Em 2020, 47 mulheres foram vítimas de feminicídio no Ceará, apontam Observatórios da Segurança

Familiares relatam que as tragédias envolveram ameaças e ciúmes. Conforme levantamento divulgado pela Rede nesta quinta-feira (4), os casos de feminicídio no Estado são 74% a mais do que os registrados pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS)

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
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Legenda: Cortejo em homenagem à vítima Cícera Samires. Ela foi morta no seu local de trabalho, em Milagres, Interior do Ceará
Foto: VC/Repórter

Os registros de violência contra mulheres no Ceará são diários. Por vezes, fatais. Um levantamento feito por pesquisadores da Rede de Observatórios da Segurança sinalizou que, em 2020, aconteceram 47 feminicídios no Estado. O dado é 74% maior do que os números deste tipo de crime apontados pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Conforme a Pasta, no ano passado foram 27 feminicídios.

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O boletim 'A dor e a luta: números do feminicídio' foi divulgado nesta quinta-feira (4) pela Rede. "Os dados são produzidos a partir de um monitoramento do que circula nos meios de comunicação e nas redes sociais sobre violência e segurança. Todos os dias, as pesquisadoras conferem dezenas de veículos de imprensa, coletam informações e alimentam um banco de dados que posteriormente é revisado e consolidado", explicam os pesquisadores como chegaram ao número que diverge da estatística oficial do Governo.

A Rede destaca a possibilidade de a SSPDS entender como homicídios dolosos, o que os estudiosos entendem como feminicídios, ao analisar as circunstâncias nas quais as mortes aconteceram. Já a Secretaria diz que compila seus dados baseando-se nos parâmetros da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

"Em casos de morte de mulheres que inicialmente não têm a sua causa esclarecida, mas que no decorrer das investigações apresentam indícios de feminicídio, a classificação é alterada para a tipificação correta no Sistema de Informação Policial (SIP) da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE) e incluída nas bases de dados da SSPDS", disseram em nota.

Mais dados levantados pelos estudiosos da Rede chamam atenção: no ano passado, só no Ceará, foram 252 registros de violência contra mulheres e outras 33 tentativas de feminicídio. Além do Ceará, ocorrências de mortes de mulheres por razão de gênero de outros quatro estados foram analisados: Bahia (70), Pernambuco (82), Rio de Janeiro (50) e São Paulo (200). Somadas as cinco localidades, foram 449 feminicídios.

Em 58% das ocorrências os criminosos eram companheiros das vítimas

Ciclo da violência

A pesquisadora Ana Letícia Lins, da Rede de Observatórios da Segurança, destaca que as dinâmicas de feminicídios e violências contra a mulher no Ceará chamam a atenção. Sobressaem-se o uso das armas brancas, os recorrentes casos de tortura, os elementos de crueldade e o número assustador de homicídios dolosos que vitimam mulheres.

"Dos casos que monitoramos há predominância de agressores como companheiros e ex-companheiros das vítimas. Isso coloca pra gente que essas mulheres conviveram com seus agressores. Elas confiaram em algum momento nessas pessoas que tiraram a vida dela. Muitos feminicídios acontecem no contexto da casa. É um momento de crise sanitária, onde a casa deveria ser o lugar seguro para as mulheres, e acabou sendo onde foram vitimadas pelos seus agressores", pontuou Ana Letícia.

O boletim divide o ciclo da violência em três fases. A primeira é a da criação de um conflito, que pode surgir a partir da tensão psicológica e desqualificação da mulher. Quando o conflito explode acontece a agressão física, que pode resultar no afastamento do casal.

Já a terceira fase é a da suposta reconciliação. Pedidos de desculpas e promessas de mudanças ajudam a reconquistar a vítima, até que um novo momento de tensão acontece. "A cada rodada do ciclo, que se reproduz com frequência cada vez maior, o feminicídio pode ocorrer. Ações educativas para que as mulheres entendam o que estão enfrentando e o suporte para que elas quebrem esse ciclo antes de um desfecho mortal são necessários", consideram membros da Rede.

Fim do relacionamento, fim da vida

São diversos os casos de vítimas com desfecho trágico após este ciclo da violência. Em novembro do ano passado, Cícera Samires dos Santos Souza, de 29 anos, foi morta na cidade de Milagres, Interior do Ceará. O principal suspeito do assassinato é o ex-companheiro dela, Hélio Adelino da Silva.

Hélio foi visto entrando no local de trabalho da vítima. Instantes depois vieram os disparos. Cícera Soraya dos Santos, irmã de Samires, conta que a relação do casal era marcada pelo ciúmes. Soraya conta que, primeiro, Hélio afastou a namorada do convívio dos amigos, depois a traiu com amantes e por último a matou, quando ela disse que o relacionamento deles havia chegado ao fim.

"Desde o primeiro dia que eu conheci aquele homem, em poucos dias de conivência ja percebi o comportamento dele em relação a ela. Aquilo não era amor, era apenas ciúmes. Eu via no olhar dele a raiva quando tinha alguma brincadeira que ele não gostasse. Ficou fazendo planos de construir uma casa e fazer a cabeça dela. As amigas dela viam ele no bar ficando com outra. Ela já tinha certeza que era traída. Dizia que não queria mais, e com poucos dias voltavam", contou a irmã da vítima.

Cícera Soraya pediu que a irmã escolhesse: ou ele ou a família. Então Samires decidiu não ver mais Hélio e quis tirar do apartamento dele seus itens pessoais. Foi quando ele a ameaçou de morte, conforme os autos. Samires deu entrada em uma medida protetiva, e horas depois foi assassinada. "Aquele monstro matou ela aos poucos. Tem que ficar preso para não fazer ninguém mais sofrer", diz Soraya.

O suspeito foi encontrado dois dias após o feminicídio, em um sítio, na zona rural de Milagres. O suspeito optou por permanecer em silêncio em seu depoimento prestado às autoridades. O homem também é acusado de tentar matar uma amiga da ex-namorada, que tentou socorrer Samires. Hélio segue preso à disposição do Judiciário.

Terror psicológico

Um dos primeiros feminicídios em 2020 e com larga repercussão foi o de Ana Angélica Pereira Capistrano. Na história da mulher, as ameaças feitas por parte do esposo já tinham se tornado rotina. Conforme denúncia do Ministério Público do Ceará (MPCE), Ana foi arremessada pelo marido, de um carro em movimento e atingida com um disparo na cabeça, em Fortaleza. Carlos Alberto Soares Capistrano, de 59 anos, tentou se matar após o crime, mas foi socorrido com vida.

Dois anos antes da tragédia, a vítima chegou a registrar  Boletim de Ocorrência contra Carlos Alberto por ameaça, mas não retornou no prazo legal para dar prosseguimento aos trabalhos policiais, o que impediu que a investigação fosse continuada e ela beneficiada com medida protetiva.

Patrícia Izabelli Pereira de Faria, filha da vítima e enteada de Carlos Alberto iria almoçar com a mãe no dia do crime. Às autoridades, ela disse que durante todo o relacionamento o homem batia na sua genitora. Agora, mais de um ano após o feminicídio, ela relembra o que sentiu ao saber da morte da mãe.

"Ao saber da notícia, senti uma sensação de quase morte, perdi meus sentidos, embora eu estivesse grávida de cinco meses, naquele momento nada mais importava, a dor é imensurável e paralisante. Eu sempre tive o temor do pior acontecer, pois ele sempre falava que caso ela tentasse se esperar dele, ele iria matá-la. Todavia, alimentava uma esperança que ele não iria até o fim, talvez, por isso, a família, inclusive eu, não tive o cuidado em procurar uma ajuda especializada, perante a Polícia ou outro órgão, em que poderíamos ser orientados de como distanciar a minha mãe do agressor, sem que colocássemos a sua vida em risco. Nos últimos dias a necessidade de separar a minha mãe dele era imperativa, pois ele estava cada vez mais violento e controlador, inclusive proferindo ameaças de morte contra ela e especialmente contra os filhos que apoiavam o divórcio", disse Patrícia.

Ela diz ainda que, atualmente, o fato do padrasto permanecer preso ameniza a agonia na sua alma: "Se solto, eu temo pela minha vida e do meu filho, pois ele sempre deixou claro o ódio que nutria por mim, por sempre apoiar a minha mãe a se divorciar dele... Ela viveu na base do medo e da violência, e infelizmente morreu da mesma forma. Então, espero que a Justiça consiga enxergar toda a dor e terror que ele causou e causa para nossa família".

Carlos Alberto Soares Capistrano foi hospitalizado no Instituto Doutor José Frota (IJF) devido à tentativa de suicídio, e sobreviveu. Já em janeiro deste ano, a Justiça negou pedido de soltura do acusado e decidiu que ele permaneça preso.

 

 

 

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