Costureira grávida condenada por roubo após ser reconhecida por foto é absolvida em 2ª instância

Mulher foi apontada por um assalto em 2021 no bairro Aldeota, mas ela não estava na região no dia do crime. Ela passou quatro meses encarcerada e foi condenada, mas sua defesa conseguiu reverter a decisão

Escrito por Matheus Facundo , matheus.facundo@svm.com.br
Mariane, costureira grávida que foi presa somente por reconhecimento fotográfico
Legenda: Mariane passou quatro meses de sua gestação presa em uma unidade penitenciária na Grande Fortaleza
Foto: Arquivo pessoal

Quase dois anos após ser condenada por roubo, a costureira Mariane Teixeira Rodrigues, presa durante uma gravidez depois de ser reconhecida por uma vítima somente por fotografia, foi absolvida da acusação em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) no último dia 12 de março. A defesa dela apresentou uma apelação e a 3ª Câmara Criminal decidiu alterar a sentença por não considerar válido o reconhecimento exclusivamente por foto, além de indicar não haver provas adicionais contra a jovem, hoje com 28 anos. 

O caso começou a se desenrolar no dia 28 de dezembro de 2021, quando Mariane, grávida de três meses, foi presa em sua casa por volta das 6h por um assalto ocorrido em julho daquele ano em Fortaleza. Ao Diário do Nordeste, ela, a família e o advogado Alexandre Sales passaram mais de 15 dias sem saber o motivo do mandado de prisão, pois o processo estava sob segredo de justiça e era período de fim de ano. 

No dia do crime, ocorrido na Aldeota, a profissional de costura conta que estava na casa de sua antiga patroa, no bairro Castelo Encantado, encerrando o expediente com as colegas de trabalho. 

Durante as investigações da ocorrência, foram mostradas às vítimas fotos de várias pessoas, inclusive algumas de descrição diferente da narrada durante os depoimentos. Algumas das vítimas afirmaram reconhecer Mariane, e uma delas deu certeza. 

"Foram apresentadas seis fotos, ela disse que as características eram as de uma pessoa negra e de nariz achatado e que batia comigo. Foi minha palavra contra a dela. Eu estava grávida de três meses, fazia menos de um mês que eu tinha descoberto minha gravidez e os sentimentos estavam à flor da pele... Foi um grande baque para mim e para minha família, que tinha consciência que eu não tinha feito nada daquilo", relata Mariane. 

Mariane foi denunciada pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) em janeiro de 2022, com base no reconhecimento fotográfico e no depoimento da vítima. Conforme o documento, uma arma de fogo foi encontrada na casa no dia da prisão, durante buscas.

A mulher, entretanto, não possuía passagens criminais e tinha bons antecedentes, segundo aponta o documento de apelação produzido por seu advogado Alexandre Sales. Além disso, ela não foi ouvida pela Polícia Civil nas investigações e não houve flagrante. 

Após quatro meses presa, em 19 de abril de 2022, Mariane Teixeira foi sentenciada a 10 anos de prisão por roubo majorado. Ela ganhou o direito de recorrer em liberdade, pois estava gestante de mais de 8 meses. 

'Sequelas irreparáveis' 

Em entrevista ao Diário do Nordeste, Mariane disse sofrer com "sequelas irreparáveis" causadas pelo trauma do encarceramento: "Os quatro meses pareceram um ano lá dentro. Passar por tudo aquilo em ter culpa de nada". 

Ela ficou presa na Unidade Prisional Feminina Desembargadora Auri Moura Costa (UPF) e conta que assimilar o que estava passando foi uma jornada "muito difícil" e de humilhações, inclusive por policiais penais. Mas aceitar a prisão se tornou uma ferramenta de sobrevivência para ela.

Mariane disse que "nunca tinha sido privada da liberdade. Estava grávida e pensando muito na minha família e eu tive que aceitar estar naquela situação, porque se eu não aceitasse ia ser pior. Eu sabia que a justiça ia ser feita e que eu não ia ter minha filha lá dentro", relembra. 

Vai fazer dois anos que eu saí de lá. Com 8 meses de gravidez eu estava muito magra, a gente passa muita fome lá, eu ia dormir chorando. Foi muito baque e eu perdi muita coisa nesses dois anos, porque eu tinha planos de voltar a estudar, e do nada meus sonhos foram arrancados porque eu estava respondendo por uma coisa que eu não fiz

Ela focou na filha e acreditou na Justiça para "não se desesperar" e cair em um espiral de tristeza, segundo ela, comum durante o cárcere. Apesar de ter sido condenada e após sair da prisão ter passado um ano difícil, ela persistiu e hoje celebra a absolvição e o começo de uma nova vida, agora, segundo ela, "livre de verdade". 

ASPA

Estou grávida novamente, e cheguei a ficar sem chão quando descobri essa gravidez, mas do nada meu advogado me liga dizendo que tinha dado tudo certo e tirou uma coisa tão pesada de cima de mim... Eu vou ter que aprender a viver de novo a ter liberdade, porque eu tava presa ainda. Eu me sentia com medo de tudo, vou ter que aprender a viver novamente. Vou pensar em voltar a estudar e pensar em fazer algo de melhor para os meus filhos
Mariane Teixeira
Costureira

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Reconhecimento fotográfico é 'desrespeito à legislação', diz decisão 

De acordo com a decisão que absolveu Mariane, o reconhecimento fotográfico como prova é um "total desrespeito à legislação processual penal" e tem causado uma série de problemas judiciais, "resultando, por vezes, na condenação de pessoas inocentes". 

A relatora do processo apelação, desembargadora Marlúcia de Araújo Bezerra, defende que o Poder Judiciário não deve compactuar com esse tipo de identificação criminal. 

"No vertente caso, não existe para além do ilegal reconhecimento, nada mais, nem testemunhas que pudessem corroborar como reconhecimento da apelante, nem imagens de câmeras de segurança registrando o momento do crime, nem confissão da ré", diz trecho do relatório da 3ª Câmara Criminal. 

Para o advogado Alexandre Sales, que representou Mariane, o caso dela é emblemático e incorreu em erros desde o começo, pois não foram seguidas as definições do Código de Processo Penal sobre o reconhecimento de pessoas. Um dos parágrafos do artigo 226 prevê que os suspeitos devem ser colocados lado a lado, e devem ter semelhanças entre si, o que não ocorreu no caso em questão. 

Ele defende que o reconhecimento fotográfico "deve ser extirpado" do Judiciário e do Ministério Público: "Se apegar a provas que não têm cabimento, que não se amparam na legalidade e ofertar denúncia contra uma pessoa... E essa pessoa pobre, preta, fica presa e sofre as malécias do cárcere". 

Segundo a defesa, as testemunhas "estavam contaminadas". "O juiz errou em sentenciar, faltava provas, não tinha provas. As provas estavam muito, muito fracas", define. 

"O Tribunal de Justiça vem reparar um erro judicial que não vai tirar o tempo que a Mariane ficou presa grávida. Mas a sensação que a gente tem é de que a justiça está sendo feita, ainda que em segunda instância", aponta. 

Técnica criticada 

O reconhecimento fotográfico é uma técnica muito antiga na história da investigação policial, mas tem sido alvo de diversas críticas por advogados criminalistas. Em 2022, por exemplo, o Diário do Nordeste noticiou que a imagem do ator norte-americano Michael B. Jordan foi utilizada em um Termo de Reconhecimento Fotográfico feito no inquérito policial da Chacina da Sapiranga. 

No Ceará, assim como Mariane, já aconteceram outros casos de pessoas foram inocentadas de crimes que não cometeram após terem sido reconhecidas por foto. 

O episódio mais famoso é do borracheiro Antônio Cláudio Barbosa de Castro, que ganhou repercussão nacional. Ele foi solto em 2019, após passar quase cinco anos preso por uma acusação de estupro. Uma das provas utilizadas pela investigação da Polícia Civil foi o reconhecimento fotográfico, e depois o reconhecimento pessoal, feitos por uma das vítimas, menor de idade.

 

 

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