175 anos de Padre Cícero: cartas revelam papel político do sacerdote

Obtidas pelo Diário do Nordeste, correspondências retratam como o religioso pressionava autoridades

Escrito por Letícia Lima ,
Legenda: Padre Cícero Romão Batista nasceu no Crato, no dia 24 de março de 1844, e morreu em Juazeiro do Norte, no dia 20 de julho de 1934
Foto: Arquivo

O sofrimento que a população enfrenta com a seca e a fome decorrente dela são problemas crônicos no Nordeste. Mais antiga ainda é a ladainha cantada pelo povo ao poder público para acudi-lo da miséria. Escritos obtidos pelo Diário do Nordeste de “Padim Ciço”, com o historiador Geova Sobreira, um dos sacerdotes mais conhecidos do País e que hoje completaria 175 anos, revelam a falta de recursos e a luta por sobrevivência em meio à falta d’água naquela época, tão presentes ainda hoje. 

Padre Cícero ultrapassou as fronteiras da religião ao se filiar ao extinto Partido Republicano Conservador (PRC). Ele foi eleito prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, e deputado federal, em 1926, mas não assumiu o cargo. Munido de um “curral” de fiéis devotos à sua imagem, ele usava de sua habilidade política para reivindicar demandas a governantes do alto escalão. Gestos que, na visão de cientistas políticos entrevistados, serviam para demarcar o posto de “coronel” na região.

“Com a seca até agora acha-se a grande população toda em estado de miséria, sem nenhum recurso de subsistência”

Em um dos telegramas endereçados ao então senador, general Pinheiro Machado, em 1915, Padre Cícero relata a “gravíssima situação” da população do Cariri, “morrendo de fome”, e pede ao parlamentar para ele “arranjar urgentemente” verba.

Em outro documento, Cícero reclama da verba de R$ 300 mil destinada ao município que, alega ele, não deu para distribuir entre os doentes vítimas de flagelo. “Pelo amor de Deus, o povo está morrendo de fome, agora mesmo sepultaram oito”, exclama para o secretário do Ministério da Agricultura, Gracho Cardoso. 

Seca

O problema da falta d’água é outro muito reclamado pelo religioso nos escritos. Ainda em 1915, período marcado por uma estiagem severa no Ceará, conhecido como “seca do quinze”, Padre Cícero cobrou ao órgão de obras contra as secas a conclusão de estradas de ferro e açudagem, a “única tábua de salvação”, considerado por ele na época.

“Pelo amor de Deus acuda-nos, o povo está morrendo de fome agora mesmo sepultaram oito”

“Pode acreditar ser este o único meio de remediar horrível situação e conter graves consequências”, alerta. E o padre continua: “Todas as plantações feitas em janeiro se perderam, ficando a favor de condições. Mesmo havendo chuvas, doravante, não poderá plantar, porque falta recursos para obtenção de sementes e tratamento das plantações. É tão grave a situação que dirijo-me pedindo um auxílio para o povo poder manter-se”, descreve o religioso cearense em um telegrama enviado ao então presidente da República, Wenceslau Braz.

Já em outro escrito, o famoso padre cearense diz que as “copiosas chuvas” tornaram as estradas de ferro “praticamente impenetráveis” e prejudicavam as acomodações de operários que trabalhavam em obras na cidade.

“Além das chuvas o nosso material tem sido retido na estrada de ferro, de modo que não podemos contar com bastante zinco para a construção de barracas. É nossa intenção argumentar a nossa força operária neste campo com pessoal cuidadosamente selecionado logo que o tempo permita e estejamos suficientemente aparelhados para atacar estas grandes obras”.

Velhos problemas 

Muitos dos problemas relatados nos telegramas de Padre Cícero lá no século XX persistem até hoje. A seca atinge em cheio o semiárido nordestino e o poder público ainda não dedicou esforços suficientes para estabelecer uma política pública de desenvolvimento para o Nordeste. 

O cientista político Horácio Frota, mestre em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), recordou que naquela época as forças políticas já privilegiavam o eixo Sul-Sudeste. “O período da República marcado pelo pensamento liberal tem a marca de um grande acordo entre o poder central e os interesses do Sul e Sudeste, com a articulação política dos coronéis do Nordeste e, nessa questão, o nosso camponês era o que mais sofria com a seca, era o que mais sofria no cotidiano da vida do campo”, relembra. 

Para o professor e historiador, Airton de Farias, figuras como o Padre Cícero se preocupavam mais com o assistencialismo do que propriamente com um projeto político. 

“Eram políticos que tinham ligações com setores abastados, não eram políticos que ousassem mudar a estrutura econômica do Ceará e faziam coisas mais paliativas. Por exemplo, o padre passar e ver alguém com fome, ele ajudava, mas os problemas persistem: a grande concentração de renda, o alto nível de pobreza. Essas questões ultrapassam décadas”.

Destinatários dos escritos de Padim Ciço

Wenceslau Braz Pereira Gomes: chegou à Presidência da República depois de ter sido vice-presidente de Hermes da Fonseca, ele assumiu a presidência entre 1914 e 1918. Confira a carta aqui. E outro documento, aqui.

Gracho Cardoso: ex-senador de Sergipe e deputado federal por seis mandatos e eleito vice-presidente da Câmara dos Deputados. Veja o documento

Nogueira Accioly: ex-senador e ex-governador do Estado. Leia aqui.

Pinheiro Machado: ex-senador e ex-vice presidente do Senado Federal. Leia a primeira parte da carta aqui e a segunda parte aqui

Veja outros arquivos ainda aqui e também aqui.

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