23 PMs são investigados por tortura e 10 por homicídio doloso, diz CGD

Na Justiça comum, Ministério Público afirma que já denunciou dois militares por tortura e declinou cinco inquéritos de homicídio para o Júri. Defensoria acredita que números são altos e falta a responsabilização de agentes

Escrito por Cadu Freitas , cadu.freitas@svm.com.br
Sete policiais militares foram denunciados. De acordo com o Ministério Público do Ceará, dois servidores militares foram denunciados por tortura, em 2020. Além deles, outro cinco inquéritos que apuram homicídios dolosos, em tese, foram transferidos para as varas do júri neste ano
Legenda: Sete policiais militares foram denunciados. De acordo com o Ministério Público do Ceará, dois servidores militares foram denunciados por tortura, em 2020. Além deles, outro cinco inquéritos que apuram homicídios dolosos, em tese, foram transferidos para as varas do júri neste ano

Vinte e três policiais militares estão respondendo a procedimentos na Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), os quais apuram transgressões disciplinares por tortura. Além desses processos administrativos, 10 PMs têm contra si a instauração de apurações sobre possíveis crimes de homicídios dolosos - quando há intenção de matar.

Segundo a CGD, todos esses processos estão em fase de instrução. "Ressalta-se que referida instauração importa no afastamento do exercício da função policial, segundo determina a legislação vigente", pontuou a Controladoria. Já a Promotoria de Justiça Militar - que é responsável por apurar crimes como tortura, corrupção, insubordinação, motim, entre outros cometidos por agentes militares até que fiquem caracterizados indícios de autoria - já formalizou duas denúncias de tortura neste ano e declinou da competência para as varas do júri de cinco inquéritos de mortes cometidas por militares com indícios de homicídio doloso.

Enquanto os números e processos vão se amontoando, Ana Ludmila só aguarda uma palavra: Justiça. Era tarde do dia 29 de janeiro de 2020, quando seu sobrinho Antônio José da Costa, de 23 anos, foi abordado por uma equipe do Comando de Policiamento de Ronda e Ações Intensivas e Ostensivas (CPRaio) no município de Granja, Norte do Ceará.

Os militares foram averiguar uma denúncia de tráfico de drogas praticada por um homem conhecido como 'Tonhão Chinês'. A família, desde o princípio, argumenta que, embora Antônio José fosse conhecido por 'Tonhão', o codinome 'Chinês' se refere a outra pessoa. Apesar disso, os PMs encontraram o rapaz à frente de sua casa e apreenderam com ele 20 sacos plásticos de dindin, um tomate e 0,01g de maconha. A legislação considera porte para consumo 1g de psicoativos.

Os policiais relataram em Boletim de Ocorrência que foi dada voz de prisão a ele e, em seguida, entraram na sua casa a fim de realizar buscas e pegar seus documentos. Os militares afirmaram que Antônio José foi algemado numa sala da casa e, enquanto faziam buscas no local, ele fugiu. Ao procurarem no quintal, encontraram Antônio dentro de um cacimbão batendo os pés.

A prova técnica

Com essa imagem, eles disseram que o retiraram do local e tentaram ressuscitá-lo. Sem sucesso, Antônio foi levado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e, lá, foi constatado o óbito. Mas nem todo o relato foi comprovado de forma prática. A narrativa dos policiais foi refutada a partir de um laudo da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) .

A perícia constatou que "os achados não se mostram típicos do afogamento verdadeiro ou do afogado úmido". A perita concluiu que Antônio José morreu por asfixia mecânica em razão de "obstrução das vias respiratórias por aspiração em meio líquido-pastoso contendo restos de alimentos (vômitos)". No laudo pericial, ainda foram constatadas escoriações nos punhos, nos cotovelos e no ombro esquerdo, além de equimose (mancha de sangue) na face.

"A gente quer Justiça. Meu sobrinho morreu de graça, por nada. Foi a pura crueldade desses policiais. A gente não entende por que eles fizeram isso, qual o motivo, pois não tinha precisão de eles fazerem isso, foi uma covardia", aponta a tia da vítima, ao ressaltar que a família, desde então, não conseguiu ter paz, nem saúde, só imaginando "o sofrimento que ele passou".

Os acusados pelo crime são o cabo Adalberto Nascimento Dias e os soldados Edmundo Ferreira da Costa Neto, Marclésio Ferreira da Silva e Pedro Dias dos Santos. Eles foram afastados pela 1ª Vara da Comarca de Granja e ficaram proibidos de entrar em contato com testemunhas e familiares da vítima.

Em nota, a defesa dos policiais militares, representada pelo advogado Roberto Queiroz, afirmou que eles estão "bastante tranquilos e conscientes de sua inocência". "Todos possuem uma ficha funcional íntegra e sempre atuaram dentro dos parâmetros legais, dessa forma, estão ainda mais seguros e dispostos a demonstrar sua inocência, que restará comprovada ao fim do trâmite dos procedimentos investigatórios", escreveu.

Responsabilização

Na visão da defensora pública Liana Lisboa, que atua em uma das Varas do Júri da Comarca de Fortaleza, os dados parecem "consolidar uma percepção da Defensoria de que falta a esses policiais do Ceará, que vêm praticando homicídios ou a prática de tortura e maus-tratos, uma responsabilização pelas irregularidades e pelos crimes cometidos no exercício da função".

Conforme a defensora, o órgão vem observando, desde 2018, um aumento no número de abordagens policiais com falhas procedimentais, nas quais surgem a mesma narrativa dos agentes da segurança e faltam provas periciais a fim de balizar o andamento das ações. Além disso, segundo a defensora, há um "padrão" de comportamento institucional quando um PM mata alguém em operação que é formalizado pela Polícia, pelo Ministério Público, que oferta as denúncias, e pelo Poder Judiciário, que as recebe, culpabilizando, assim, quem morreu ou sobreviveu. "Já temos conseguido sensibilizar o MP e o Judiciário, mas seguimos recebendo processos dessa natureza. O que mostra que é preciso que o sistema de Justiça dê conta da sua parcela de responsabilidade na legitimação desse tipo de ação", finaliza.

'Insignificantes'

Para o promotor de Justiça da Vara Militar, Sebastião Brasilino, os números são altos, uma vez que não deveria haver nenhum. Ele pontuou que tudo o que se diz de um policial militar é averiguado. Quando comparados ao total de apurações em processos judiciais, os casos de tortura e homicídio são "quase insignificantes". "Eu acho que se tiver uma tortura feita pela Polícia e um homicídio é muito. Infelizmente, em uma cidade como Fortaleza, a gente já se habituou ao número alto de homicídios que esses números parecem pequenos".

De acordo com Brasilino, "99% da Polícia Militar são de homens bons, agora têm esse 1% que 'bota gosto ruim no suco todinho'. Militar é forjado para ser correto. É um trabalho muito difícil, mas também é fácil porque está tudo escrito, a norma militar é toda escrita e avisada", argumenta.

Em nota, a Polícia Militar do Ceará afirmou "que segue a legislação vigente e cumpre as decisões judiciais". A Corporação ainda ressaltou que "não compactua com atitudes negativas exercidas por nenhum de seus servidores e a essência da Instituição é a proteção das pessoas", pontuou. Segundo a PM, além das apurações realizadas pela Controladoria, a Corporação instaura Inquérito Policial Militar para apurar as más condutas.

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