Mais da metade das mulheres do Norte e Nordeste tem vergonha de falar sobre a própria saúde íntima
O que você sabe sobre a sua saúde íntima? Com quem conversa a respeito? Com que frequência se consulta com um médico especializado e faz exames preventivos? Essas perguntas foram as que nortearam um estudo divulgado no último agosto pelo Ipec, encomendado pela marca alemã de medicamentos Gino-Canesten.
Rememorando o último mês de outubro, que chamou a atenção para a prevenção do câncer de mama e do colo do útero, surpreendem os resultados da pesquisa, que apontam que um terço das mulheres entrevistadas no Norte e Nordeste do Brasil só fazem acompanhamento preventivo e ginecológico em necessidade pontual e que mais da metade sentem vergonha ou algum desconforto em falar sobre sua saúde íntima.
A ginecologista e terapeuta sexual Ludmila Andrade explica que nem é necessário fazer exames preventivos ou de imagem o tempo todo, mas recomenda que mulheres e pessoas com útero se consultem com um especialista pelo menos uma vez ao ano.
O cuidado com a saúde íntima está diretamente relacionado ao autoconhecimento. Quando as pacientes se sentem confortáveis em se tocar, em olhar seu corpo, elas não têm nenhum problema em desenvolver uma rotina de cuidado íntimo e um hábito de consultas periódicas com o ginecologista”.
O problema está justamente aí. Segundo a pesquisa do Ipec, 46% das mulheres nordestinas sequer se consideram informadas sobre saúde íntima e 85% delas admitiram que não conhecem bem o cheiro da própria vagina e não saberiam identificar, por exemplo, uma possível infecção.
Essa desconexão com o próprio corpo pode não só afastar muitas mulheres dos cuidados periódicos com a saúde como, também, mascarar dores incomuns e atrasar diagnósticos.
“Antigamente, e hoje, ainda, tem muito a ideia de que mulher sempre tem cólica. Nem toda mulher tem cólica menstrual. E quando é [a cólica] dita ‘normal’? Quando se passa um medicamento, um antiespasmódico, e ela fica bem. Mas, se tem que tomar injeção, ir para o hospital, porque está com cólica muito forte, e não passa com medicação oral, ela precisa ser acompanhada por um profissional, porque pode estar diante de uma endometriose ou adenomiose”, diferencia Zenilda Bruno, chefe da Divisão Médica da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), vinculada à Universidade Federal do Ceará (UFC).
Nesta série de reportagens, o Diário do Nordeste explica a importância do cuidado periódico com a saúde íntima e trata do acesso à rede de atendimento especializado.
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Quando procurar o ginecologista pela primeira vez?
Você, provavelmente, já ouviu falar em “menarca”, que é o nome dado à primeira menstruação da mulher. É a partir deste momento que, historicamente, os profissionais da ginecologia sugerem que a jovem comece a ser acompanhada por um profissional da área.
“Mais para orientações, se informar sobre cuidados, higiene, tirar dúvidas e diminuir um pouco os receios relacionados” ao momento, elucida Ludmila Andrade. Qualquer indicação de consulta especializada antes desse acontecimento deve ser feita pelo pediatra, se identificada por ele alguma intercorrência no desenvolvimento da criança.
"A gente chama o ginecologista de 'clínico' da mulher. Porque vai avaliar todas as queixas, sejam intestinais, urinárias, se tem algum corrimento, dor na relação sexual, se está tendo prazer, tudo isso o ginecologista vê. É importante que todas as mulheres de todas as idades vão ao ginecologista pelo menos uma vez ao ano", reforça Zenilda Bruno.
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Como deve ser feito o acompanhamento ginecológico?
Especialistas acreditam que, para mulheres saudáveis, seja necessária apenas uma consulta ao ano com ginecologista. Nesse encontro com o profissional, é imprescindível superar a vergonha — se ela existir — e relatar todas as queixas que tiver a respeito do próprio corpo. Isso porque alguns exames só serão pedidos se houver "indicação", ou seja, se o médico achar que é preciso investigar algum sintoma específico.
"A prevenção do Papanicolau [exame do colo do útero] é importantíssima de fazer dos 25 anos aos 64 anos. Prevenção de câncer é imprescindível. E é suficiente fazer uma só vez ao ano até os 64 anos", destaca Zenilda. Depois desse período, segundo ela, não é mais indicado fazer a prevenção anualmente porque o risco de desenvolvimento do câncer de colo do útero passa a ser muito raro. "A não ser que a mulher tenha sangramentos ou outros sintomas", pontua a médica.
Já os exames de ultrassonografia, como os abdominais, transvaginais e de tireoide, por exemplo, devem ser feitos com indicação clínica. "Não existe ultrassom para fazer todo ano, não previne [as doenças]. O ultrassom deve ser feito quando houver indicação. Se ela [a paciente] tiver alguma hemorragia, alguma dor", conclui a profissional.
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Médica ficou um ano sem fazer exames de rotina e descobriu um câncer de mama
A médica emergencista Patrícia Lopes, 34, trabalhava na linha de frente da pandemia de Covid-19, em 2021, quando descobriu que tinha desenvolvido um câncer de mama.
"Descobri o câncer de mama aos 31 anos, enquanto estava dando plantão na emergência de Covid-19 do HGF [Hospital Geral de Fortaleza]. Assim como todas as mulheres em todas as partes do mundo [àquela época], estava todo mundo focado em sobreviver, em não pegar Covid e passar pela pandemia. E a nossa saúde, nosso autocuidado, foi deixado um pouco de lado. Eu fiquei cerca de um ano, um ano e meio, sem fazer meus ultrassons de rotina", lembra a profissional.
Patrícia tinha indicação clínica para fazer ultrassons de mama com mais frequência porque os médicos que a acompanhavam relatavam que sua mama era muito densa. No entanto, o trabalho árduo no cuidado com os pacientes infectados pelo coronavírus e a própria pandemia simplesmente tiraram da médica a atenção à própria saúde íntima.
"No dia 3 de junho de 2021, eu estava de plantão em uma emergência de Covid do HGF quando fui trocar minha roupa e senti um nódulo na mama esquerda, de três a quatro centímetros, bem endurecido. Entrei em pânico naquele momento porque sabia que não ia vir coisa boa", relata.
Patrícia enfrentou uma série de desafios desde o diagnóstico. Fez quimioterapia, viu o cabelo cair, descobriu que tinha uma predisposição hereditária para o câncer de mama — ela possui o gene BRCA1 positivo — e teve até de ser internada para tratar agravos da quimio.
Ela conseguiu atravessar as adversidades com o apoio da família, da esposa, dos amigos e de um grupo chamado "OncoFriends". "Hoje, é um grupo de mulheres curadas do câncer de mama e que agrega outras que estão passando pelo mesmo processo. Para a gente tirar dúvidas, trocar ideias, trazer um pouco de esperança", conta a médica.
Curada do câncer, a emergencista voltou ao trabalho e cuida da saúde íntima com a frequência necessária, conforme suas necessidades específicas. Em suas redes sociais, ela conta a própria história e orienta outras mulheres a se cuidarem e se prevenirem periodicamente.
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Quando a dificuldade de cuidar de si está associada à sexualidade
92% das mulheres de estados do Nordeste que responderam à pesquisa do Ipec, citada no início desta reportagem, disseram que a saúde íntima impacta diretamente a autoconfiança. O dado evidencia uma relação importante entre o cuidado com o próprio corpo e a sensação de estar bem consigo.
Nesse contexto, para a ginecologista Ludmila Andrade, sentir vergonha de falar sobre saúde íntima ou até questões relacionadas à sexualidade atrapalha — e muito — o cuidado periódico. "Isso vem mudando um pouco. Por causa das mídias sociais e do acesso à informação, às vezes, elas, pesquisando [na internet], criam dúvidas que geram a necessidade de fazer uma consulta. Mas a vergonha, sem dúvida, é um fator [que embarreira a busca por avaliação ginecológica]. Vergonha, preconceito e medo de falar sobre a orientação sexual fazem com que mulheres evitem ginecologista ou só apareçam quando estão com algum problema que, sozinhas, não conseguiram resolver", diz.
A demora acaba por atrasar diagnósticos ou mascarar problemas "muito mais sérios", que poderiam ser tratados precocemente e com menor risco de complicar no futuro.
"Quando a pessoa tem uma sexualidade que não é cis[gênero], ela [geralmente] se sente constrangida de ir a um profissional porque vai ter que falar sobre isso na sua consulta e pode ter vergonha ou medo de algum preconceito", complementa a médica Zenilda Bruno.
Além disso, em casos de mulheres que não têm atividade sexual penetrativa, pode "assustar" a necessidade do exame do Papanicolau, que é feito, normalmente, com um espéculo ginecológico. "Porque precisa que a paciente já tenha tido alguma atividade sexual penetrativa e, muitas vezes, quando não tem essa atividade, ela pode não permitir ou ter receio de dor", continua a chefe da Divisão Médica da Meac.
Contudo, nos casos em que não há atividade penetrativa na relação sexual, o risco de desenvolver agravos é bem menor, mas ainda é necessário acompanhar a mulher periodicamente para avaliação de sintomas, como dores e sangramentos incomuns, por exemplo.
Com quem você conversa sobre a sua saúde íntima e onde se informa?
Amigas, pessoas próximas, familiares, médicos, parceiros, parceiras. Com quem você conversa sobre a sua saúde íntima e onde busca informações sobre o assunto também importa. Na pesquisa do Ipec, 50% das mulheres disseram que falam sobre o tema com amigas, 58% reservam ao consultório médico e 44% tratam apenas com os parceiros.
O estudo mostrou ainda que 51% das entrevistadas nordestinas se informam sobre saúde íntima na internet/redes sociais, e que apenas 16% aprenderam algo a respeito na escola.
Para a médica Zenilda Bruno, é importante que as pessoas consigam se sentir confortáveis para conversar sobre o assunto sem tabus. "Fico preocupada quando [as pessoa] colocam que procuram [informações] em redes sociais ou no 'Tio Google', porque muitas informações são erradas. Então, é importante que a gente converse sobre o tema, mas também procure informações com quem tem as informações corretas. Médico especializado é que vai falar a verdade, com a segurança de dar uma informação correta", diz ela.
A especialista destaca que é comum chegarem aos consultórios pacientes "apavoradas" com artigos que leram na internet. "Informações erradas levam a tratamentos inadequados. Tem paciente que chega com diagnóstico totalmente errado, fazendo um tratamento totalmente errado, porque disse que 'leu na internet'", critica.
Ela, por outro lado, não desaprova totalmente o uso das ferramentas de busca online. "É bom para tirar algumas informações, mas tem que ter senso crítico para entender o que é verdadeiro e o que é falso. A internet tende a aumentar, fazer medo às pacientes e dar informações erradas", orienta.
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