Cearenses contam saga dos arigós

Escrito por Redação ,
Legenda: CEARENSES PARTEM para o desconhecido Acre, saindo da Praça José de Alencar. Na concentração, na Praia de Iracema, caminhões pau-de-arara aguardam a tropa
Foto: Acervo MAUC

1943. O Ceará ainda sofria os efeitos de um período de seca - nos anos 41 e 42. Em Granja, um jovem de 23 anos tomou conhecimento de um cartaz enfeitado, sedutor, que prometia fartura e glória aos que fossem para a Amazônia, em busca do ouro branco: a borracha.

Levado pela miséria, Paulo Carneiro trocou a lida, a enxada, sua terra, pela faca da seringueira, pelo sonho de uma vida melhor. Quase morreu. O sonho virou pesadelo. Virou escravo nos seringais da Floresta. Da glória, do reconhecimento, virou um soldado da borracha, ou simplesmente, um arigó, como eram chamados os nordestinos que chegavam na Amazônia, durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário da maioria, que trocou o sertão fugindo da miséria, e se embrenhou na floresta para extrair o látex, Hélio Pinto Vieira foi levado pelo patriotismo. Ainda um garoto, aos 17 anos, deixou Canindé e for servir ao País. “Pelo que fiz pelo país, aliás, como todos os que foram, não tive condecoração e nenhum tostão.

Fomos enganados: os que foram pra fugir da fome e eu que fui por amor à pátria. Fomos abandonados no front da selva”. A história de Paulo e a de Hélio — como a de tantos outros que saíram de Morada Nova, Solonópoles, Canindé, Pedra Branca, Alto Santo, Sobral, de outros municípios cearenses e nordestinos, levados pela propaganda de Getúlio Vargas, e com o objetivo de garantir a borracha para os aliados que lutavam contra o Nazismo — será contada no documentário de Wolney Oliveira, “Borracha para Vitória”, cuja gravação foi encerrada ontem, em Rio Branco, Acre.

É a saga dos 53 mil nordestinos, grande parte de agricultores, que se transformaram no exército da borracha. Desse número, 30 mil morreram, abandonados, esquecidos e entregues à própria sorte. Alguns ainda vivem e contam como sobreviveram ao que eles chamam de “inferno verde”.

A vida do agricultor José Pio de Lima também mudou a partir dessa data. Aos 17 anos, deixou sua vidinha pacata, em Limoeiro do Norte, e embarcou no pau-de-arara que o levaria a cinco mil quilômetros de sua gente. “A vida na mata é só pra quem é muito macho. Preguiçoso não tinha vez. A gente começava a lida às 5 horas e só parava às 10 da noite, comia sentado num pau e não tinha direito a nada”, conta ele.

O isolamento, a solidão e a saudade de casa, afora, o perigo de contrair malária, febre amarela, meningite ou qualquer outra doença comum da região, pioravam ainda mais o seu estado físico e emocional. “Me pelava de medo de pegar alguma coisa dessa. Vi companheiros morrendo, sem poder fazer nada. Penei por demais”. Hoje, aos 78 anos de idade, casado, 13 filhos e 14 netos, José Pio diz que lembrar do que passou ainda lhe dá arrepio. “Os alojamentos viraram verdadeiros campos de concentração.

Tudo era cercado com arame e guardas por todos os lados. A gente pagava por tudo: comida, roupa, cigarro, rede e quando era na hora de receber, o patrão dizia que a gente ´tava´ era devendo. Não dava nem pra fugir”.

Com um olhar meio perdido nos livros da Academia Cearense de Letras (ACL), Hélio Pinto, tenta brincar com o passado. “Não tinha idade para ir para Europa lutar e fui me meter na batalha da borracha. Isso para salvar a indústria bélica aliada. Tudo ilusão. Viramos um exército de enganados”.

Hoje, membro da ACL, título que muito se orgulha, Hélio conta que ainda vai publicar “A Batalha da Produção da Borracha”.

Durante os dois anos que passou nos seringais, ele anotou tudo pelo qual passou e testemunhou. “Minha sorte é que tenho noções de enfermagem, higiene. Isso me ajudou a sobreviver. De noite, fazia como os índios que fiz amizade: passava uma seiva pelo corpo, um repelente e ficava igual a eles, que sabem muito da mata”, elogia.