Qual o perfil do perigoso? Foto de Michael B. Jordan em banco de dados da Polícia não é acidental
Imagem do ator no Termo de Reconhecimento Fotográfico da Polícia Civil do Ceará, notícia dada em primeira mão pelo Diário do Nordeste, está em sintonia com o imaginário social brasileiro do perfil do “sujeito perigoso”.
A foto do ator hollywoodiano Michael B. Jordan no catálogo de reconhecimento fotográfico de suspeitos da Polícia do Ceará deixou parecer que havia algo fora do lugar. Porque é um astro do cinema ou por estar a milhas da jurisdição local? Está tudo no mesmo lugar de antes. Não importa quem carrega a cor, ela define onde o sujeito será inserido.
Para proteger quem é “cidadão”, o Estado de direito busca diferenciá-lo de quem é “inimigo”. Para isso, são criadas imagens diferentes para a pessoa ‘de bem’ e para o ‘bandido’. De boné e bermuda ao lado de uma moto numa viela do Bom Jardim, em Fortaleza, ou sendo simplesmente o que já é, o astro de filmes como Pantera Negra e Creed estaria ileso à abordagem na categoria de “suspeito” nas abordagens policiais?
Tira o cordão, põe a gravata, o negro continua sendo negro, e se dirigir um carro de luxo será inevitalmente o ‘motorista de alguém importante’. Qual o arquétipo do suspeito para figurar em um banco de dados de investigação criminal? A pergunta se repete porque é um exercício de fechar os olhos e imaginar-se numa situação de perigo e, portanto, enxergar quem tem a cara desse perigo.
Quase 80% dos mais de 60 mil mortos por armas de fogo por ano no Brasil são negros, portanto pretos e pardos. Todos os mortos identificados em ações da Polícia em Fortaleza, no ano de 2020, eram negros, conforme relatório divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança. A distância entre um ‘mero’ catálogo e a mira do revólver policial é quase nula, via de regra a estrutura posta, que vai do olhômetro policial ao sistema inteligente dos algoritmos na tecnologia, tem caminhos pouco definidos.
Em fevereiro de 2020, o jovem Jardeson Rodrigues, de 21 anos, foi abordado e morto pela Polícia Militar em Fortaleza. No testemunho militar, o jovem teria atirado na Polícia e houve, portanto, uma reação à injusta agressão. Nos outros testemunhos e na evidência de uma câmera de vídeo, Jaderson foi morto pelas costas, com um tiro na cabeça e não portava nenhuma arma. “Não tem um dia em que eu não me lembre do meu filho”, diz o pai Gilson Martins. Nesta Capital, via de regra, dor e cor só mudam na letra.
A notícia da foto do ator norte-americano no banco de dados da polícia cearense, dada em primeira mão pelo Diário do Nordeste, repercutiu dentro e fora do País, ensejou reações de alguns parlamentares sobre a confiabilidade do reconhecimento fotográfico como elemento investigatório - constante do artigo 226 do Código de Processo Penal. “Essa situação é muito absurda e exemplifica como o reconhecimento fotográfico está longe de ser uma prova de um crime. Nosso PL 945/21 quer impedir a prisão preventiva baseada apenas nesse reconhecimento”, disse a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ). Colega de seu partido no Ceará, o deputado estadual Renato Roseno complementa ser “um enorme erro acreditar que a adoção das tecnologias estaria imune às condições estruturais de desigualdade e opressões”.
Além da foto no banco de dados da Polícia, Michael B. Jordan poderá ser visto como autêntico suspeito sendo abordado pela polícia no filme Fruitvale Station (A Última Parada), em que representa a história real de um jovem negro vítima de violência policial. A cena do filme em que o policial domina o suspeito Jordan dialoga com a foto do mesmo Jordan (agora fora das câmeras) no inquérito da Polícia Civil do Ceará. Mas ainda há outros diálogos possíveis.
“O corpo negro, historicamente, sempre transitou entre a violencia e o poder da virilidade, da sexualidade na sua forma animalesca. É curioso, coincidência ou não, que o ator que, recentemente, ganhou o prêmio de “mais sexy do mundo” está associado pela polícia cearense no banco de dados de potenciais criminosos”, observa Rômulo Silva, pesquisador integrante do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (Covio) da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Rômulo discute essa dualidade de medo e desejo pela colonização, portanto tornar um objeto, do corpo negro. “A pessoa preta, representa no Brasil e em vários lugares do mundo o próprio perigo. Mas é um medo que tem sua gênese no sentido do desejo, da pulsão que é o medo. Toda sujeição que recai sobre o corpo negro, historicamente, é aquilo que o sujeito branco, ou dito como branco, rejeita de si mesmo”. E o “estado de direito” cria as matizes do que é cidadão-pessoa de bem que deve ser protegido e quem é o inimigo a se combater (na prática, abater).
A foto do ator é uma das três presentes no Termo de Reconhecimento Fotográfico da Polícia Civil e o pesquisador Rômulo Silva lembra dos processos necropolíticos que funcionam no Brasil que trazia a propria foto, pintura ou arquétipo dos ‘negros fujões’. "É necessário se fazer essa pergunta: no imaginário social brasileiro, qual o perfil do sujeito criminoso, daquele que é nosso inimigo?”
A foto do ator não é acidental tanto quanto a piada racista contra Jaden Smith, filho de Will Smith, que foi “confundido” com flanelinha aos olhos racistas em um estádio na final da Copa do Mundo em 2018. “Tenho quase certeza que o filho do Will Smith me pediu dinheiro ontem na esquina da Rua Haddock Lobo dizendo que tava olhando me carro”, disse o autodenominado humorista Rodrigo Fernandes, ao colocar a foto do outro jovem ator negro entre as arquibancadas e compará-lo a um flanelinha. De outro modo (outra cor), a comparação existiria?
Quando pensamos no perfil do perigo, como ele pode ser descrito? Conforme os observatórios de dados sociais atestam anualmente, a estrutura que rege as forças (inclusive de segurança) segue rígida e praticamente intacta sobre o perfil do alvo.
“A luta para que as vidas negras importem não acabou. Nossas vozes não podem ser silenciadas. Precisamos de mais contadores de histórias negros para trazer nossa escuridão, nossa dor e nosso propósito à luz”, afirmou o ator Michael B. Jordan, não para esta matéria, mas em junho de 2020, em protesto após a morte de George Floyd, imobilizado por um policial com um joelho em seu pescoço até não mais (nunca mais!) conseguir respirar.