Motoristas de aplicativo: 2020 registra o maior número de mortes da categoria no Ceará

Levantamento mostra que, com 16 condutores vitimados em serviço, o ano passado teve quase seis vezes o número de ocorrência de 2019, com três registros fatais

Escrito por Redação ,
Paranaense, Alexandre veio para Fortaleza em 2018, ano em que iniciou os serviços nas plataformas de transporte, e dividia a casa com a companheira Bianca Fonseca
Legenda: Alexandre veio para Fortaleza em 2018, ano em que iniciou os serviços nas plataformas de transporte. Ele foi morto em 2020
Foto: Arquivo pessoal

A onda de violência registrada no ano passado também se estendeu para os profissionais que trabalham nas plataformas de transporte individual. É o que aponta levantamento da Associação dos Motoristas de Aplicativos do Ceará (AMAP-CE). Em 2020, houve registro de 16 condutores vitimados em serviço. O acumulado é quase metade dos casos elencados nos últimos quatro anos. Segundo levantamento da Associação, 33 motoristas perderam a vida durante viagens mediadas pelas plataformas no Estado — 12 vitimados em 2017, dois em 2018 e três em 2019

Entre as fatalidades de 2020, está o caso de Alexandre Fernandes Hadlich, morto em agosto após reagir a uma tentativa de assalto. O rapaz foi encontrado morto na BR-116, entre os municípios de Itaitinga e Aquiraz. Paranaense, Alexandre veio para Fortaleza em 2018, ano em que iniciou os serviços nas plataformas de transporte, e dividia a casa com a companheira Bianca Fonseca.

Como o motorista era quem mantinha as despesas do casal, Bianca está de mudança para outra casa. “Nos primeiros meses, tive ajuda da minha sogra para pagar o aluguel. O meu salário conseguia cobrir as outras despesas. Está sendo bem doloroso. Cada cantinho da casa foi pensado por nós dois, e é difícil pensar em deixar tudo isso para trás”, recorda.

Na residência, além de Bianca, a falta de Alexandre é compartilhada por Lolla, cachorra de estimação do casal. “Ela ainda espera por ele na porta, no horário que ele costumava chegar. Olha as fotos no rack e olha pra mim como quem pergunta por ele”, conta.

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Insegurança

Motorista de aplicativo e atual presidente da Associação, Rafael Keylon vê o recorde fatal em 2020 como consequência da violência no período. “Quanto mais tempo se passa exposto na rua, maior a possibilidade de ser vítima. Como os motoristas passam várias horas, e são muitos motoristas, a categoria sentiu esse aumento”, justifica.

As fatalidades acompanhadas pela Associação deram-se na Região Metropolitana de Fortaleza. A Capital, inclusive, é a cidade cearense com maior número de casos. Das mais de 30 ocorrências registradas no Estado, 21 aconteceram em território fortalezense, calcula Keylon. 

Embora as incidências contra os condutores não tenham causas definidas —  o coletivo de motoristas relaciona tentativas de assalto por pessoa externa ao veículo,  brigas de trânsito e motoristas assassinados junto a passageiros como fatores por trás das mortes — grande parte dos casos compartilham o latrocínio como motivação, avalia Rafael.

“São 19 casos [de latrocínio]. Todas as vítimas eram homens. Mulheres sofrem muitos assaltos, porém a chance de uma mulher reagir é bem menor, o que dá segurança aos criminosos que consumam apenas o roubo”, detalha.

Os serviços de corrida chegaram ao Ceará em 2016, trazidos pela multinacional estadunidense Uber. Anteriormente pioneira no mercado cearense, a empresa hoje divide a clientela com outras iniciativas, cadastradas, principalmente, para trabalhar em Fortaleza. Universitário, Marcelo Rifane, 22, foi atraído para o serviço pela flexibilidade de horas.

Ativo na plataforma Uber há quase dois anos, o estudante relembra a sensação de perigo durante as corridas em 2020 e compara com o percebido em 2019. “Os casos de assalto aumentaram, principalmente durante o período de lockdown. Todos os dias a gente recebia notícias de algum assalto, independentemente da plataforma”, conta. 

Marcelo mora com a mãe no bairro Canindezinho, na capital cearense, e para manter a tranquilidade em casa, evita sair à noite. “Ela fica muito preocupada", explica. Vítima de assalto com cinco meses de empresa, o motorista investe em cautela como principal barreira contra ocorrências violentas — mesmo que o bolso sofra um pouco.

“Nunca mais embarco dois homens. Pode ser algo errado da minha parte, para minha consciência, não faço mais isso. Às vezes, a gente acaba perdendo às vezes cinco corridas. É o que eu faço para estar mais tranquilo”, confessa Marcelo, motorista de aplicativo.

Ações para garantir segurança aos motoristas

À Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS), o Diário do Nordeste questionou sobre as medidas de segurança para motoristas de aplicativo. Em nota, a pasta informou realizar, desde o ano passado, “operações com o emprego de equipes da Polícia Militar do Ceará (PMCE) atuando por meio de abordagens a veículos que prestam serviço de transporte por aplicativo e a táxi”.

A Secretaria Municipal de Conservação e Serviço Públicos (SCSP), braço da Prefeitura de Fortaleza responsável pelo cadastro e acompanhamento de motoristas de aplicativo da Capital, foi acionada pela reportagem. Foi solicitado o número de plataformas aprovadas para funcionar na cidade, bem como os requisitos para permissão. O número de motoristas aptos a circular nos aplicativos também foi questionado, mas até a conclusão do matéria, no entanto, a Secretaria não enviou resposta. 

Uber diz colocar a segurança dos condutores como prioridade e detalhou mecanismos para garantir a integridade dos parceiros. Entre eles, está o recurso machine learning, ferramenta que bloqueia de forma automatizada viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, “a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação”, acrescenta a nota. 

Já a plataforma 99 Pop, aplicativo da empresa brasileira 99, também elencou a segurança como base e que, após investimento de R$ 35 milhões em segurança em 2020, a empresa conseguiu reduzir em 20,7% o número de ocorrências no Ceará, de janeiro a setembro. Na capital Fortaleza, o índice de ocorrências graves caiu 19%, no mesmo período”

Tanto a 99 quanto a Uber foram demandadas sobre oferecimento de seguro de vida, indenização ou ressarcimento de pertences após assaltos, mas não retornaram posicionamento. Ambas, no entanto, afirmaram dispor de centrais de atendimento 24h para emergências durante o serviço. A InDriver também foi procurada, mas até a conclusão desta reportagem não enviou resposta.

Zona cinza da legislação

A responsabilidade da empresa em garantir viagens seguras para os motoristas, no entanto, esbarra em uma zona cinza da legislação trabalhista. Considerados ‘parceiros’ das plataformas, juridicamente, o contrato entre as empresas e os motoristas não configura relação trabalhista. Por isso, indenizações em serviço não seguem as especificações da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

“No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ora, esse trabalhador é considerado trabalhador autônomo”, relaciona Giovanna Barros, advogada e vice-presidente da Comissão de Direito do Trabalho da sucursal cearense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE). 

Ainda que os tribunais superiores reconheçam a falta de vínculo empregatício, o consenso não se estende à comunidade jurídica como um todo. “Há ainda uma defesa de que é possível a proteção de direitos trabalhistas quando verificados os requisitos de pessoalidade e subordinação”, defende Paulo Carvalho, professor de Direito do Trabalho.

“Alguns países já regulamentaram direitos e deveres de trabalhadores nas plataformas eletrônicas de transportes, através de uma norma específica para essa relação de trabalho”, adiciona o docente, que também pesquisa relações de trabalho contemporâneas. 

Na visão de Giovanna, apesar dos direitos do condutor estarem submetidos ao contrato com as plataformas, uma vez que estas são prestadoras de serviço, a relação pode ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor. “No caso de assaltos, pode-se utilizar do código para pedir indenização por dano material e moral. No caso dos assassinatos, alguns magistrados entendem que se ele está prestando um serviço que deve ser oferecido com a maior segurança possível, é possível uma indenização”, elabora.

Paulo acrescenta que, no Brasil, ainda não temos legislação sobre isso e “hoje os trabalhadores, no caso de morte e acidentes, devem recorrer aos direitos decorrentes do contrato com o aplicativo ou eventuais seguros contratados paralelamente”.

A administração pública também pode ser responsabilizada. “Tanto o Estado como os órgãos municipais. A família pediria uma indenização às plataformas e o Estado poderia sofrer uma demanda nesse sentido, de ter que indenizar a família da vítima”, reforça Giovanna.  Aqui no Ceará, a AMAP se articula com órgãos de segurança, mediadores do contato entre os condutores e o serviço.

“As empresas colocaram em suas prioridades a segurança e o diálogo com a Polícia Civil. Através dessa rápida fluidez de informação é possível ter celeridade na investigação. O governo do Estado se reúne com a Associação e outro grupo de motoristas mensalmente, buscando soluções para diminuir as incidências de roubo consumado”, detalha Rafael.

Recomendações para evitar ocorrências durante corrida

  • Cautela: Não entrar em ruas sem saída. Evitar rodar de madrugada em locais que não conhece. Evitar levar homem quando o pedido for efetuado por passageiro do sexo feminino.
  • Prevenção: Parar para o embarque ligeiramente distante do local solicitado. Assim, ganha-se visibilidade.
  • Calma: Em casos de assalto, mantenha a calma. Não reagir ou encarar os criminosos. Investir no diálogo e consentir com a ação. Caso seja encaminhado para o porta malas, siga as instruções sem movimento brusco.
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