Uma das principais ligações entre os bairros Benfica e Parangaba é a avenida José Bastos, com 4,4 quilômetros (km) de extensão. Ainda que praticamente metade do trajeto receba o nome de Américo Barreira, foi sob o nome de José Bastos, no percurso completo, que se consolidou o chamado 'Corredor do Automóvel', alcunha que designa a via com as dezenas de revendedoras de veículos seminovos e usados, presentes inclusive em seus arredores.

Essa vocação é histórica e remonta aos anos 1970, época em que surgiu a primeira revendedora. Naquele período, a região não era tão densamente povoada e muito menos urbanizada. Os contornos da Lagoa da Parangaba eram mais rurais, e o transporte de passageiros entre Fortaleza e Crato ainda podia ser feito de trem, por meio da ferrovia que até hoje margeia a avenida. 

Mais de 50 anos depois, a história é quase toda diferente: a expansão demográfica de Fortaleza aproximou a região de áreas mais centrais, ainda que ela mantenha características periféricas. A ferrovia de viagem de passageiros deu lugar à Linha Sul do Metrô de Fortaleza (Metrofor), e a urbanização da Lagoa da Parangaba é uma realidade.

O que não mudou foi a revenda de carros da José Bastos, que atualmente somam aproximadamente 120 lojas, de acordo com dados do Sindicato dos Revendedores de Veículos Automotores do Estado do Ceará (Sindivel).

Resistindo, mas se adaptando, às rápidas transformações no comércio de veículos, o que faz a avenida José Bastos manter pulsante a denominação de Corredor do Automóvel de Fortaleza? O Diário do Nordeste esteve no local para tentar entender a questão.

Este conteúdo integra uma série de reportagens sobre as transformações econômicas das principais avenidas de Fortaleza. Antes da José Bastos, foram publicadas reportagens sobre as Avenidas Augusto dos AnjosBarão de StudartBezerra de MenezesGodofredo MacielGomes de MatosMonsenhor Tabosa e Sargento Hermínio.

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Corredor automotivo de propósito: revendedoras se empilham para ter força juntas

Não existe uma denominação oficial de 'Corredor do Automóvel' para a José Bastos. As revendedoras foram surgindo gradativamente ao longo dos oito bairros que a via recorta entre 1970 e 1980, estabelecendo assim o primeiro espaço dedicado quase que exclusivamente para a revenda de veículos.

É um corredor automotivo. As lojas se encontram umas próximas das outras exatamente para trazer um maior fluxo de clientes. A gente não tem preferência. No mercado de carros, a gente compra oportunidade".
Felipe Carneiro
Revendedor de veículos na avenida José Bastos

Um dos mais novos no local é o empresário Felipe Carneiro. Ele, que chegou em 2023 para montar a revendedora que leva o seu nome, considera proposital a multiplicidade de lojas de veículos usados na via.

Felipe Carneiro também observa que os carros procurados pelos consumidores têm quilometragem de 30 mil a 60 mil km rodados: "Recentemente vendi um Hilux SW4 2008, em bom estado de conservação. Tem quase 20 anos de uso, mas isso não significa nada. Se o carro estiver bom, dá para vender tranquilo aqui na José Bastos", detalha.

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Legenda: Seja na parte que se chama José Bastos ou na Américo Barreira, carros usados são marca da avenida
Foto: Ismael Soares

Do interior a capital: sonho do carro próprio atrai cearenses de fora de Fortaleza

Seja do viaduto Deputado Edson Queiroz Filho, que marca o início da avenida, até o terminal de ônibus da Lagoa, no fim da via, basta olhar para os dois lados da José Bastos em quaisquer que sejam os sentidos. Quase sempre há uma revendedora de veículos aberta.

Sob o nome de José Bastos, as lojas estão concentradas no sentido Benfica-Parangaba. No outro lado, começa a parte de superfície da Linha Sul do Metrofor, com três estações: Padre Cícero, Porangabussu e Couto Fernandes. Um dos únicos empreendimentos de revenda de veículos que se localiza nessa parte é o Auto Shopping José Bastos.

"É um ponto de entrada e de saída com alto fluxo de pessoas que vêm do interior. Acaba sendo atrativo e sempre um ponto com revenda de veículos. Aqui pega o pessoal que vem do Anel Viário, da Mister Hull e Bezerra de Menezes, por exemplo. Tudo isso acabou influenciando com que a avenida virasse o que é hoje. A gente começou justamente com o intuito de ter várias lojas em um ponto só. A gente não tem só a loja de carro, temos tudo em um só lugar", define Nirvando Júnior.

Surgido em 2003, o espaço funciona como uma espécie de shopping: reúne todo o ecossistema de compra e venda de carros seminovos e usados, para o cliente entrar e já sair com o veículo. São cerca de 30 lojas revendedoras atuando no local.

Nirvando Júnior, um dos administradores do local, explica a decisão de estruturar dentro do mesmo espaço revendedores, bancos e departamentos de trânsito, como forma de associar o máximo de força comercial possível para atrair os clientes, sobretudo àqueles que vêm do interior.

Ele ainda explica que os juros altos, com a taxa básica (Selic), atualmente fixada em 15% ao ano, dificultam a troca dos veículos. Com um estoque de mais de 1 mil veículos frequentemente repostos, Nirvando afirma que, por mês, a média de automóveis vendidos gira em torno de 150 a 170 unidades.

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Legenda: Auto Shopping José Bastos compila revendedores e ecossistema de revenda no mesmo lugar
Foto: Ismael Soares e Google Mpaps/Reprodução

No Auto Shopping, ele diz que, atualmente, "o que está circulando muito são os carros utilitários e seminovos". A preferência dos clientes tem sido por modelos fabricados imediatamente antes da pandemia, de 2019 e 2020.

"O carro popular não existe mais. O 0 km está acima dos R$ 70 mil. A gente observa um crescimento da venda do HB20, da Strada, do Argo", conta Nirvando.

Compra, vende, troca e financia: rotatividade de veículos é a marca da José Bastos

Por todo lugar, o trânsito de veículos usados é frenético, para além do alto fluxo da via. Muitos dos revendedores da avenida compartilham a prática de várias transações às vezes com o mesmo automóvel.

É o que comenta Rodrigo Alves, diretor comercial da JM Veículos. O estabelecimento funciona na avenida há 25 anos, e ele já perdeu as contas de quantas vezes comprou, vendeu, trocou e financiou o mesmo veículo para diferentes clientes.

"O segmento de veículos tem uma rotatividade gigante. Para quem é comerciante, é uma coisa que gira muito rápido e que se adapta a todos os setores. Carro não é mais um luxo, e sim uma necessidade", declara Rodrigo.

A loja em que ele trabalha é uma das maiores de toda a José Bastos e até chega a vender um ou outro carro novo, mas isso é exceção. O grande apelo mesmo fica para os veículos usados, incluindo modelos dos anos 2000, atualmente chamados de 'velhinhos'.

"Tem uma busca bem maior do carro usado do que pelo carro zero pela questão da facilidade, da mobilidade, do recebimento do carro. Quem vai comprar um carro zero, tem a questão da demanda e da espera. Isso ajuda muito no usado, porque a gente já tem disponível o produto à pronta entrega para o nosso cliente", explica Rodrigo Alves.

Foto que contém interior de revenda de carros na avenida José Bastos
Legenda: Rotatividade é peça-chave para prosperidade da revenda de carros na avenida José Bastos
Foto: Ismael Soares

A JM Veículos emprega 60 funcionários e, por mês, chega a vender 240 carros usados. Na revendedora, existe uma busca grande por veículos sedã, considerados pelos clientes mais espaçosos e também utilizados em transporte por aplicativo.

"Percebo que o mercado de usados se engajou muito, principalmente pela facilidade de se chegar com moto ou carro usado, de abrir uma carta de crédito, de fazer uma entrada no cartão de crédito. Hoje a busca está pelo carro mais em conta, geralmente de 2010 até 2015, bem mais do que pelo carro mais novo, de 2021 a 2025", relata Rodrigo Alves. 

De portas abertas para o cliente: revendedor resiste às mudanças

Ao lado da Lagoa da Parangaba, funciona um galpão que atua de maneira similar ao Auto Shopping. Uma das oito revendedoras do espaço é a Edgar Veículos, administrada desde 1990 por Edgar Monteiro. 

Natural de Aracoiaba, ele chegou a Fortaleza ainda nos anos 1980, quando começou a trabalhar como revendedor de veículos na José Bastos. Na virada para os anos 1990, montou a própria loja.

Os clientes estão diminuindo. Aumentou muito o número de lojas nos bairros. Antigamente o fluxo de clientes era maior, mas caiu uns 20%. Chegava a vender de 15 a 20 carros por mês. Hoje estamos vendendo na média de 10 a 12. O cliente chega e compra aqui. A gente vende mais é para os jovens".
Edgar Monteiro
Revendedor de veículos na Avenida José Bastos

Edgar já perdeu as contas de quantos carros vendeu na vida, mas fez uma estimativa: pelo menos 5 mil de seminovos e usados já saíram da revendedora dele. Isso inclui veículos como os icônicos Brasília e Fusca, da Volkswagen, e incontáveis Uno de 1ª geração, da Fiat.

O modelo das vendas segue intocável ao longo dos anos: "Não tenho nenhum carro anunciado, todos são vendidos na porta", relata. Ele admite que não trabalha com a internet para atrair os consumidores e subir as vendas, mas os impactos já são sentidos na sua rotina.

Avenida José Bastos é exemplo de atração geradora de negócios

O levantamento da Sindivel considera que, entre os anos 1990 e 2000, a via vivenciou o auge das revendedoras de veículos, chegando a ter mais de 140 lojas do gênero.

Atualmente, o número de estabelecimentos pode até indicar uma leve queda, mas direciona o tipo de negócio ainda mais para a estagnação, mantendo as boas margens.

Os primeiros lojistas que vislumbraram a José Bastos como via de ponto de venda de carros usados eram uma atração geradora. Eles se viram com força suficiente. Os outros viram que, à medida em que iam se colocando próximo a eles, traziam para o consumidor a possibilidade da comparação. A visitação entre lojas vizinhas dá ao consumidor mais possibilidade de encontrar o que deseja, e aos vendedores, mais chance de fazer a oferta que satisfaz o consumidor". 
Cláudia Buhamra
Professora de Marketing da UFC

A José Bastos é definida em essência como atração de vizinhança, conforme conceitos de negócios detalhados por Cláudia Buhamra, professora de Marketing da Universidade Federal do Ceará (UFC), mas o nascimento do Corredor do Automóvel na via supera essa questão e traz uma visão mais ampla.

A especialista reforça que os três tipos de conceito de atração do marketing (geradora, de vizinhança e suscetível) estão presentes na avenida. Além das revendedoras de grande e médio porte, oficinas, sucatas e lojas de acessórios automotivos entrecortam os estabelecimentos principais. 

"Esses outros negócios orbitam o negócio principal, que é a revenda de carro, aproveitando-se da disposição do consumidor de aproveitar esse outro negócio, embora seja de outra natureza", diz.

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Legenda: Negócios diretos e indiretos que orbitam a cadeia de revenda de carros despontam na José Bastos
Foto: Ismael Soares

Com o próprio desenvolvimento de Fortaleza como uma metrópole, a vocação da José Bastos, na visão de Cláudia Buhamra, colabora para que a avenida permaneça ao longo dos próximos anos como um corredor de revenda automotiva, e nem mesmo o surgimento de outros polos na cidade e na Região Metropolitana deve mexer nesta condição.

"Os bairros de Fortaleza assumem características de microregiões e quase microcidades, que acabam não interferindo umas nas outras. Isso valoriza ainda mais essa localização específica de negócios em bairros afastados, como na José Bastos. São negócios do mesmo dono, mas que, para abranger uma geografia de mercado maior, acabam abrindo lojas diferenciadas do mesmo ramo em pontos diferentes da cidade", classifica. 

Internet como aliada: revendedores atraem clientes do meio digital

Alguns empresários ouvidos pela reportagem do Diário do Nordeste defenderam que é preciso se reinventar no setor de revenda de veículos. Atrair novos públicos, na visão deles, é essencial para a sustentabilidade do negócio e para aumentar a rotatividade dos produtos.

A pessoa que vem do interior e frequenta a cidade já tem é um cliente fiel, mas o maior ponto mesmo hoje é a internet, a divulgação. Não adianta mais esperar o cliente vir porta a porta, tem que usar as redes sociais e as ferramentas digitais".
Nirvando Júnior
Administrador do Auto Shopping

"Cada loja aqui é muito bem frequentada, mas o marketing atualmente é muito importante para trazer gente para dentro das lojas. A gente tem um networking muito forte por meio das redes sociais", enfatiza Felipe Carneiro.

Vale lembrar que a vocação de Corredor do Automóvel em Fortaleza não está mais só restrita à avenida José Bastos. Vias como Miguel Dias e Rogaciano Leite, no entorno do Guararapes, também despontam para a revenda de carros usados. 

Da Feira do Automóvel do Monta a Instagram e TikTok: revendas da José Bastos se tornam históricas

Dados da Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores (Fenauto) revelam que, entre janeiro e julho deste ano, a venda de carros usados no Brasil subiu 14,2% no comparativo com o mesmo período do ano passado. 

Éverton Fernandes, presidente do Sindivel, recorda que a primeira loja da José Bastos foi em 1974: a Feira do Automóvel do Monta. Naquela época, as revendedoras de carros ficavam localizadas no Centro de Fortaleza. 

"Depois outras foram chegando, e a região foi se consolidando como uma referência de quem vinha do interior e não queria ir para o Centro e ter uma opção de uma loja do uma outro lado da outra. O auge da avenida foi nos anos 1990 e 2000, se pondo de referência na cidade, mas ela ainda é uma referência nos carros usados", esclarece.

Em cidades como Maracanaú e Pacajus, os revendedores estão se organizando para aumentar o quantitativo das lojas. São estabelecimentos que, segundo Éverton Fernandes, não necessariamente têm o mesmo tamanho e a mesma magnitude da José Bastos, mas contam com dinâmicas parecidas.

No Ceará, Éverton Fernandes afirma que esse crescimento pode chegar a 20%, mas não é percebido igualmente pelos revendedores. Ele frisa que vários dos lojistas ainda carecem de evolução na forma de comercializar os veículos.

Tem gente trabalhando no modelo primitivo de negociação, não em busca do cliente que está chegando pelo celular, pelas redes sociais. Os novos lojistas estão se dando muito bem. Os clientes já chegam com essa comunicação diferenciada: não vão mais pelo corredor, vão pelo carro que escolheu, já vão na loja sabendo tudo sobre, e precisamos nos aprimorar nesse sentido. A José Bastos pode continuar sendo por muito tempo um grande corredor, mas os empresários mais antigos têm de se reciclarem.
Éverton Fernandes
Presidente do Sindivel

Ainda que a alta dos juros esteja dificultando uma subida maior na venda de veículos, é essencial que o automóvel novo saia da concessionária, principalmente por se tratar de um negócio de "funcionamento em cadeia".

"Se a pessoa vai comprar um carro novo, mas não conseguir vender o usado, não compra o novo. Precisamos que os novos sejam vendidos para que, daqui a alguns anos, ele esteja no mercado também", alerta Éverton Fernandes.

Qual o futuro da avenida José Bastos?

Mesmo com as mudanças evidentes ao longo dos últimos anos e com a crescente digitalização do negócio, os revendedores históricos da via precisam buscar se reinventar, assim como fizeram no passado, como relembra Christian Avesque, especialista em varejo e professor da Faculdade CDL.

"Alguns empreendedores intuitivamente começaram a comprar carros que estavam com mais anos de uso e começaram a trabalhar esse mercado que não estava sendo desenvolvido pelas grandes empresas. Eles se apropriaram dessas frotas e conseguiram junto a bancos parcelas que cabiam no bolso dos consumidores de classe C", pontua.

Ele e Éverton Fernandes ressaltam que o futuro desse tipo de negócio é o associativismo, a exemplo do Auto Shopping, ou até mesmo do Shopping do Automóvel, no bairro Guararapes.  

Foto que contém inúmeros veículos à venda na José Bastos
Legenda: Revendedores da José Bastos precisam de uma comunicação mais próxima do público de hoje para manter vendas aquecidas, dizem especialistas
Foto: Ismael Soares

"Os pequenos lojistas devem ou ser comprados ou ser adquiridos pelos Auto Shoppings. Para que o lojista mantenha o ponto de venda, o custo dele é muito alto", projeta Christian Avesque.

"A presença do Auto Shopping garante uma quantidade de carros grande. As revendas que estão no entorno precisam se aprimorar para competir com o Auto Shopping, com produtos e metodologias melhores para poder se comunicar com o público", finaliza o presidente do Sindivel.