a R$ 1 por metro cúbico, causando impacto tarifário da ordem de 20% no consumidor final, algo “fora da realidade”. No futuro breve, a União é quem ainda paga a conta.

Visita presidencial acompanhada a distância

O agricultor e aposentado Antônio Martins dos Santos, de 74 anos, mora na localidade do Sítio Lagoa Preta, na cidade de Penaforte, no extremo sul do Ceará. Na manhã de ontem, o homem saiu de casa para acompanhar, a alguns metros dali, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acionar o sistema de liberação das águas do Rio São Francisco, resultado de um projeto que durou 12 anos.

O agricultor, porém, não tem lembranças muito positivas do Projeto de Integração do Rio São Francisco (Pisf). Isso porque, em 2014, ele viu parte do seu terreno ser desapropriado para a construção de uma das Vilas Produtivas Rurais (VPRs), que fazem parte do empreendimento.

Mesmo assim, Antônio Martins acordou cedo e ficou em pé, ao lado do canal, por mais de duas horas. Com uma máscara no rosto, os olhos se voltaram à passagem da água do Velho Chico ao lado de sua casa. “Para nós, isso aqui (a água) não vai chegar não. Ela vai para a Capital. E olha que eu mesmo moro ali, tenho propriedade e preciso”, desabafa o agricultor.

Ao lado dele, o também agricultor José Manoel da Silva, de 66 anos, tenta puxar na memória o momento em que começou a ouvir falar do empreendimento.

A certeza é de que, há mais de 10 anos, ele aguardava a passagem da água da Transposição. “Tô nem mais lembrado quando começou a obra”, conta. “Mesmo não chegando pra gente, é uma obra muito boa”, admite. 

Legenda: Agricultores de Penaforte viram, de longe, a chegada das águas ao Ceará
Foto: Antônio Rodrigues

Vindos de outros locais, apoiadores do atual presidente da República também estiveram no local para recepcioná-lo. “A visita dele mostra que está trabalhando pelo Nordeste. Muita gente diz que não trabalha pelo Nordeste. Isso é a prova. A obra é antiga, importante”, aponta o vendedor autônomo Humberto Guimarães.

Ele saiu em um grupo com 20 pessoas de Teresina, capital do Piauí, para observar a inauguração do empreendimento no Ceará e apoiar o presidente. O Piauí não é um dos estados beneficiados pela integração das bacias. De lá até Penaforte são 650 km ou 10 horas de viagem.

Além do grupo piauiense, outras pessoas se amontoaram na porta do canteiro de obras da cidade de Penaforte, aguardando um possível cumprimento de Bolsonaro. Havia grupos de Mossoró (RN), Cajazeiras (PB) e de municípios cearenses, como Juazeiro do Norte, Cariús, Brejo Santo e Missão Velha.

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