Necrose e sofrimento psicológico: vítima de clínica clandestina relata sequelas após procedimento

Primeira vítima a denunciar casal de falsos esteticistas é uma mulher de 32 anos que realizou procedimento nos glúteos

Escrito por Ana Beatriz Caldas , beatriz.caldas@svm.com.br
Polícia Civil apreendeu apreendidos anestésicos, seringas, medicamentos vencidos e outros produtos irregulares na clínica clandestina
Legenda: Polícia Civil apreendeu apreendidos anestésicos, seringas, medicamentos vencidos e outros produtos irregulares na clínica clandestina
Foto: Divulgação/PCCE

Uma das vítimas do casal de falsos esteticistas Maria Roziane dos Reis Maia, 37, e Matheus Lean de Menezes Victor, 24, relatou em entrevista ao Diário do Nordeste os meses de dores e trauma emocional que se seguiram ao procedimento que ela realizou na clínica clandestina da dupla, em outubro do ano passado.

Entre as principais sequelas do procedimento, que foi realizado com Polimetilmetacrilato (PMMA), substância proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso médico e estético, está a necrose dos glúteos, área onde foi feito o tratamento.

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A vítima também afirma ter tido danos psicológicos severos. Além dela, uma amiga, de 38 anos, também denunciou os donos da clínica, localizada na Capital.  

Roziane e Matheus estão sendo investigados por lesão corporal grave, crime contra ordem tributária, falsificação de medicamentos para fins terapêuticos ou medicinais e exercício ilegal da medicina. Eles foram presos na última quinta-feira (29), mas liberados nesta sexta (1º), após pagamento de fiança de 20 salários mínimos.

A mulher de 32 anos, que terá sua identidade preservada, procurou o estabelecimento, localizado no bairro Dendê, para realizar uma “harmonização” nos glúteos. O procedimento estético era “um sonho”, e foram meses de planejamento até encontrar a clínica de Roziane no Instagram. Com 5 mil seguidores, a página contava com a divulgação de influenciadoras digitais, o que ajudou a vítima na hora da escolha.

O que ela não sabia é que Roziane e Mateus não possuíam nenhuma formação para realizar tratamentos estéticos. A dona da clínica, que realizava os procedimentos, é na verdade massoterapeuta.

Preço abaixo do mercado

A entrevistada explica que, além da aparente boa fama, outro ponto definitivo para a escolha da clínica foi o preço total do tratamento estético. Segundo ela, todas as outras clínicas pesquisadas cobravam mais caro e exigiam consulta e exames pagos – medida que serve para avaliar se o paciente tem condições de saúde para qualquer intervenção.

“Nas outras, era preciso marcar com um mês de antecedência, fazer vários exames, uma consulta prévia de R$ 500. Nessa, a avaliação era grátis e eu podia só chegar”, conta.

Quando chegou à clínica clandestina, a mulher estranhou o fato de o estabelecimento não ter placa e a recepção parecer uma cozinha, mas se sentiu mais segura ao entrar e encontrar o local lotado, inclusive com “pessoas famosas, blogueiras”.

“Me senti confiante. Quando cheguei lá ia avaliar se tinham alguma formação, algo do tipo, mas fui num sábado e tinha muita gente, aí não me importei em pesquisar tanta coisa. Pensei que, se tinha tanta gente lá, tinha credibilidade. Tinha muitas clientes, cerca de 15 pessoas”, destaca.

Constrangimento e frustração no 1º atendimento

Assim que encontrou Roziane na clínica, a vítima conta que passou por uma situação constrangedora. “Achei que ia entrar em uma sala e ser avaliada, mas ela pediu para eu baixar a calça na frente de várias pessoas. E eu já tinha vergonha do meu bumbum, apesar de ele não ser defeituoso”, narra a mulher.

Segundo ela, nesse momento Roziane sugeriu a realização de uma técnica chamada Bumbum Brasileiro, uma espécie de massagem com aplicação de enzimas no valor de R$ 350. O procedimento foi feito em cerca de 20 minutos, mas a cliente se sentiu frustrada, pois apesar de comentários positivos da equipe, não sentiu nenhuma diferença nas fotos do “antes e depois”.

“Aí ela falou ‘se você não gostou, tem o [procedimento] Bumbum Permanente, que dá para ver o resultado na hora. Não tem problema, não tem contraindicação e pode fazer agora mesmo’, mas eu não tinha o dinheiro na hora”, explica a paciente. 

A segunda técnica custava R$ 3 mil. A vítima, que é autônoma, dona de um salão de beleza, decidiu resgatar as economias que guardava para emergências e investir em mais uma tentativa de “harmonizar” o bumbum três dias depois. 

A alegria de finalmente ter o corpo dos sonhos foi tanta que, ao dividir a expectativa com uma amiga, ela acabou decidindo fazer o mesmo procedimento, no mesmo dia, também com Roziane Maia. Poucos dias depois, a amiga teria problemas muito semelhantes aos que a vítima encontraria.

Dia do procedimento

Quando a mulher chegou à clínica para fazer o sonhado Bumbum Permanente, em uma segunda-feira à tarde, estranhou novamente a postura da equipe. O espaço estava fechado e recebeu apenas as duas amigas, que foram medicadas com comprimidos de um remédio não informado “para relaxar”.

[Roziane] disse que era para relaxar, mas eu fiquei dopada, lesada, sem sentido nenhum, nem sabia onde estava. Quando entrei na sala, depois que minha amiga já tinha feito o procedimento, percebi que ela não tinha feito nenhuma higienização do local”, afirma.

Desorientada “como se estivesse bêbada”, ela não conseguiu fazer nenhum comentário nem pensar em ir embora. Conseguiu perceber, no entanto, que quem auxiliava Roziane Maia na aplicação da substância era uma manicure que trabalhava no local. 

“Ela estava enchendo a seringa dentro de um pote. Estava todo mundo sem luva e ela estava limpando meu bumbum com lenço umedecido, não era nem gaze”, destaca.

Segundo a vítima, várias agulhas foram posicionadas nos glúteos e, aos poucos, Roziane fazia as aplicações do produto. Como não estava anestesiada, em alguns lugares, a dor era insuportável. “Eu pedia para ela parar e ela dizia: ‘Bebêzinha, se eu parar, você não vai ter o bumbum que você quer. É aqui que você precisa de volume'”, lembra. 

Depois da aplicação, a massoterapeuta colocou curativos na região e explicou que a paciente precisaria de uma cinta – que deveria ser comprada ali, por um valor não incluso nos R$ 3 mil. Após a compra, a cinta, que não tinha sido higienizada e ainda estava com a etiqueta, foi colocada na mulher.

A vítima chegou na clínica às 17h, mas o procedimento só teve fim por volta das 0h. Ela conta que só conseguiu ir embora porque o namorado, preocupado com a demora, foi até o local e a levou para casa. Já na primeira noite, o lugar do procedimento começou a vazar óleo.

Dores, febre e manipulação emocional marcaram os meses após o procedimento

No dia seguinte à aplicação de PMMA, ela entrou em contato com a clínica e enviou fotos e vídeos da região dos glúteos para Roziane Maia, buscando entender por qual motivo aquela quantidade de óleo vazava dos glúteos sem parar. 

Daquele dia em diante, dores fortes e febre viraram rotina para a paciente, mas a falsa esteticista dizia que não havia problema e que bastava trocar os curativos. Com a ida frequente à clínica para tentar interromper os vazamentos, a mulher descobriu mais uma violência.

“Como passava o dia todo lá, percebi que quem respondia as mensagens e via minhas fotos íntimas era ele”, lamenta, se referindo a Matheus Lean.

O homem era o responsável pelo agendamento das clientes e outras funções administrativas, mas também operava o WhatsApp de Roziane e respondia “como se fosse ela”, segundo a vítima. “Fiquei com tanta vergonha, porque mandava fotos e vídeos do meu corpo”, conta. 

A negligência também ocorria pessoalmente. Roziane recebia a cliente e a mandava para uma sala separada das demais, reclamava do uso da cinta que tinha recomendado à mulher e dizia que tudo seria resolvido com massagens. Porém, com o passar dos dias, a massoterapeuta começou a culpar a paciente pelo resultado do procedimento.

Perguntei para ela se ia ficar pior, o que podia fazer. Disse ‘por favor, me fala, preciso saber o que está acontecendo para resolver enquanto é cedo'.

“Muita coisa ela me culpava. Eu chegava lá cheia de pus e ela dizia ‘como assim, você só pode ter comido alguma coisa’. Ela dizia que eu era remosa, que meu corpo que estava expulsando o produto. E a minha amiga, que foi no mesmo dia e teve o mesmo problema, ela chamou de sebosa”, relata.

Quando viu que a situação estava fora de controle, Roziane começou a delegar funções para amigos “médicos”, fora e dentro da clínica. Eles aplicavam medicação na veia e realizavam drenagens na área dos glúteos da mulher, que estava dolorida e cheia de manchas. 

Uma delas, segundo a vítima, era na realidade uma técnica de enfermagem. Outro profissional que atendeu a mulher – e que, segundo ela, trabalhava com Roziane – era de fato um médico, mas não atuava como cirurgião plástico, e sim nutrólogo.

Por mais de três meses, a vítima de 32 anos foi medicada e teve o corpo furado e drenado por pessoas sem qualificação para cuidar de seu caso. Ela conta que não foi a um hospital porque Roziane dizia que, se fosse e algo desse errado, ela não a atenderia mais, e que havia risco de infecção caso a vítima fosse internada.

“Eu pedia ‘por favor, me leva no hospital’ e ela dizia que era arriscado, que eu podia pegar bactéria, que meu corpo ia ficar muito feio esteticamente e que se eu fosse era minha responsabilidade”, lembra.

Em janeiro, depois de meses sem trabalhar e já sem forças para aguentar as dores – que vinham tanto das sequelas do procedimento quanto das furadas e drenagens quase diárias –, a vítima conseguiu uma consulta em uma Policlínica

Na época, além da gravidade da infecção, que tinha transformado as manchas nos glúteos em feridas, a vítima estava com anemia grave e sérios danos psicológicos. Não conseguia comer, com medo de causar uma piora no quadro, e estava com problemas de pele e nos dentes devido ao uso inadequado e exagerado de antibióticos.

“Foi lá que me disseram que eu estava correndo risco de vida, com uma bactéria comedora de carne causada pelo procedimento, pela presença de um corpo estranho”, rememora, emocionada. “Aí eu entrei em desespero, porque não tinha noção do risco que eu estava correndo”.

Luta por Justiça e pela cura: “Estou em casa, mas não estou boa”

Depois de passar um mês internada em um dos Frotinhas da Capital, entre janeiro e fevereiro, fazendo tratamento com antibióticos fortes – agora, voltados de fato para a sua recuperação – e acompanhamento psicológico e psiquiátrico, a mulher de 32 anos lamenta que os médicos ainda não tenham encontrado uma solução para seu caso.

“Os médicos disseram que eu não podia mais continuar com os antibióticos, porque eles eram muito fortes. E que não fariam a cirurgia porque é uma mutilação e sou muito nova para retirar o glúteo, o que seria necessário, porque o produto estava muito enraizado”, explica. 

O fato de a cirurgia reparadora ser considerada estética também dificulta a realização, tanto no sistema público como por planos de saúde. “Nada foi controlado, continua saindo secreção, porém estou sendo assistida pelo ambulatório”, lamenta. 

Agora, a vítima aguarda um exame de coleta para saber quais remédios podem ajudar a controlar a infecção. Só então, pontua, uma cirurgia poderá ser realmente considerada. “Estou em casa, mas não estou boa”, completa.

Ela entrou na minha mente. Eu não conseguia sair na rua, não conseguia comer nada porque achava que ia passar mal, que ia doer de novo. Começava a sentir febre e ela dava uma massagem. Eu achava que a massagem ia me deixar boa, mas não, eu ia morrer com aquilo.

A denúncia contra o casal de falsos esteticistas também faz parte do processo de cura. A entrevistada ressalta que sabe que há outras vítimas e que espera que elas “tenham coragem de denunciar”, para que outras pessoas não corram os mesmos riscos.

“Eu passei seis meses sem coragem porque ela [Roziane] se passa de sua amiga. Diz que não tem problema, pede para alguém fazer massagem, que que vai ficar tudo bem", conta, emocionada. "Quando cheguei no hospital, me disseram que eu podia ter morrido, e eu não fazia ideia da gravidade, mas ela sabia e não alertou”.

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