Mulheres pretas no futebol: o retrato da representatividade além das quatro linhas
A luta antirracista pelo olhar de mulheres que furam a bolha dos espaços que ocupam
As pessoas pretas demoraram a alcançar os espaços ao longo da história, já que a escravidão foi predominante por anos. Mesmo após a assinatura da Lei Áurea, em 1888, pela Princesa Isabel, os negros não foram direcionados a viver dignamente, somente receberam a liberdade, sem as oportunidades surgirem de forma mais tranquila. Muitos se perderam pelo caminho. Outros, em uma quantidade bem pequena, começaram a furar a bolha dos destinos cruéis e mostrar — mesmo com o racismo impregnado — que poderiam conquistar os espaços que quisessem.
Já são 137 anos após a “libertação” do povo preto, que viveu preso ao preconceito da sociedade no passado e atualmente o cenário não é tão diferente — a mudança é que as gerações que foram surgindo, aprenderam a lutar e entrar nos ambientes ditos por alguns que não nos pertencem.
Anos depois surgiu o dia da Consciência Negra, no dia 20 de novembro, em homenagem ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Ele foi a principal referência da luta contra a escravidão no Brasil e era o líder do maior quilombo durante o período colonial. A data também reforça como os quilombos foram responsáveis pela organização política, territorial e social do povo preto, valorizando a trajetória e a cultura afro-brasileira. Em 2023, se tornou feriado nacional.
Escrevo como mulher preta, do interior do Ceará e jornalista esportiva. Um sonho de infância realizado. Quando criança a minha família nunca desacreditou dos meus objetivos. Mas, a sociedade, sim. Risadas, nãos, olhares tortos me faziam imaginar que seria impossível falar em um microfone de rádio ou tv. E os comentários eram sobre o padrão de aparência, predominado por pessoas brancas.
A minha felicidade é perceber que há mais pretas no meio esportivo nos veículos nacionais e nos ambientes do nosso Estado. Trago aqui dois nomes que são um reflexo disso. Maria Helena Sousa, assistente administrativa no setor financeiro da Federação Cearense de Futebol (FCF) desde 2010 e Karoline Tavares, jornalista desde 2019, que escreveu o livro “Passa a bola para elas” e faz coberturas para o Novo Basquete Brasil (NBB).
O futebol nunca esteve nos sonhos de Helena. A motivação futebolística surgia nas épocas de Copa do Mundo. O fato de estar na FCF aflorou o sentimento.
“Para mim, isso representa muito mais do que uma conquista profissional: é resistência, representatividade e responsabilidade. Ter uma instituição como a Federação Cearense de Futebol reconhecendo e dando oportunidade a uma mulher negra em um espaço predominantemente masculino é um privilégio muito grande”
Por outro lado, Karol, como é carinhosamente chamada, viu o amor por esportes surgir aos 12 anos, quando assistiu toda a Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Quando a competição acabou, foi o Brasileirão que fez os olhos dela brilharem e firmar a certeza que isso se tornaria em uma experiência de vida.
“Estava de férias da escola e ficava sozinha em casa, porque meus pais saíam para trabalhar, então minha companhia era a TV. Lembro que assistia todos os jogos, de manhã e de tarde. Não entendia nada, mas ficava maravilhada com o clima de Copa e com a cultura sul-africana. Quando a Copa acabou, fiquei vidrada no Brasileirão. Na época, eu não tinha internet em casa, então tinha um caderninho em que anotava todos os resultados dos jogos de cada rodada e a classificação. Fiquei apaixonada.”
A LUTA ANTIRRACISTA
Ativista da luta antirracista e uma das fundadoras da Casa de Xicas, um coletivo de mulheres negras, Helena reconhece que a trajetória construída é para ser referência a outras pretinhas que buscam ocupar os diferentes espaços. “Cada passo que dou aqui carrega essa luta coletiva. Minha trajetória se conecta a tantas lutas que buscam reduzir desigualdades e ampliar a presença das mulheres negras em diferentes espaços. Quero que minha trajetória sirva como exemplo para outras mulheres negras e periféricas que sonham em ocupar espaços que parecem impossíveis.”
O caminho é construído por muitos percalços. A insegurança muitas vezes é colocada em nós por outras pessoas, pelo fato que vivemos em constante afirmação sobre nossos conhecimentos em diversos assuntos. “Sou do tipo que pesquisa uma informação em diversos lugares até colocar no meu texto, mesmo que a minha primeira pesquisa tenha sido confiável. Tenho a necessidade de diminuir minhas margens de erro, de não me permitir gaguejar, de ler várias vezes até ter certeza que está bom. Seria perfeccionismo? Antes diria que sim, hoje vejo de outra forma”, afirmou Karoline.
Nós, pretas, somos inspiradas por outras mulheres que lutaram antes do nosso nascimento e por outras que vamos conhecendo ao longo da caminhada. Helena e Karol citaram os principais pilares: o amor maternal. As nossas mães são o reflexo de uma luta árdua do passado para que nós não estejamos na mira do mesmo processo. E a vida vai nos apresentando outras mulheres. “Minha amiga Neide Rodrigues, Kiusam de Oliveira, Elza Soares, Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo”, disse Helena.
Karol cita referências profissionais tanto de convivência, como de expressão nacional.
“Minha amiga e jornalista Beatriz Carvalho é outra mulher negra incrível. Me dá muito orgulho de ter escrito um TCC que virou livro publicado com ela. A jornalista Larissa Carvalho, fundadora do Negrê, também é uma mulher inspiradora, que viabiliza meios para impulsionar outras pessoas negras, como eu. Inúmeras outras a nível profissional: Jordana Araújo, Rafaelle Seraphim, Day Natale, Natália Silva, Júlia Trindade, Karine Alves… são tantas!”
Sabemos que ainda não estamos no patamar desejado, mas que temos no inserido. Maria Helena reforça que as mulheres pretas não desistam de alcançar os espaços que desejam. “Estamos aparecendo a passos lentos, mas já é um avanço, espero que continuemos sendo esse abrir de portas para mais mulheres pretas. [Sei que] sou inspiração para as [pretas] que estão começando a enxergar o mundo. Não desista de querer ser quem você quer ser, ultrapasse as barreiras sem pressa e chegue onde queira chegar”, aconselhou.
O conhecimento é a base de tudo. E nós, pessoas pretas, sabemos como a exigência é maior para nós, seja de forma direta ou indiretamente. A sociedade nos cobra um a mais - por mais que não percebam - mas passamos a vida toda tentando provar quem somos. Há pessoas que não sofrem racismo e ao compreender esse tipo de pressão, mudam os comportamentos. Significa também que uma parte - ainda pequena - quer uma sociedade mais igualitária.
“Estudem, sempre. É batido, mas é verdade que conhecimento é a única coisa que não tiram da gente. E vou além: estudar sobre as nossas respectivas áreas de trabalho podem nos gerar oportunidades incríveis, que se você não tivesse estudado, não poderia ocupar. Capacitem-se e não desistam. Mesmo que o lugar almejado não chegue de imediato, busque fazer o seu. E, quando chegar em um espaço em que parece que você é a única, seja porta e acolhimento para que outras de nós o alcancem também”, reforçou Karoline.
Trago partes de duas das diversas histórias de mulheres pretas que ocupam espaços que não consideram nossos e que quebram os paradigmas sociais. Escrevo aqui inspirada pelas minhas referências: Maria Alves, minha mãe, Cícera Alves, minha avó, Glória Maria, Karine Alves, Jordana Araújo, Letícia Pinho, Angela Davis, Djamila Ribeiro, Maria Júlia Coutinho, Letícia Lopes e Rafaelle Seraphim; pelas minhas colegas de trabalho no Sistema Verdes Mares, Raísa Martins e Thais Jorge; e por outras mulheres pretas inseridas no meio esportivo: Beatriz Carvalho, Kalyne Lima, Bruna Souza, Eduarda Sena, Iara Costa, Lara Santos, Micaelle Santos, Clara Lyz, Raiana Lucas e as novas gerações que surjam no mundo da bola.