Central de 20 anos começou a jogar em chão de terra batida com rede de arame
“Como assim um sonho não é algo maior?”, questiona Lucas Sousa, ex-auxiliar de açougueiro. Depois de passar pelo piso de areia e rede feita com cerca de arame, o central vive a ansiedade de estrear na Superliga masculina 2022/23 de vôlei pelo Rede Cuca. Ele deixou o Assentamento Groenlândia, onde morava com a família em Tabuleiro do Norte, cidade a 211km de Fortaleza, para viver o sonho de jogar em uma das maiores competições da modalidade no mundo.
O Assentamento Groenlândia fica a 40km do centro de Tabuleiro do Norte. São 60 residências no local onde ele cresceu e onde os pais moram. No terreno na frente de casa, com bola dente de leite, o chão de terra batida viu Lucas e o primo, Jezueldo Lourenço, começarem a brincar de vôlei.
“A gente jogava lá e como não tinha rede, a gente fazia uma cerca, aquelas cercas de arame farpado mesmo, como se fosse rede. Quando a bola batia no arame, já era. Isso desde os 12 ou 13 anos…”, lembrou.
A dupla decidiu então montar uma espécie de quadra no campo da frente. A iniciativa veio após Lucas ganhar a rede antiga da escola, presente de um professor. Chamavam amigos e emendavam a tarde na noite envolvidos em vôlei.
“Era carroçal, tinha brita, espinho, era tudo. A gente limpou. A gente fez toda a estrutura com a rede, as linhas… Depois, colocamos luzes nos dois lados, e os postes segurando a rede. Meu primo teve a ideia de fazer um pequeno torneio que valia uma caixa de chocolate. Fui destaque no torneiozinho, e postaram uma foto minha no Facebook”, disse o central.
O filho do agricultor Francisco Nilson e da dona de casa Linete Oliveira começou a se destacar. A foto na internet chamou atenção de Maurício Oliveira, técnico do time de Tabuleiro. Não demorou e Lucas, aos 14 anos, recebeu convite para defender a equipe da cidade. Lá, disputou a primeira competição.
“Nunca tinha pisado em quadra. Não vou negar que eu não sabia o que era vôlei de quadra. Com o tempo, melhorei as coisas que eu não sabia”, relembrou.
EM BUSCA DO SONHO
Passou a se destacar nos campeonatos do interior e, aos 17 anos, foi chamado para teste no Vôlei Renata, em Campinas (SP). O convite veio do também cearense Bruno Canuto, que defendia o clube na época. Então, ao lado da mãe, passou a vender rifa para arrecadar dinheiro. Professores da escola e pessoas da cidade colaboraram. As críticas também existiram.
“Nunca vou esquecer. Também tem outros que criticam. Teve gente que eu chegava nas casas... ‘Ah, se fosse por algo maior eu compraria (rifa)’. Gente, como assim um sonho não é algo maior? Mas eu só agradecia… Arrecadei um valor e o Bruno comprou minhas passagens”, relembrou.
Na Terra da Garoa, viu pela primeira vez a estrutura de um ginásio profissional. Porém, a agenda de treinamento foi suspensa por causa da pandemia. Lucas ainda ficou quase cinco meses na cidade. A situação se complicou e, mesmo com ajuda de outros atletas e familiares, voltou para Tabuleiro.
A VOLTA PARA TABULEIRO
Na cidade natal, a avó o acolheu. Arrumou emprego como auxiliar de açougueiro. Trabalhava, estudava e treinava. Decidiu disputar os Jogos do Vale, competição Sub-21 realizada no interior. Lá ele foi visto por Malbha Tahan, supervisor do Rede Cuca, e recebeu convite para a seletiva do time que disputaria a Superliga B 2021/2022.
Nem perguntou aos pais se podia, apenas avisou da decisão. Lucas não pensou nas dificuldades, queria viver o sonho. Saiu de dois treinos por semana para rotina diária de dedicação ao esporte. Deu certo. Os pais se preocuparam com o fator financeiro.
“Não vou negar: não foi fácil, porque não tinha condição. Fiz até campanha pedindo ajuda honestamente. Era a única coisa que eu podia fazer. Mas, graças a Deus, o povo aqui do José Walter, todos os funcionários do Cuca ajudaram… Eu entro aqui dentro e tô em casa”, revelou o central.
VIVER A SUPERLIGA
O Rede Cuca conquistou o 3º lugar da Superliga B 2021/2022. O time ganhou o direito de disputar a elite do vôlei nacional após falta de fairplay financeiro do Funvic/Natal. Na 2ª divisão do vôlei, Lucas conseguiu evoluir como atleta. Aos 20 anos, foi chamado para defender novamente a equipe na temporada. Desta vez, na Superliga.
“Passa um filme na cabeça. Saí lá do interior do interior, o povo não sabe nem como é que conseguiram me achar. E onde é que eu tô, meu Deus? Passando na televisão, conhecendo lugar que eu nunca imaginava estar, conhecendo atleta de seleção brasileira, de outros países… Aceitei o convite e dei a cara a tapa. Não vai ser fácil. É um campeonato visado mundialmente, um dos mais disputados. Vai exigir muito de mim e do time. Cada jogo é uma cobrança. Se errei, sou consciente que tenho que melhorar, mas tô ali ajudando o time”, contou.
O jogador atuava como oposto mas, em 2022, será central. O treinador Marcelo Negrão aprovou a atuação dele na posição e oficializou a nova função de Lucas.
“Não tenho nem o que falar do time, da comissão. Estou longe da minha família e minha família faz muita falta pra mim. Mas isso pra mim é uma família. Não de sangue, mas de conviver, de estar ali lado a lado, apoiando. Só tenho a agradecer a Deus e a tudo isso que está acontecendo na minha vida”, revelou o atleta que foi acolhido na casa do supervisor Malbha Tahan.
Lucas se dedica somente ao vôlei. Ele é motivo de alegria para os pais, lá no Assentamento Groenlândia, no interior do interior de Tabuleiro.
“Minha mãe não consegue nem assistir direito. Eles estão muito felizes, é muito satisfatório ouvir de seus pais, irmão, que você é o maior orgulho da família. busquei tanto ouvir isso e agora ouço de gente da minha comunidade, da minha cidade, é muito satisfatório”, revelou emocionado.
Lucas vai estrear na Liga A diante do atual campeão do torneio, o Cruzeiro. O duelo será nesta sexta-feira (21), às 20h30 (de Brasília), no Ginásio Paulo Sarasate. Mais de 3 mil pessoas já confirmaram presença. Veja a tabela de jogos.
“Eu estou tranquilo. Ansiedade bate em qualquer um, mas não é uma que me coloque pra baixo. Minha expectativa é que a gente faça um bom jogo. Estamos treinando duro, fisicamente bem. As pessoas falam ‘ah, vão jogar praticamente contra o povo da seleção’. Mas não é por isso que vamos dar mole para eles. Temos que ir com força total. Se a gente for ali, com sangue no olho, vibrando a cada ponto, eles vão ver que a gente vai querer jogo. E a torcida daqui vai ajudar a gente”, concluiu.