Ferrovia abandonada entre Fortaleza e Crato tem pontos de lixo, curral de animais e trilhos 'podres'
A devolução da malha não operacional no Ceará pela Ferrovia Transnordestina Logística (FTL) é negociada pelo Governo Federal, de acordo com a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT). Ao longo de mais de 600 quilômetros (km) de linha férrea, o que se percebe é o abandono daquela que já foi a principal ligação ferroviária entre Fortaleza e Crato.
No percurso, o trajeto é marcado por uma gradual situação de deterioração. A situação fica mais evidente logo ao lado do Centro de Manutenção da Companhia Cearense de Transportes Metropolitanos (Metrofor) no bairro Vila das Flores, em Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza. No local, a ferrovia praticamente some em meio à vegetação.
Vale lembrar que o percurso compreende a maior linha férrea do Estado do Ceará e que, até o início do século XXI, era marcado por um uso intenso em diversos trechos, principalmente, no escoamento de produção agropecuária.
A reportagem do Diário do Nordeste percorreu boa parte do trajeto da ferrovia administrada pela FTL, mas que atualmente encontra-se abandonada quase que integralmente. Como já revelado pela empresa, não há interesse em aproveitar o percurso comercialmente, seja para transporte de cargas ou de passageiros.
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As marcas do desuso duram pelo menos 36 anos. Em 1988, ainda sob administração da antiga Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), foi desativado o transporte de passageiros. Mais tarde, em 2013, o abandono definitivo: já privatizada, a ferrovia teve o transporte de cargas interrompido até Iguatu.
A ferrovia que interliga Fortaleza ao Crato compõe a malha abandonada da FTL e fazia parte da Estação de Ferro de Baturité. Inaugurada em 1873, fazia a conexão ferroviária entre a capital cearense e Baturité. Em 1926, o prolongamento em direção ao sul do Ceará fez a linha férrea chegar ao Crato, completando os 600 km.
Essa linha marcou a primeira ferrovia construída no Ceará para o transporte de mercadorias em direção ao Cariri. A previsão era uma interligação de pouco mais de 100 km entre Fortaleza e Baturité, mas o trajeto foi sendo construído gradativamente:
- 1873 — primeiro trecho inaugurado ligava o Centro (Estação Central) de Fortaleza até o Arronches (atual Parangaba);
- 1876 — do Arronches, trilhos foram prolongados até o Centro da Pacatuba;
- 1877–1878 — grande seca da segunda metade do século XIX no Ceará força paralisação da ferrovia;
- 1882 — linha férrea, enfim, alcança Baturité;
- 1926 — 53 anos após o início da operação, ferrovia chega ao Crato.
Ao mesmo tempo, começou a ser construída, a partir de Camocim, a Estrada de Ferro de Sobral. Também em 1926, o trecho ligava Fortaleza a Crateús, passando pela cidade da região Norte do Estado. Essa é atualmente a malha operacional da FTL, que interliga a Capital a São Luís passando pelo Piauí.
Conforme relatado em setembro pelo Diário do Nordeste, a Estrada de Ferro de Baturité, assim como a de Sobral, transportava passageiros e mercadorias. A prioridade, no entanto, era para cargas vindas principalmente do interior do Estado (sobretudo Pacatuba e Baturité). Os principais produtos escoados eram café e algodão.
Do uso protocolar ao abandono em questão de minutos
Na capital cearense, toda a ferrovia administrada pela Ferrovia Transnordestina Logística S.A. é chamada de "malha operacional", isto é, utilizada pela empresa exclusivamente para o transporte de cargas.
O trecho inicia nas proximidades do Porto do Mucuripe e segue, em paralelo com a linha Nordeste (VLT Parangaba-Mucuripe) do Metrofor até a Parangaba. A partir daí, segue lado a lado à linha Sul (Chico da Silva — Carlito Benevides) até o centro de manutenção Aracapé da FTL, nas proximidades do 4º Anel Viário, já no limite dos municípios de Fortaleza e Maracanaú.
A partir desse local, existe uma bifurcação. A malha operacional segue pelo Anel Viário em direção a Caucaia ao encontro da linha Oeste (Moura Brasil — Caucaia) do Metrofor. Esse trajeto interliga a capital cearense, mais precisamente o Porto do Mucuripe, passando pelo Porto do Pecém, indo até o Porto de Itaqui, em São Luís (MA).
O restante da ferrovia segue em paralelo com o Metrô de Fortaleza até a Vila das Flores. O local é marcado por ser a única parada do Metrofor em Pacatuba e ainda a última da linha Sul.
Na sequência, existe o centro de manutenção dos veículos administrados pelo Metrofor, aproximadamente 1 km a frente da estação Carlito Benevides no sentido da região central do município.
Enquanto isso, a ferrovia da FTL começa a evidenciar os sinais do descaso e do abandono. Imediatamente ao lado do centro de manutenção da Vila das Flores, uma densa vegetação rasteira cresce sobre os trilhos, escondendo a linha férrea.
Apodrecimento e apagamento: trilhos começam a desaparecer
Basicamente todos os dormentes (materiais geralmente retangulares que ficam embaixo dos trilhos e fazem a sustentação da ferrovia) que ficam sob os trilhos da malha operacional da FTL no Ceará são de madeira, que já começa a evidenciar os sinais de desgaste.
No contraste com as linhas de metrô e VLT, cujos dormentes são de concreto, a situação da linha é de certo abandono, com lixo e vegetação em alguns pontos. No comparativo, os trajetos administrados pelo Governo do Ceará estão em melhor estado de conservação, principalmente pelo uso quase que diário e constante.
Nas estações da linha Sul do Metrofor a partir da Parangaba, existe um muro separando as três linhas férreas: as duas sob administração do Governo e a malha não operacional da FTL.
A partir da Vila das Flores, tanto os dormentes de madeira quanto os trilhos denunciam haver mais de um século sem grandes alterações estruturais. Pedaços apodrecidos, vegetação sobreposta e trechos faltando, em sinal de vandalismo.
Ao longo da CE-060, rodovia estadual que interliga Fortaleza a Penaforte, na divisa com Pernambuco, a ferrovia acompanha o trajeto rodoviário. Nos cerca de 10 km que separam a Vila das Flores do Centro de Pacatuba, a linha férrea some na paisagem, e é utilizada como assento e até mesmo curral para animais.
Estação vira cartório enquanto ferrugem passa pelos trilhos
Alternando trechos com e sem trilhos e dormentes completos, a ferrovia chega ao Centro de Pacatuba. Próximo à rodoviária da cidade, ainda resiste a antiga Estação Ferroviária do município.
Bastante preservada, a estação, no entanto, não é um museu que recorda o antigo embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. Funciona um cartório no espaço, mantendo boa parte da antiga estrutura.
Um dos funcionários é o auxiliar de cartório João Marcos. Morador de Pacatuba, ele chegou a utilizar a linha férrea para transporte de passageiros até Quixeramobim e Senador Pompeu, no Sertão Central nos anos 1980, e relembra com carinho das viagens.
Era uma viagem muito gostosa. Cheguei a viajar até Quixeramobim, depois Senador Pompeu, no começo dos anos 1980. Nessa época, eu morava no Montese, em Fortaleza, e ia para estação Parangaba. Pegava o trem para o interior, já fui com meus irmãos. Aqui era estação. Tinha a estação da Monguba, Maracanaú e essa".
O trilho ainda percorre a lateral da estação, mas cada vez menos intacto. Diversos buracos nos trilhos pela ferrugem são visíveis, além da ocupação do espaço. Placas de "pare, olhe e escute" alertam que, no passado, o trajeto era funcional.
Movimento tenta reativar 85 km de ferrovia entre Pacatuba e Baturité
A construção da Estrada de Ferro de Baturité foi, principalmente, para escoar a produção agropecuária da região serrana nas redondezas de Fortaleza para o antigo Porto da Capital, na região do Poço da Draga e posteriormente no Mucuripe.
Com o abandono da ferrovia pela FTL, após a privatização da RFFSA, o trajeto ficou completamente sem utilização. Um movimento surgido em 2019, porém, tenta reativar parte da maior ligação ferroviária norte-sul do Ceará.
Trata-se da Amigos da Ferrovia Cearense (Aferrce), associação sem fins lucrativos que pretende reativar o trajeto entre a Vila das Flores e o Centro de Baturité para o transporte de passageiros. A ideia é contar com 11 estações da antiga Estrada de Ferro de Baturité, sendo elas:
- Vila das Flores (Pacatuba — Integração com Metrofor);
- Monguba (Pacatuba);
- Pacatuba (Pacatuba — Centro);
- Guaiúba (Guaiúba — Centro);
- João Nogueira (Guaiúba);
- Água Verde (Guaiúba);
- Acarape (Acarape — Centro);
- Amaro Cavalcante (Redenção);
- Antônio Diogo (Redenção);
- Aracoiaba (Aracoiaba — Centro);
- Baturité (Baturité — Centro).
O projeto é capitaneado por Alessandro Nunes, presidente da entidade. Ele reforça que a associação nada mais é do que uma reunião da "segunda geração" de antigos ferroviários que trabalharam na ferrovia.
Temos parentes na família que eram ferroviários, aposentados hoje. Pegamos essa paixão dos nossos parentes e resolvemos nos reunir e reativar esse trajeto. Pensamos que, se está abandonado, por que não fazemos alguma coisa? Foi aí que surgiu a ideia de nos unirmos, fazermos uma associação. Tem outras entidades Brasil afora que começaram do mesmo jeito, obtiveram êxito e estão funcionando, até sem governos mesmo".
Diferente do passado, Alessandro Nunes aponta que a retomada do trajeto entre Pacatuba e Baturité "é para turismo, datas comemorativas e domingos, não é um trem comercial".
O objetivo é partir da Vila das Flores para aproveitar a integração com a estação de metrô e seguir rumo à região serrana, a exemplo do que acontece em locais como o "Trem do Forró", de Caruaru, trem turístico que interliga Recife à Caruaru, ambas em Pernambuco, durante as festas de São João.
Atualmente, não existe nenhum interesse oficial para reativar a ferrovia, principalmente em virtude do sucateamento. Segundo o presidente da Aferrce, as tratativas junto à FTL têm sido promissoras, mas é preciso aguardar os trâmites junto ao Governo Federal para concretizar o objetivo. Enquanto isso, Alessandro Nunes alerta para as condições precárias dos trilhos.
"A FTL foi a primeira empresa que a gente procurou, porque a concessão é dela. Temos até um termo de cessão de um Auto de Linha (veículo ferroviário autopropulsor), eles nos abraçaram e ajudaram desde o início. (...) Depois do Metrofor, na linha Sul, a ferrovia está invadida, levaram cerca de 2 km de trilhos. São poucas das linhas que ainda têm trilhos, e até para limpar, corremos riscos", explica Alessandro.
O que diz a FTL?
Em 1998, a RFFSA foi privatizada e deu origem à Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN). A empresa é uma das percursoras da FTL que, assim como a Transnordestina Logística S.A. (TLSA), é subordinada à sucessora da CFN, a Companhia Siderúrgia Nacional (CSN).
Cabe à FTL administrar toda a malha ferroviária que interliga São Luís a Alagoas até a divisa com Sergipe. Acontece que, ao longo dos anos, a empresa percebeu que não era vantajoso utilizar o tronco Sul da antiga RFFSA no Ceará, bem como os trilhos nos demais estados.
No início da concessão, até tentou-se manter ativa a malha não operacional, mas exclusivamente com transporte de cargas. Com o tempo, a FTL observou que o trajeto foi "originalmente idealizado para transporte de passageiros", e aponta que, antes da concessão, "não receberam investimentos" da administradora, no caso a RFFSA.
Mesmo antes da concessão, vários trechos já apresentavam inviabilidade operacional e comercial, com sérios riscos de acidentes, impossibilitando a operação de trens de carga. Depois, vários desastres naturais causaram severos danos à estrutura implantada. Assim, logo após o início da concessão ou durante o curso do contrato deixou de haver circulação de carga nestes trechos".
Isso inclui os 600 km da ferrovia que interliga Fortaleza ao Crato, bem como mais de 2,4 mil km que conectam o Ceará à Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas. A empresa diz que está discutindo, junto ao Governo Federal, devolver os trechos, em paralelo com a renovação da malha operacional.
"A devolução de 3 mil km de ferrovias que compõem a concessão da FTL vem sendo discutida com o Governo Federal, dentro do Grupo de Trabalho criado para tratar do processo de renovação da concessão da FTL. Este grupo é liderado pelo Ministério dos Transportes e tem participação da ANTT, INFRA e DNIT", ressalta a companhia.
Vale lembrar que, dos mais de 4 mil km de ferrovias que recebeu da concessão, a menor parte (exatos 1.237 km) é considerada "operacional" pela empresa. Ela interliga o Porto do Mucuripe aos portos de Pecém e Itaqui, em São Luís, utilizando as antigas ferrovias Teresina-Fortaleza (com conexão na Estrada de Ferro de Sobral) e São Luís-Fortaleza.
Com muitos trechos com dormentes de madeira, a FTL afirma que alguns deles já estão "em remodelação", substituindo o material por dormentes em concreto, mais resistentes para o transporte. Assim como o trecho entre Fortaleza e Cariri, parte da linha férrea é estudada para o transporte de passageiros, interligando a capital cearense a Sobral.