Fátima Dourado: a dor, a luta e a delícia de erguer a bandeira da Esperança

Em entrevista à série Dona de Si, a médica psiquiatra conta sobre sua história de luta em favor das pessoas com autismo e suas famílias.

Escrito por Jeritza Gurgel ,
Legenda: Maria de Fátima Rodrigues de Andrade Dourado, 66 anos, casada com o psicólogo Alexandre Costa e Silva e mãe de 6 filhos: Alexandre, Giordano Bruno, Gustavo, Pablo, Gabriel e Maria Teresa, sendo 3, autistas
Foto: Divulgação

E foi através do autismo que Fátima Dourado ganhou o mundo, virou capa de revista e alcançou conquistas mostrando que o autismo é parte desse mundo e não um mundo à parte. 

Foi aprendendo a respeitar o tempo do outro que compreendeu a forma de inclusão mais bonita que se pode oferecer a alguém. Uma mulher que levantou a bandeira da esperança, acolheu o amor e colocou dentro de uma Casa. 

Conheçam Maria de Fátima, essa ​"mulher que realizou seus filhos no caminho do conhecimento divino", Dourado, que evoca felicidade e esperança. Essa mulher que é Dona de Si. 

Legenda: Fátima Dourado com o marido Alexandre e os seus 6 filhos.
Foto: Arquivo pessoal

Quem é Fátima Dourado? 

Sou uma mulher nordestina, nascida em Pedra Branca, no sertão do Ceará. Sempre digo que, muito cedo, me acostumei com a luz e os desafios da terra onde nasci.  A fé em Deus e a possibilidade de contribuir na construção de um mundo mais justo e livre têm  fortalecido e embalado meus sonhos,  desde menina. Na adolescência comecei a dar minha contribuição nos movimentos sociais:  participei do movimento acadêmico, na faculdade de medicina; dos movimentos feministas, como a primeira presidente do Conselho Cearense dos Direitos da mulher, dentre outros.  Sou médica psiquiatra e  tiro do meu trabalho não apenas o sustento  do corpo, mas o alimento da minha alma.  Em 1993, iniciei a luta por políticas públicas para pessoas com autismo e suas famílias. Então, com o estudo e  a produção de conhecimento sobre o tema, bem como o atendimento aos meus pacientes e  a supervisão de profissionais e equipes que trabalham com autismo,  tem sido o foco principal da minha atuação profissional. Na vida pessoal, sou casada com o Alexandre, o grande amor da minha vida, que é psicólogo e psicoterapeuta. Juntos dividimos o cuidado com os filhos, o trabalho da Casa da Esperança, o amor, a espiritualidade, a paixão pela literatura, pelo cinema, o compromisso com a  ciência, os desafios e a alegria de  viver. Alguns  dos meus seis filhos  são autistas e esse tem sido um fato determinante nas minhas escolhas e atuações pessoais e profissionais. 

Legenda: Fátima Dourado com o marido Alexandre Costa e Silva comemorando bodas de prata em Veneza.
Foto: Arquivo pessoal

Qual a sua formação profissional? 
 

Sou médica, formada pela Universidade Federal do Ceará, psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Médica Brasileira, com atuação na psiquiatria da infância e da adolescência. Tenho me dedicado com especial atenção, nos últimos  30 anos, à clínica  do autismo e outros transtornos do neurodesenvolvimento.  Em 1993, junto com outras mulheres, mães de crianças com autismo, criei na cidade de Fortaleza, a Casa da Esperança, uma organização especializada no diagnóstico e acompanhamento de pessoas com autismo e suas famílias, que hoje atende mais de 600 crianças, jovens e adultos e realiza mais de mil procedimentos  ambulatoriais  por dia, com equipe multiprofissional, desde a estimulação precoce, oferecendo suportes individualizados, em todas as fases da vida. Graças a Deus e a uma equipe competente de jovens especialistas, os serviços oferecidos pela Casa da Esperança são, hoje, referências nacionais e  campos de estágio e formação para quem deseja trabalhar com pessoas autistas. 

 

A senhora teve 6 filhos, sendo 3 deles com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Como foi receber esse diagnóstico nos anos 90? 

Foi difícil! Naquela época, o autismo era pouco conhecido, inclusive na comunidade médica, não existiam leis que garantissem direitos para essas crianças, que logo eram encaminhadas para escolas especiais, não podendo estudar junto com os seus pares cronológicos, não haviam centros de terapia especializados, estimulação precoce, acompanhamento intensivo. O prognóstico era sombrio, o autismo era visto como uma verdadeira tragédia. 

E como mãe de autista, como a senhora buscou orientações? 

Busquei ajuda médica. Fiz a mesma peregrinação que muitos pais, ainda hoje, fazem em busca de diagnóstico e suporte terapêutico para os seus filhos. Levei para os melhores especialistas que existiam na época. O Giordano e o Pablo, meus filhos, fizeram  fonoaudiologia e  frequentaram uma escola especial, que era praticamente a única que aceitava crianças maiores com autismo.  

Como partiu a iniciativa de erguer a Casa da Esperança? 

Aos treze anos, o Giordano (filho) apresentou novos desafios: limiar de frustração baixo, desenvolvendo agressividade, quando frustrado. Em junho de 1993, fui convocada para uma reunião na escola e me foi colocado que, a partir de então, o Giordano não poderia mais frequentá-la. Foi o dia mais difícil da minha vida. A coordenadora disse: “sinto muito, Fátima. Eu sei que não existe outra opção para o Giordano em Fortaleza”.

Tudo  levava a crer que, fora da nossa família, não havia mais lugar para o meu menino no mundo. Não sei de onde eu tirei forças mas, respondi: “Não se preocupe, em agosto, o Giordano vai estar em um outro espaço, do qual você vai ouvir falar muito ainda, vai se chamar Casa da Esperança”.  Haviam me tirado tudo, restara a esperança.
 

 

Legenda: Fátima Dourado com o filho Giordano Bruno.
Foto: Arquivo pessoal

 

Junto com Giordano, outro jovem também fora convidado a se retirar. No dia seguinte, fui procurada por outras mães, cujos filhos eram atendidos  na mesma instituição. De repente, ficou clara, para todas nós, a dimensão da nossa vulnerabilidade. Precisávamos inverter aquela lógica: não eram  as crianças e jovens autistas que precisavam se ajustar às expectativas dos profissionais, ao contrário disso, precisávamos de um espaço terapêutico, cujos profissionais se especializassem e criassem alternativas terapêuticas adequadas às necessidades das crianças e jovens com autismo . A Casa da Esperança nasceu nesse encontro. 

Quais eram suas expectativas na época? 

No início, a expectativa era partilhar os desafios e as estratégias encontradas no convívio com  nossos filhos e  nossas famílias. Eram apenas 10 crianças e jovens, cada um diferente do outro. De partida, compreendemos que não havia um único método capaz de abarcar aquele fenômeno tão múltiplo. Criamos a figura do agente terapêutico, que daria suporte a cada cliente e contratamos uma equipe multiprofissional, um psiquiatra, um psicólogo, um terapeuta ocupacional, uma professora e uma assistente social. Montamos um grupo de estudos que se reunia, à noite, na minha casa. Pouco tempo depois, centenas de famílias estavam na nossa porta, em busca de ajuda.  O espaço ficou pequeno, criamos o projeto ”Amigos da Diferença” e conseguimos viabilizá-lo como o apoio da Secretaria de Educação do Estado. Capacitamos 100 jovens agentes para dar suporte aos jovens em suas casas, durante 4 horas por dia e oferecíamos o atendimento ambulatorial especializado, na sede da Casa da Esperança. Paralelamente, oferecíamos terapia de grupo (psicodrama) para pais e irmãos de autistas e iniciamos um projeto de educação continuada para os profissionais. O material de treinamento virou o primeiro livro, escrito por mim e Alexandre, que levou o nome do projeto, Amigos da Diferença. Desde o início, para nós, o autismo não era apenas uma deficiência, mas uma diferença, um jeito de ser, digno de respeito, como qualquer outro. 

 

Legenda: São João na Casa da Esperança
Foto: Arquivo pessoal

As metas iniciais foram, em muito, superadas. Em pouco tempo, a Casa era a organização que atendia o maior número de autistas no país. Junto com outras organizações do país inteiro, criamos a ABRAÇA, Associação Brasileira por Ação por Direitos da Pessoa com Autismo, que tive a honra de presidir. Realizamos congressos nacionais e internacionais. Ganhamos prêmios. Fizemos parcerias importantes. A Casa da Esperança já foi visitada por autistas famosos, como Jim Sinclair, um dos criadores do movimento da Neurodiversidade, Steve Shore, músico e arte-terapeuta autista, e por grandes autoridades da comunidade médico-científica, como Ami Klin, à época,  coordenador do departamento de autismo da Universidade de Yale.   

Legenda: Fátima Dourado recebendo o prêmio Cláudia e sendo aplaudida por Marília Gabriela.
Foto: Divulgação

 

Existe algum lema criado a partir da sua vivência na Casa da Esperança? 

A frase não é minha, é do Sartre, mas é um lema importante: “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim”.   

 

Que projetos são realizados na Casa da Esperança? 

Hoje a Casa da Esperança desenvolve projetos nas áreas de saúde, profissionalização, educação especializada, formação e supervisão de profissionais que trabalham ou pretendem trabalhar com autismo, produção e difusão de conhecimentos e defesa de direitos. Atendemos a pessoas de todas idades (temos desde bebês de 1 ano e 1mês a pessoas de meia idade), de todo o espectro (de pessoas não verbais a poliglotas), de todos os níveis de formação acadêmica (desde pessoas com deficiência intelectual severa a doutores e professores universitários). Antes da pandemia, oferecíamos além do atendimento ambulatorial especializado com médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, educadores físicos e psicopedagogos, o acompanhamento intensivo, de 4 h/dia nos setores de estimulação precoce (1 a 6 anos) e no circuito de estimulação neurossensorial (7 a 12), além do AEE (atendimento educacional especializado), no contraturno da escola regular. Para jovens e adultos, temos as oficinas terapêuticas profissionalizantes e as vivências terapêuticas, além do grupo Neurodivergentes, grupo de ajuda mútua e suporte terapêutico para jovens e adultos com autismo leve. 

Legenda: Fátima Dourado com um grupo de crianças da Casa da Esperança e com jovens e adultos com autismo.
Foto: Divulgação

Com a pandemia, suspendemos os atendimentos em grupo, reduzimos o horário de atendimento por paciente de 4 para duas horas por dia e introduzimos o teleatendimento, para os procedimentos que podem ser realizados dessa forma.  

A senhora chegou a adotar outras crianças? 

Sim, dos meus seis filhos, dois são adotivos. São os meus dois caçulas,  a minha única menina tem autismo. Sempre quis ter uma filha e quando ela chegou, foi um encontro de almas, um momento extraordinário, uma epifania. Era uma tarde comum de trabalho, quando a secretária me disse, a próxima cliente tem dois anos e seis meses de idade, é autista e veio da creche tia Júlia. Eu disse, antes de vê-la:  a minha filha chegou, pode chamar o pai dela. O Alexandre veio até o meu consultório e olhou para a Teresa e reconheceu: é a nossa filha.

Legenda: Fátima Dourado com a mãe Perpétua e a filha, Teresa, ainda pequena.
Foto: Acervo pessoal

A Maria Teresa agora tem 15 anos, autismo leve, estuda, namora, participa do grupo neurodivergentes, gosta de ser autista e quer ser bióloga. 

Por que escolher uma criança autista para adotar? Não sei, a gente não escolhe quem vai amar, apenas reconhece o amor, quando ele chega. Há muito, eu desisti de querer explicar tudo. Só sei que sempre soube que teria uma filha e ela chegou. Agora, a nossa família está completa. 

Como foi esse trilhar até hoje? 

Como diria Caetano: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Olho para trás e penso na menina magrinha de 14 anos que terminou o ginásio e queria ser médica e escreveu seus primeiros textos de protesto, porque não tinha curso científico para garotas na sua cidade. Lembro da jovem universitária que sonhava com o socialismo, em plena ditadura e da jovem mãe que fui com uma penca de filhos, das crises do Giordano, de todos os desafios que passei na minha família e na Casa da Esperança. Não foi fácil chegar até aqui.  

Legenda: Fátima Dourado no lançamento do último livro, Autismo e Cérebro Social, entre Ângela Marinho e Emília Augusta.
Foto: Divulgação

Mas, todos os dias, atendo mulheres anônimas, muito mais guerreiras do que eu, mães de crianças autistas, com mais quatro, cinco filhos, desempregadas, sobrevivendo sem renda, de um mísero auxílio emergencial, de 150 reais. Conheço uma que vende bombons nos ônibus com os filhos, em plena pandemia e com isso consegue apurar 30 reais por dia, para fazer frente a todas as despesas da família. Tem outra que nasceu sem os membros inferiores, que tem que se arrastar com o filho autista numa escada, pois mora no andar de cima e sonha com uma cadeira de rodas motorizada, para dar maior assistência ao seu menino. Todas elas têm  sonhos, amor, coragem e histórias extraordinárias. Existem muitos desafios muito maiores que os meus.  Agradeço a Deus, nesse momento trágico porque passamos, por atender a cada uma delas, pelo SUS, emitir os laudos que lhes garantem o acompanhamento dos filhos, na Casa da Esperança além do benefício da prestação continuada, de estar no lugar certo, na hora certa, cuidando, informando e garantindo direitos.  Tudo valeu a pena e espero, poder viver, ainda,muitos anos e, ficar bem velhinha, fazendo o que  amo e sei fazer, atender pessoas autistas e suas famílias. 

Como a senhora enxerga o TEA nos dias atuais? 

Hoje eu enxergo autismos. São muitos autismos, diferentes uns dos outros. São condições humanas caracterizadas por dificuldades para se comunicar e compreender as regras mais sutis dos relacionamentos sociais, alterações sensoriais e um padrão de interesses e atividades mais restrito do que a média. Cada uma dessas características se apresenta de forma distinta, em cada pessoa autista. No que diz respeito à comunicação, existem pessoas autistas que nunca dizem uma única palavra, outras que se comunicam telegraficamente, muitas falam muito sobre assuntos do seu interesse (hiperfocos), sem perceber o grau de interesse do interlocutor e existem, ainda, escritores e palestrantes autistas que empolgam plateias com centenas de pessoas.

No que diz respeito às inteligências, conheço autistas com diferentes graus de deficiência intelectual e outros que fazem sucesso em suas vidas acadêmicas. No grupo Neurodevergentes, na Casa da Esperança, temos 3 jovens estudantes de medicina, um jornalista, pesquisadores, artistas plásticos, engenheiros, advogados. Tenho 3 médicas entre meus clientes e, hoje, sabemos que o Vale do Silício está povoado de cérebros autistas, que estão revolucionando a forma como as pessoas se comunicam no mundo.

Legenda: Fatima Dourado, a Dona de Si e de um grande coração.
Foto: Divulgação

A compreensão do autismo tem mudado bastante nas últimas décadas e essa é uma das explicações do porque tem aumentado tanto a prevalência do autismo.  Se pensarmos que a síndrome de Asperger só entrou para os manuais nosológicos na década de noventa, vamos entender que todas as pessoas que hoje são diagnosticadas com essa condição, não seriam consideradas autistas até 1994.  Houve, ainda,  uma grande mudança no que diz respeito à conscientização sobre o autismo. Nas últimas décadas foram muitos os cursos, congressos e publicações sobre o tema. Aqui mesmo, em Fortaleza, todos os residentes do R4, do Hospital de saúde mental de Messejana, até a pandemia, passavam 4 h/semana na Casa da Esperança, durante 1 ano, o que garantia, aos jovens psiquiatras, experiência na clínica do autismo. E, atualmente, assistimos uma grande ampliação dos atores sociais  que  falam sobre  o autismo. Antes um tema restrito à comunidade médico científica, na segunda metade do século XX foi abraçado por pais e, mais notadamente, por mães de autistas que, no mundo inteiro, se organizaram na luta pelos direitos dos seus filhos e hoje, estamos assistindo, em vários lugares, gente falando do autismo na primeira pessoa, autistas que, em grupo ou individualmente, estão exigindo protagonismo e lugar de fala, quando se trata de criar leis ou políticas públicas que lhes digam respeito. O autismo, hoje, é classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento, Transtorno do Espectro do Autismo(TEA),  mas para além de uma deficiência é, também, um jeito de ser.  

 

Qual o grande aprendizado nesse momento de pandemia? 

A Vida é um milagre, um evento belo e frágil que pode acabar em um segundo. Todos somos iguais em direitos e dignidade. Que toda vida importa. Que todos somos únicos e imprescindíveis. Que a covid 19 não é uma gripezinha. 

 

Qual a sua esperança? 

O mais rapidamente possível, todos os brasileiros sejam vacinados.   

Qual o seu conselho para deixar marcado o mês azul, que convoca as pessoas para a conscientização do autismo como parte do mundo, e não um mundo à parte?  

Eu acho que o autismo é de todas as cores e não apenas azul, como se chegou a  pensar, meninas e mulheres autistas existem, são subdiagnosticadas e acabam sofrendo muito, por não receberem o suporte que precisam. Autistas não são anjos azuis, são pessoas. Anjos não tem sexo e pessoas autistas têm sexualidade e podem, inclusive, ter diferentes orientações sexuais.  Precisamos falar mais de autismo, dos autismos, acabar com a ideia de que algumas vidas são mais válidas do que outras. Foi com essa visão que o  Dr. Aspesrger, encaminhou muitas crianças autistas para a morte, na Viena Nazista. Precisamos investir em tecnologias que ajudem pessoas autistas a se comunicar, em centros de estimulação precoce, em escolas inclusivas, em apoios e suportes que favoreçam a inclusão de pessoas autistas na vida acadêmica e no mundo do trabalho.  E você tem toda razão, autistas não vivem num mundo à parte, são parte da diversidade humana, da neurodiversidade.