Primeiro Ceará x Fortaleza feminino da história tem circo, artilheira ilusionista e troféu revelado
Partida ocorreu há 70 anos e reuniu os quatro maiores times do Estado num quadrangular no ano de 1955
Tem espetáculo? Tem, sim, senhor! Há 70 anos, Ceará e Fortaleza disputaram o primeiro Clássico-Rainha da história. Em 1955, as representantes alvinegras venceram as tricolores no duelo de estreia da Taça Antolín Garcia, na capital cearense. Na época, futebol e arte deram as mãos num palco improvável: o Gran Circo Romano, um dos maiores do Brasil. Debaixo da lona, elas afrontaram o Decreto-Lei que proibia a prática da modalidade no país por mulheres. Era a resistência do esporte através da arte.
A exemplo do futebol, o circo moderno, no formato de espetáculo, também teve origem na Inglaterra, ainda no século XVIII. No Romano, as artistas-atletas se revezavam a fim de vestir os uniformes dos principais times da cidade na disputa do quadrangular. Ceará, Fortaleza, Ferroviário e América disputaram a taça. O troféu levava o nome do proprietário do negócio. O paulistano promovia o número como forma de atrair o público para melhorar a renda. Os clubes, no entanto, não tinham ligação com o evento amador.
“Era uma coisa feita na última semana da estadia em Fortaleza, era um evento importante de encerramento. Eles faziam sorteio de prêmios. Muita gente ia. O futebol feminino também despertava esse riso das pessoas. Era algo engraçado deles assistirem também”, afirmou a historiadora Estefany Sales.
Os jornais da época noticiaram o torneio como grande atração. No dia 13 de julho, numa sexta-feira, Ceará e Fortaleza fizeram a partida de estreia. As alvinegras venceram por 4 a 2. Edna e Mundinha marcaram os tentos do Tricolor. Pelo Vovô, Janet (1) e Galateia (3) balançaram as redes adversárias. Os confrontos tiveram dois tempos de dez minutos cada, com intervalo de cinco. A final entre o Vovô e o Tubarão da Barra ocorreu no domingo, dia 15 de julho.
No dia seguinte, a imprensa também repercutiu a atração. Quem esperava perna de pau, encontrou grande empolgação com as mulheres na peleja. A prática encontrou nos circos um palco, onde a modalidade passou a compor os shows. Mesmo assim, o Governo tentou interromper as apresentações.
“Existia o incômodo do CND (Conselho Nacional de Desportos) na época, eles mandavam telegramas. A polícia também mandava circulares às Federações, para não apoiarem esses jogos mas, apesar disso, ainda aconteciam com a justificativa de ser só um espetáculo, não futebol de fato. Elas burlavam dessa forma”, explicou a historiadora.
TABELA DOS JOGOS - 1955
- Ceará x Fortaleza
- Ferroviário x América
- Fortaleza x Ferroviário
- Ceará x América
- Fortaleza x América
- Ceará x Ferroviário
GALATÉIA, ILUSIONISTA E ARTILHEIRA
As informações sobre as atletas são escassas. O jornal "O Poti”, do Rio Grande do Norte, publicado em 17 de julho daquele ano, lugar onde a trupe seguiu após deixar a cidade cearense, descreve Galatéia, artilheira do clássico, desta forma: “a mulher satânica, uma francesa ilusionista, eclética e dinâmica figura, empolgando o mundo com seus números emocionantes", como uma das principais atrações.
A jogadora encantou na arte ao usar truques de mágica para atrair a atenção e surpreender o público. Mas também levou o coração de Antolín Garcia, o “Rei do Circo”.
"Garcia, o maior empresário de Circos da América do Sul", trouxe a manchete da reportagem assinada por Verissimo de Melo, em 29 de julho de 1955, também no “O Poti”. Na entrevista, feita numa barraca armada atrás da arena, ele revelou ter juntado as economias e investiu no ramo. Além do Circo Romano, era dono dos Circos Garcia, Spadoni e Alegria, além do Palácio de Alumínio.
Ao ser perguntado sobre o grande número de artistas estrangeiros no elenco, ele responde: "Para certas atividades em circo, não temos artistas no Brasil. Temos que lançar mão de artistas europeus (...) entre os quais está a minha esposa Galateia”, afirma em trecho do jornal.
O enredo atravessou o tempo e ganhou novos capítulos na pesquisa de Estefany Sales, publicada no livro “Mulheres em Campo - Um Olé no Decreto-Lei 3.199”. A determinação do governo, de 1941, regulamentou a organização esportiva no Brasil, com a criação do CND e proibiu mulheres de praticarem diversos esportes considerados “incompatíveis com a natureza feminina".
O país enfrentava uma conjuntura política conturbada, num eminente cenário de repressão. A arena circense era um dos poucos espaços onde era possível experimentar a liberdade.
"Este deslocamento do campo esportivo para o campo das artes cênicas incide sobre os esforços de organização da historiografia do futebol de mulheres, uma modalidade que percorreu caminhos particulares quando comparado ao masculino, e por essa razão, foi constituída de manifestações do fenômeno em diferentes ambientes de sociabilidade pública", afirma Aira Bonfim na dissertação Football Feminino entre Festas Esportivas, Circos e Campos Suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941).
O TROFÉU “PERDIDO”
O encontro entre riso e esporte continuou animando plateias, mas o futebol feminino seguiu proibido até 1979. Ainda há resquícios dos quase 40 anos sem a permissão para mulheres praticarem diversas atividades esportivas. O troféu permaneceu como um dos símbolos do pioneirismo delas.
Décadas depois, o tema compôs a monografia de curso de Estefany, pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). A ideia ocorreu numa visita à sede do Alvinegro. O Centro Cultural do clube, responsável por cuidar e divulgar a memória esportiva e institucional do Vovô, carecia de informações sobre a taça. A pesquisa dela perpassou pelos anos de 1940 até 1979, fim do Decreto-Lei.
“Eu me interessei em saber o que existia apesar da proibição, quais foram as partidas ilegais desse período, e me deparei com esse jogo no circo. É um campo muito amplo e pode existir algum ainda não descoberto, mas foi o Clássico-Rainha mais antigo encontrado por mim. Registrado”, relembrou Estefany, que propaga a descoberta aos alunos, em sala de aula.
Estefany recebeu uma nota de jornal de David Barboza, amigo e pesquisador focado no Fortaleza, sobre a partida. Em seguida, ela mergulhou na Biblioteca Pública do Ceará. Ao pesquisar jornais da época, encontrou informações primárias. No entanto, na publicação do dia da final, a página do periódico estava rasgada e não tinha como saber o time vencedor do torneio.
Então, entrou em contato com Gabriel Arcelino, gestor do Centro Cultural do Vovô, para verificar se havia um troféu chamado Antolín Garcia no acervo. E lá estava ele, entre outros 180 expostos. O Ceará tomou conhecimento da trama da taça através de Estefany. Desde então, ela é apresentada aos visitantes do espaço que abriga a memória alvinegra.
“O mais provável, mas isso é apenas uma teoria ainda não comprovada, é a seguinte: o próprio dono do circo convidou os representantes dos clubes e, como o Ceará foi vencedor da competição, presenteou o clube com essa taça”, afirmou Gabriel.
“Uma história como essa reafirma a importância do futebol feminino, reafirma a luta para que se conseguisse ter o campeonato de hoje em dia. Então, realmente brilha o olho quando fazemos as mediações para contar aqui no Ceará”, finalizou o gestor.
A ÚLTIMA TAÇA
Da era profissionalizada dos times, iniciada em 2019, até este ano, foram 26 Clássicos-Rainha disputados entre as equipes. Foram 11 vitórias para as Meninas do Vozão, seis para as Leoas, além de nove empates. Em títulos, o Alvinegro tem cinco e as Tricolores têm quatro. Já o Caucaia é o maior campeão estadual, com seis.
As equipes, que têm crescido com a expansão da modalidade no país e por incentivo da CBF, protagonizam a maior rivalidade do estado. Há 70 anos, quando o esporte feminino era proibido e visto como entretenimento, a trupe de pioneiras talvez não imaginasse que fortaleciam a modalidade apesar da repressão.
“Não sabia. É curioso saber. Mas fico feliz e orgulhosa que mulheres, há tanto tempo atrás, fizeram parte da história do clube, conquistando títulos históricos para o clube. E que essa rivalidade já vem há anos. Agora está mais frequente. E que possamos dar continuidade a essa história por muitos anos”, afirmou a jogadora.
As Meninas do Vozão e as Leoas entraram em campo na disputa por mais um título estadual. com as equipes jogando a finalíssima no dia 25 de novembro, no Estádio Presidente Vargas, com as tricolores levando a melhor em emocionante disputa nos pênaltis.
Após 70 anos do evento no pavilhão, a categoria celebra as muitas conquistas com olhar atento às lutas. Entre acrobacias com a bola e a tradição dos uniformes, elas sabem “que o show de todo artista têm que continuar.”