No Bom Jardim, notificações de estupro de criança ou adolescente são 4 vezes maiores do que no Meireles

Subnotificação nas áreas nobres e acesso aos equipamentos públicos de saúde e educação pela população mais vulnerável podem ser os motivos, dizem profissionais

Escrito por Ideídes Guedes , ideides.guedes@svm.com.br
criança/ escuro/ bicicleta
Legenda: Fortaleza tinha 274.142 crianças no último Censo do IBGE
Foto: Fabiane de Paula

No Grande Bom Jardim, na periferia de Fortaleza, as notificações de estupro de crianças e adolescentes são quatro vezes maiores do que as que moram em área nobre como Aldeota e Meireles, por exemplo. Entre janeiro e setembro deste ano, foram registrados 255 casos de violência sexual infantojuvenil na Capital, de acordo com os números da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

O Diário do Nordeste fez o cruzamento de dados públicos com base no número de notificações  de crimes sexuais contra crianças e adolescentes de cada uma das 10 Áreas Integradas de Segurança de Fortaleza (AIS).

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A região que engloba Bom Jardim, Conjunto Ceará I, Conjunto Ceará II, Granja Portugal apresenta o pior cenário de violência infantojuvenil em Fortaleza, com 42 casos. É nela que estão Siqueira, Genibaú e Granja Lisboa, três dos dez bairros com menores desempenhos quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de acordo com o último Censo Demográfico.

Por outro lado, em Aldeota, Cais do Porto, Meireles, Mucuripe, Praia de Iracema, Varjota e Vicente Pinzon são quase quatro vezes menor a possibilidade de uma criança ou adolescente sofrer violência sexual, com apenas 11 notificações. Aldeota e Meireles são os bairros com melhores desempenhos em relação a níveis de desenvolvimento humano na Capital, apresentando melhor renda, educação e longevidade.

A área onde ficam Aracapé, Canindezinho, Conjunto Esperança, Jardim Cearense, Maraponga, Mondubim, Novo Mondubim, Parque Presidente Vargas, Parque Santa Rosa, Parque São José, Planalto Ayrton Senna, Prefeito José Walter e Vila Manoel Sátiro é a segunda com os piores indicadores. Até setembro deste ano, foram 38 registros de violações. Na outra ponta, juntando Álvaro Weyne, Carlito Pamplona, Centro, Farias Brito, Jacarecanga, Monte Castelo, Moura Brasil, São Gerardo e Vila Ellery, o número chegou a apenas 9.

Na visão de Kelly Meneses, coordenadora do programa Rede Aquarela, que articula e executa a Política Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil em Fortaleza, a violência acontece sem distinção de classe social ou território. 

Entretanto, a provável subnotificação e a diferenciação no número de casos têm a ver com a maior atuação de conselheiros tutelares e o acesso aos equipamentos de saúde e educação pela população mais vulnerável.

“Nas comunidades mais vulneráveis, a notificação dessa violência acontece com mais frequência. Geralmente, essas famílias têm menos barreiras para a exposição dessa realidade. Entre os ricos, é mais velado. Muitos crimes, também, são noticiados por professores, eles são fundamentais na revelação de violência contra as crianças e adolescentes. As palestras acontecem nas escolas e a vítima começa a perceber que o que acontecia com ela era violência. Quando ela não fala, o coleguinha chama a professora e diz”, explica Meneses.

São do Grande Bom Jardim a maioria das vítimas atendidas pela Rede Aquarela. Só em 2022, dos 4.557 atendimentos, 588 vieram dos bairros Granja Lisboa, Granja Portugal, Bom Jardim, Siqueira e Bonsucesso. A região tem 61 dos 575 casos recebidos. 

Entre janeiro e setembro deste ano, foram registrados em postos de saúde e UPAs da Capital, 362 atendimentos por conta de violência sexual, sendo 315 casos do sexo feminino e 37 casos do sexo masculino, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Marcas

Fortaleza tem 652.188 crianças com idade entre zero e 18 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso corresponde a 25,3% do total da população. Em relação as que têm de zero  a cinco  anos, o número chega a 274.142 crianças, o que representa 8,3%.

A professora e psicóloga Ticiana Santiago, do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), explica que é importante a sociedade reconhecer as  crianças e adolescentes como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, que  vai desde a cognição e habilidade de socialização ao reconhecimento das capacidades.

“Tudo que acontece nessa fase da vida traz uma marca muito emblemática e significativa no reconhecimento das crianças como sujeito, tanto na estruturação da sua identidade, da sua personalidade e de suas habilidades sociais interpessoais”, afirma.

Santiago chama a atenção para as janelas de desenvolvimento e de aprendizagem que existem na primeira infância. “A gente começa a identificar impactos desde a gestação dessas crianças ao puerpério das mães, seguindo para o crescimento dos bebês”.

Ela conta que o adulto sofrer violência é uma marca significativa, mas quando se trata de uma criança e um adolescente essa violação torna-se ainda mais desafiadora, porque é o momento  em que elas estão reconhecendo o lugar de sujeito e fazendo a representação dele diante desse processo.

Com o decorrer do desenvolvimento, a criança que foi violentada sexualmente vai apresentando problemas de cognição, aprendizagem, autonomia, atenção, memória, foco, confiança e em competências de liderança. Essas dificuldades são importantes para entender que  não são necessidades inerentes à vítima, mas da condição  em que ela vive e tomar isso como pista. 

A especialista afirma que é imprescindível oferecer uma rede de proteção para garantia de direitos a essas crianças e adolescentes, que estão em processo de formação em meio a condição de vulnerabilidade social. 

“Podemos citar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca),  a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Todos esses documentos colocam essa criança como sujeito de história e da história, como sujeito de direito e como prioridade absoluta. Porque para essas estruturas,  que estão sendo formadas e constituídas, o impacto da relação social, da sociedade, dessas redes de apoio, dessa família, desse pai, desse professor, que chegam a cometer uma situação de violência, de omissão e de agressão é muito significativo na imagem que elas têm de si nesse impacto social”.

‘Do luto à luta’

Santiago lembra que situações de violência sexual, omissão e agressão são um marco significativo na estruturação de crianças e adolescentes, não podendo ser modificadas no decorrer da vida. Mas, é possível fortalecer as identidades e criar estratégias de resiliência. 

“A gente não consegue modificar o que aconteceu, mas pode ir do luto à luta, trazer um processo de conscientização. Se você for acompanhar programas, projetos sociais que têm esses educadores, esses profissionais, muitas  das vezes, vieram dessa situação de terem um dia passado por uma violência e ressignificam dessa forma, de oferecer ajuda e ser uma rede de apoio”.

Assim, a identidade “nunca é fechada”, tendo a vítima de carregar a cicatriz da violência ao longo da vida, conforme Santiago. Para ela, a marca pode ser ressignificada e, também, se tornar um elemento a mais na empatia, na sensibilidade, na força de luta contra essas questões.

Questões sociais

O desenvolvimento de crianças e adolescentes traz, também, elementos de desigualdade social. Santiago conta que é preciso lidar com as diferenças e diversidades que constituem a população como comunidade, para combater e oferecer formas de equidade de direitos. 

Nesse contexto, para que uma criança aprenda, se desenvolva e se constitua como sujeito,  ela precisa passar por um processo civilizatório de humanização e de homenização (se refere às transformações fisiológicas ocorridas no decorrer do tempo). 

“A gente precisa assumir um compromisso com essas crianças e adolescentes. Quando faltam esporte, saúde, educação de qualidade e participativa de envolvimento, de representatividade, têm um impacto muito significativo. Não é à toa que o Ceará é o segundo estado do Brasil que mais mata adolescente, e não é qualquer adolescente que morre, são os adolescentes das periferias”,  argumenta.

A professora alerta sobre os níveis de adoecimento, relacionados à saúde mental, que também estão aumentando entre o público infantojuvenil.

“Crianças estão se automutilando, com idealização suicida, muitas vezes desde a primeira infância. Algumas escolas, programas e projetos sociais não reconhecem essa sensibilidade. É preciso que esses locais tenham alternativas não só da preparação para o mercado de trabalho, não só da instrução, mas para que eles consigam denunciar, identificar, sendo essa rede de apoio para que a vítima se constitua como sujeito”. 

Uma das medidas para o enfrentamento da violência  contra crianças e adolescentes seria oferecer uma rede de apoio para encaminhar e promover acesso aos direitos de forma representativa, unindo os equipamentos que estão na linha de frente do problema, como, por exemplo, os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Conselhos Tutelares, unidades de saúde e escolas. 

“É muito importante que a gente reconheça esses marcadores sociais de classe, raça e gênero, os territórios de maior vulnerabilidade, e que pense em políticas públicas e intervenções de equidade, dando subsídios para que eles consigam identificar esses casos”. 

‘Sofrimento ético-político’

Essas marcas sociais estão presentes em duas teorias presentes na educação e na psicologia: a teoria da assistência científica e a teoria da privação cultural. Autores diziam que as crianças pobres, periféricas e marcadas pela violência da desigualdades eram inferiores, pois não tinham a mesma capacidade de desenvolvimento das demais, sendo necessárias políticas compensatórias. 

“A ida à escola era para ter acesso à merenda; o projeto social, a arte e a cultura não importavam. Era melhor a criança estar ali para não virar um caso de polícia, para não estar na rua”, conta.

Conforme a pesquisadora, ao tocar nessas questões psicossociais, gera a necessidade de conhecer o sistema de garantias de direito e, além disso, perceber que existem desigualdades históricas e cotidianas, as quais intitula de ‘sofrimento ético-político’.

“A violência marca profundamente a identidade dessas crianças ao longo da vida. Elas ficam mais ansiosas, mais depressivas, têm mais dificuldade de pensar em um projeto de vida, têm mais dificuldade de empreender, de terem cargos de liderança e de serem rede de apoio de empatia”.

A prevenção da violência  sexual  contra crianças e adolescentes requer políticas e iniciativas eficazes que abordem todos os fatores de risco subjacentes à violação de direitos e intensifiquem esforços para acolher, apoiar e libertar as vítimas desse ciclo perverso.

“A gente personifica o fracasso escolar, a dificuldade de aprendizagem, a omissão como se fossem uma questão só do sujeito que não se esforçou o suficiente ou que tem uma índole ruim ou que veio daquela família, daquele contexto.  É imprescindível a construção de estratégias de combate, um trabalho de prevenção, de promoção que, acima de tudo, dê suporte à criança e à família para que não venham reproduzir esse ciclo de violência perversa”. 

 

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