Não achar necessário, não ter tempo, não ter dinheiro suficiente para pagar consultas particulares, sentir vergonha... São muitos os motivos que dificultam que as mulheres façam acompanhamento ginecológico com regularidade, mas o principal deles não depende diretamente das pacientes.

Segundo um estudo divulgado no último agosto pelo Ipec, encomendado pela marca alemã de medicamentos Gino-Canesten, 27% das mulheres nordestinas alegam que não vão ao ginecologista com frequência pela demora no agendamento consultas — não foi especificado se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por convênio ou particular.

Zenilda Bruno, chefe da Divisão Médica da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), vinculada à Universidade Federal do Ceará (UFC), observa que, tradicionalmente, já é difícil marcar consulta para qualquer especialidade, especialmente nas unidades públicas de saúde, devido à quantidade insuficiente de profissionais contratados.

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“Ela [paciente] pode ir a um clínico geral, mas tem dificuldade de marcar ginecologista, que é a pessoa indicada para fazer avaliação, acompanhamento e prevenções”, cita, acrescentando que “existem postos que não têm ginecologista". "E o ideal é que o clínico, médico da família, se identificar alguma dificuldade na área ginecológica, encaminhe para um ginecologista no posto mesmo ou em um centro especializado”, orienta.

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Esta reportagem é a segunda de uma série do Diário do Nordeste que explica a importância do cuidado periódico com a saúde íntima e trata do acesso à rede de atendimento especializado.

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Porta de entrada no SUS: entre consultas eletivas e emergenciais

No entendimento da assessora técnica de Saúde da Mulher da Secretaria da Saúde de Fortaleza (SMS), Léa Dias, "a maioria dos atendimentos ginecológicos não são emergenciais" e, portanto, podem ser resolvidos na atenção básica, sem a necessidade de um atendimento especializado.

"O que é considerado atendimento emergencial? São doenças inflamatórias pélvicas, 'urgências ginecológicas', quando as pacientes apresentam sangramentos anormais que podem ser ou não associados à gravidez", entende a gestora. Nestes casos, ela indica que sejam procuradas maternidades com emergências obstétricas. Mas, outros problemas, como corrimentos vaginais incomuns, por exemplo, podem ser tratados por médicos generalistas ou enfermeiros nos postos ou nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).

Fachada de posto de saúde de Fortaleza
Legenda: Profissionais da ginecologia defendem que a assistência à saúde da mulher seja descentralizada para a atenção básica
Foto: Fabiane de Paula

"Outra queixa grande que a mulher tem são de dores pélvicas. Essas dores podem ser atendidas de forma eletiva, não necessitam ir a uma emergência, mas a gente percebe que o atendimento na UPA também é acionado quando as mulheres têm sangramentos que estão incomodando muito ou que têm uma dor pélvica crônica", continua.

Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) também orienta que o atendimento ginecológico emergencial seja feito em unidades que prestam o serviço ginecológico e obstetrício 24 horas ao dia, como o Hospital Regional Norte, o Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e o Hospital Geral Dr. César Cals.

A pasta menciona ainda as UPAs do Estado como "porta de entrada" para esse atendimento, podendo transferir as pacientes, se necessário, para hospitais de referência.

"Mulheres merecem ser tratadas por profissionais de saúde que estejam adequadamente capacitados para fazer esse cuidado, inclusive, profissionais não médicos, não ginecologistas, como enfermeiras bem capacitadas, bem qualificadas. O contexto que eu imagino que seja o ideal é aquele em que possamos cuidar para prevenir o adoecimento", ressalta a médica ginecologista e sexóloga Débora Britto.

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Quando a saúde integral da mulher será vista como prioridade?

Como disseram Léa, Débora e Zenilda, há questões de saúde feminina que podem ser resolvidas na assistência primária, sem necessidade de um médico especializado. Mas, o próprio protocolo da atenção básica da Saúde da Mulher, publicado pelo Ministério da Saúde em 2016, em parceria com o Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa, reconhece que o atendimento integral desse público, com acolhimento de suas demandas e necessidades, "está em processo de consolidação" no País.

"No cotidiano dos serviços, a integralidade se expressa pela atenção à saúde dos usuários, sob a ótica da clínica ampliada, com a oferta de cuidado à pessoa, e não apenas ao seu adoecimento. Isso inclui, também, a prestação de cuidados abrangentes, que compreendem desde a promoção da saúde, a prevenção primária, o rastreamento e a detecção precoce de doenças até a cura, a reabilitação e os cuidados paliativos", cita o documento. 

Dados atualizados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as mulheres representam 53,6% do total da população de Fortaleza, capital do Ceará, enquanto que os homens são 46,4%.

Contudo, embora previsto nas diretrizes nacionais, esse cuidado integral com a saúde feminina ainda não prevalece. "O poder público precisa entender a saúde da mulher como prioridade", destaca o médico ginecologista e professor de Ginecologia da UFC, Leonardo Bezerra. "Quantitativamente, ela [mulher] é muito mais prevalente, temos muito mais mulheres do que homens, muito mais enfermidades de saúde da mulher do que qualquer outra doença", justifica o profissional.

De acordo com Leonardo, "doenças ginecológicas são tão frequentes e tão impactantes quanto hipertensão ou diabetes, por exemplo", mas "o que vemos ainda é um sistema [de saúde] voltado para o patriarcado, focado em uma visão de mulher que só engravida".

"O sistema está muito mais estruturado para os cuidados com o eixo materno, fetal, obstetrício, e muito menos preparado para cuidar das enfermidades da saúde ginecológica em si. As mulheres engravidam menos, têm mais enfermidade ginecológica hoje do que tinham no passado, mas o sistema ainda não enxerga isso", critica o médico.

Se a saúde feminina fosse encarada de maneira integral, ele acredita, seria possível, por exemplo, ainda na atenção básica, que os profissionais de Saúde da Família conseguissem diagnosticar e tratar doenças como endometriose, por exemplo, prestar orientações complementares sobre contracepção e até se capacitarem para a inserção de dispositivos intrauterinos, os DIUs. "No mundo inteiro, a contracepção fica a cargo da atenção primária, dos médicos generalistas da medicina preventiva", contextualiza.

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Mudança no perfil das pacientes e necessidade de profissionais especializados

O ginecologista Leonardo Bezerra pontua ainda que a dificuldade no acesso das mulheres à especialidade não é realidade apenas do Brasil e diz respeito, também, à necessidade de reorganizar e aprimorar a formação e a capacitação dos profissionais.

“Existe uma demanda muito grande, no mundo inteiro, de consultas ginecológicas para as inúmeras especialidades, que vão desde dor crônica a infertilidade, queixas urinárias, cirurgias. Para esses especialistas, notadamente, há a necessidade de ter uma formação mais específica, sobretudo cirúrgica, que requer residência médica”, diz o médico.

Essa necessidade de aperfeiçoamento se deve, principalmente, segundo ele, às mudanças nos perfis das pacientes ginecológicas nos últimos 50 anos.

Mulher com dor pélvica. Ela é branca e usa blusa cinza e calça frouxa verde escura
Legenda: Mulheres têm investigado cada vez mais dores pélvicas e outros desconfortos relacionados à menstruação
Foto: Shutterstock

“Não podemos culpar o nosso sistema público ou privado por um processo que é mundial. Na ginecologia, temos uma frequência muito maior de doenças como endometriose, dor pélvica crônica, infertilidade, relacionadas a mudanças na sociedade. As mulheres engravidam menos, deste modo, menstruam mais, daí passam a ter mais dificuldade de engravidar porque tentam mais tardiamente, passam a ter mais queixas relacionadas à menstruação”, evidencia.

O médico reforça ainda que, enquanto o sistema de saúde achar que é necessário um ultra especialista para atender toda a área da ginecologia, este mesmo sistema não terá a quantidade necessária de profissionais para prestar a assistência adequada às mulheres.

"Nunca vai ter uma quantidade de ginecologistas suficiente para dar cobertura à medicina preventiva. A ideia é que a gente trabalhe com multidisciplinaridade, ou seja, que as escolas e os sistemas públicos trabalhem em cima da medicina preventiva, da Saúde da Família, deste modo, aumentando o atendimento às necessidades básicas e deixando para os ginecologistas as condições de alta complexidade, cirúrgicas, que não estão no escopo do mérito generalista", orienta Leonardo.

Essa mesma leitura se aplica, segundo o médico, à saúde complementar ou privada. "Acaba-se criando na medicina privada um contexto associado de reserva de mercado, direcionando para profissionais da ginecologia condutas, prevenções e atividades que não devem ser exclusivas do ginecologista", entende. E complementa que, como na rede pública, a rede privada também tem de estruturar uma estratégia multidisciplinar e descentralizada, estabelecendo para a saúde básica a ação de coletar exames preventivos, orientar sobre métodos contraceptivos e aconselhar sobre transtornos menstruais, por exemplo. "Deste modo, o sistema se equaliza, se organiza", acredita o profissional.

"A saúde da mulher, com doenças como dor pélvica, infertilidade, endometriose, queixas ligadas à contracepção, são consideradas secundárias [na sociedade]. Não são colocadas como prioritárias e universalizadas", reforça a crítica.

Outra dificuldade mencionada pela ginecologista Débora Britto, que implica na escassez de profissionais qualificados em campo, é que, às vezes, as unidades de saúde públicas não oferecem as estruturas e condições adequadas para que os médicos executem o trabalho, como o suporte de uma equipe multidisciplinar, por exemplo.

"A gente vai passar por questões como a distribuição geográfica desses profissionais, a necessidade de um plano de carreiras para esses profissionais que vão estar atuando em outros territórios. Cidades menores, mais afastadas, precisam ter a estrutura adequada para o exercício de algumas especialidades", argumenta ela.

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O papel da Educação na transformação do cuidado com a saúde íntima

Para os profissionais ouvidos pelo Diário do Nordeste para esta reportagem, a multidisciplinaridade e a prevenção são a chave para reduzir a dificuldade das mulheres no acesso ao acompanhamento ginecológico e no cuidado com a saúde íntima.

A escola, nesse sentido, "tem papel fundamental", segundo a médica Zenilda Bruno. "Principalmente para adolescentes, por ser uma fase de muita dúvida, muitas inseguranças. É muito importante a educação sexual, onde se fale de violência e de como evitar, como melhorar a higiene íntima. Tem pessoas que acreditam, por exemplo, que não podem tomar banho ou comer isso ou aquilo quando estão menstruadas. Então, é importante que as escolas tirem esse medo, que previnam a gravidez não planejada, a violência sexual, ajudem a diferenciar abuso de uma paquera, a não se expor em redes sociais com fotos íntimas", ensina a profissional.

"A educação em sexualidade é essencial para reduzir a incidência de problemas na saúde íntima, no bem-estar e na autoestima das mulheres. Uma mulher que sente dor, que sente desconforto intenso na menstruação, que não trata e, de repente, começa a ter dor na relação sexual, vai sentir o impacto disso tanto afetivo quanto social", pontua a ginecologista Ludmila Andrade.

Sala de aula vazia
Legenda: Escolas estaduais do Ceará já trabalham a temática no ano letivo
Foto: Thiago Gadelha

A médica destaca ainda que, se essas dores e esses desconfortos forem "naturalizados" na adolescência, as jovens podem crescer enfrentando dores que incapacitam o trabalho ou até mesmo os relacionamentos afetivos, no momento em que passam a evitar o contato sexual por saber que vão sentir dor.

"E elas não vão investigar isso porque terão vergonha. Porque alguém disse para elas que sentir dor na menstruação era normal. Aí, elas acabam passando anos sem conseguir um tratamento adequado e, quando descobrem, precisam ser submetidas a cirurgias e procedimentos bem mais invasivos", acrescenta Ludmila.

Por causa disso, é difícil pensar uma escola, hoje, que não objetive ser um lugar seguro e capaz de oferecer às meninas informações de qualidade para que elas possam compreender as mudanças no próprio corpo de maneira fácil e tirar dúvidas a respeito de questões que, por vezes, têm vergonha de tirar quando estão em um consultório médico. "A gente precisa muito de educação em sexualidade. Tenho certeza de que, se a gente trabalhar isso, vai reduzir muito a probabilidade de jovens adultas desenvolverem problemas de saúde que não têm possibilidade de intervenção em tempo necessário", conclui a ginecologista.

Tema norteador nas escolas estaduais do Ceará

A Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) garantiu ter incluído na rotina escolar dos alunos da rede estadual, ao longo de 2024, como "tema norteador", momentos de reflexão sobre equidade de gênero e proteção às mulheres, "perpassando tanto o currículo, como as interações pessoais em suas diversas formas".

Nesse sentido, o Estado também implementou turmas eletivas relacionadas à saúde íntima feminina, com foco em educação sexual e saúde da mulher.

Também foram abordados em sala de aula temas como saúde sexual e reprodutiva e prevenção do HIV/ISTs e instituída uma política de atenção à higiene íntima das estudantes, com o desenvolvimento de ações de conscientização sobre higiene menstrual adequada e distribuição de absorventes.

No âmbito municipal, de acordo com a assessora Léa Dias, Fortaleza possui um programa chamado "Gente Adolescente", que também trabalha com os jovens da escola pública questões relacionadas à prevenção de ISTs, gravidez na adolescência e outras relacionadas à área ginecológica e obstétrica.

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