'Da cura gay ao perdão divino': dificuldades presentes no atendimento de vítimas de crimes sexuais

Psicólogas atendem, em média, 35 casos de crimes sexuais contra criança e adolescente todo mês em programa municipal de enfrentamento à violência. Entre janeiro e outubro deste ano, número de vítimas chegou a 575

Escrito por Ideídes Guedes , ideides.guedes@svm.com.br
criança desenhando
Legenda: Desenhos de crianças evidenciam os traços da violência sofrida
Foto: Fabiane de Paula

Silvânia e Mariana escutam e tentam não interiorizar o que chegam nos atendimentos na  Rede Aquarela, entidade pública que articula e executa a Política Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil em Fortaleza. Entre janeiro e outubro deste ano, foram 575 casos recebidos, sendo 571 de abuso sexual e quatro envolvendo exploração. A maioria das vítimas era do sexo feminino (487) e tinha de 12 a 18 anos (280).

Diante da fragilidade das vítimas que, muitas vezes, ainda não conseguem verbalizar, Silvânia e Mariana tentam acolher e evitar a revitimização e a violência institucional de quem chega diariamente ao local. Atualmente, cada psicóloga acompanha 35 casos.

Normalmente, após a ida à Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (DCECA), vítima e família são encaminhadas para a Rede Aquarela para o atendimento psicossocial, realizado com uma equipe multidisciplinar com psicólogos, advogados, educadores e assistentes sociais. Os casos, também, chegam por meio do Conselho Tutelar, que recebe denúncias de violência durante a atuação dentro dos territórios da Capital.

A Rede Aquarela atua em quatro eixos: prevenção, com palestras e oficinas educativas nos 39 territórios da Capital; atendimento na DCECA, num primeiro acolhimento humanizado às vítimas; atendimento psicossocial, com uma equipe multidisciplinar; e o atendimento na 12ª Vara Criminal, com uma equipe presente na sala de depoimento especial do Fórum Clóvis Beviláqua, uma parceria entre o Tribunal de Justiça e a Prefeitura.

Estudo de caso

A cada vítima recebida pela Rede Aquarela, é iniciado um estudo de caso. A metodologia consiste em reunir todos os atores participantes da rede de apoio para apresentar as dificuldades encontradas em relação ao caso.

A partir dessa etapa,  um protocolo para cada vítima é definido. Na primeira infância, os encontros são realizados de forma semanal. Quando se trata de adolescente, aumenta o número de atendimentos, com intervalo de quinze dias. O caminho é parecido, mas com linguagem diferente.

Mariana conta que, mesmo se tratando de violência sexual contra crianças e adolescente, a sociedade ainda tende a entrar no julgamento e culpabilizar a vítima. “Ah, olha a roupa que ela está usando. Ah, olha o horário que ela estava na rua”, rememora alguns relatos escutados no decorrer da atuação.

A psicóloga afirma que a criança ou adolescente demora um tempo para entender que a violação sofrida se trata do crime de exploração sexual, principalmente quando é intrafamiliar. Esses casos acabam se tornando complexos, porque, muitas vezes, a criança é retirada da escola, deixa de ser acompanhada pelo posto de saúde, dificultando a atuação da rede de proteção. “A criança começa a ser isolada de outros convívios, em que poderia fazer esse relato e outras pessoas alertarem o que ela está sofrendo”, conta.

A dificuldade de assimilar a violência acontece, por muitas vezes, por conta do imaginário criado na mente da criança. E isso se evidencia quando a criança pertence a uma família que esteja em situação de vulnerabilidade social extrema. “Ela cria uma ideia de que é importante, que ela tem de se submeter à violência para que a família possa comer”, explica.

Embora casos assim sejam comuns pela Capital, a denúncia esbarra no medo e na naturalização da sociedade. Quanto mais avança a idade da vítima, mais velado e naturalizado é o crime. “É muito duro escutar as próprias crianças dizendo: ‘tia, é bacana. Tia, todas as minhas amigas fazem’. E você percebe que tem muita gente envolvida naquilo”.

Abandono no atendimento

Trabalhar no enfrentamento da violência sexual infantojuvenil também é visualizar que situações dramáticas que envolvem fragilidades socioemocionais e culturais, violências transgeracionais e desinformação interferem na continuidade do acompanhamento.

Em 2021, dos 737 casos recebidos pela Rede Aquarela, apenas 310 conseguiram a ‘superação’, que é quando a vítima finaliza o protocolo de atendimento.  Geralmente, o tempo estipulado é de um ano após o início do acompanhamento psicossocial. “Mesmo sendo menos da metade, ainda é um número muito grande envolvendo violência sexual.

Mariana diz que é comum crianças e adolescentes vítimas de violência apresentarem um quadro de agressividade maior, insônia e outras mudanças de comportamento. De acordo com a psicóloga, o abandono acontece quando a família percebe uma melhora na saúde mental da vítima, logo nos primeiros dois e três atendimentos.

A preocupação com a parte jurídica e condenação do agressor também  é outro motivo para descontinuidade do acolhimento psicológico. “As pessoas chegam com um ‘eu vim para saber se ele vai ser preso. Não vai ser preso esta semana, então não importa’, e a gente tenta  sensibilizar e mostrar que a continuidade no programa é importante”, conta. O rompimento é encaminhado ao Conselho Tutelar, que notifica e faz uma advertência à família. O serviço não é obrigatório no decorrer do processo judicial.

‘Jesus também perdoou’

Apesar de ter passado aquela manhã atendendo, Silvânia ainda tem energia para conversar. E quer falar da religião, que tem um peso enorme dentro do prosseguimento do acompanhamento das vítimas. Para cada ‘perdão’ que escuta no atendimento, ela tenta repassar à família toda a dinâmica da violência.

“A gente se depara com pessoas dizendo que a criança perdoou, porque o pastor disse que o que aconteceu não foi culpa do agressor, mas culpa dos espíritos ruins e que ela precisa de oração para ser curada. E usam Jesus para reafirmar isso. ‘Se Jesus perdoou, eu preciso perdoar.’ A questão da religiosidade do familiar é inquestionável, mas estamos tratando de violência e aquela criança precisa de proteção”, expõe.

Silvânia lembra que o agressor não é agressor 24 horas. Ele é aquele pai de família, aquele filho exemplar, o bom funcionário da empresa. Para ela, o silêncio ajuda o agressor a escapar da condenação, mas o diálogo consegue fazer com que o familiar compreenda o fenômeno da violência sexual.

A cobrança pelo perdão traz impactos físicos e psicológicos, sobretudo nesse momento de maior fragilidade da vítima.  “As crianças chegam com lesões na pele por conta da automutilação. Temos casos de tentativas de suicídio”, conta.

Com a religião presente nas famílias, as crianças começam a viver uma vida cercada de medo após o início do protocolo de atendimento. A cada descoberta, uma mudança é provocada e mais fragilizada a criança fica, principalmente quando envolve sexualidade.

A psicóloga, muitas vezes, é a única pessoa de confiança e a primeira a saber  da orientação sexual da vítima. Por momentos, chegam relatos de ameaça de violência física. Em um dos atendimentos, se deparou com um pai perguntando se o filho viraria gay por causa do estupro sofrido. 

“Era a maior preocupação daquele pai. Queria que eu ‘curasse’ a criança. Eu disse que não funcionava assim, que o nosso atendimento  não era daquela forma e que eu não poderia interferir na orientação sexual daquele ser humano”.

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