Artistas não são artistas à toa. Enxergam o mundo sob outra lente. Guiomar Marinho carrega essa certeza desde pequena, quando observava as flores no canteiro de casa, em Curitiba (PR). Enquanto as irmãs passavam indiferentes pelo jardim, ela ficava encantada com as cores e formas à frente. Sabia que ali havia algo diferente. “Para mim, foi o princípio da percepção. Eu ainda não tinha consciência, mas percebi, ao longo da vida, que o artista olha para as coisas de outra forma. Vê detalhes que os outros não veem”.

Aos 92 anos, a paranaense radicada no Ceará encara as minúcias da própria história enquanto abre sorriso: construiu um legado na qual essas mesmas cores e formas são protagonistas no ofício de criar. Guiam uma mente aberta ao novo e mãos capazes de inspirar pioneirismo.

Entre vários outros feitos, Guiomar Marinho é responsável por apresentar ao Ceará a tapeçaria como instrumento artístico – algo até então inédito no Estado – e desenvolveu um braço social capaz de transformar a vida de inúmeros cearenses. 

A médica e pesquisadora Adriana Costa e Forti, o empresário Oto de Sá Cavalcante e o empresário e político Tasso Jereissati também recebem a comenda do Grupo Edson Queiroz (GEQ), na sexta-feira (26), no Ideal Clube.

Contribuições inestimáveis e reveladoras de um espírito ilustre. Nascida Guiomar Correia de Andrade, a mestra é natural de Rio Negro, interior do Paraná, e veio ao mundo em 1932, penúltima filha de um engenheiro e uma doméstica. O nome artístico foi adotado mediante casamento com o engenheiro civil cearense Cláudio Bomfim Marinho de Andrade (in memoriam) – cujo desejo e oportunidade de voltar a Fortaleza fez com que a esposa também criasse raízes no Ceará. Chegaram à capital de Alencar em 1953 para nunca mais sair.

Anterior a essa mudança, já era forte na mulher o gosto por trabalhos manuais. Os primeiros contatos com a arte aconteceram ainda na adolescência, em atividades do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, localizado no bairro de Cajuru, em Curitiba. Aulas de Geometria e desenhos de observação eram as preferidas.

Já adulta, ela se dedicaria ao bordado, à pintura e à costura à mão. No início dos anos 1960, à outra paixão mais específica: pintura em tecidos. “Quando se tem tendência para um trabalho, ela aparece muito cedo”, diz.

O início efetivo de uma carreira no segmento, porém, aconteceu tarde. Antes, chegou a cursar História Natural – “gostaria de fazer Belas Artes, mas o curso só tinha artista e, naquela época, artista era sinônimo de gente desregrada”.

O casamento com Cláudio Bomfim Marinho multiplicou em seis filhos e maior dedicação à família, o que não a impediu de iniciar alguns cursos. O momento era de experimentação a fim de saber para onde aqueles passos poderiam-na levar. Uma viagem ao Rio de Janeiro mudaria tudo.

Na imagem, a artista da tapeçaria Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
Legenda: Paranaense de nascença e cearense de coração, Guiomar Marinho utilizou as cores e formas da natureza nas peças em tapeçaria
Foto: Thiago Gadelha

Foi quando conheceu Madeleine Colaço. Artista plástica e tapeceira marroquina, aprendeu tapeçaria na escola do Palácio de Kasbah, em Tânger, Marrocos. Durante viagens para Inglaterra e França, estudou coleções de tapeçaria em diferentes museus. Transferiu-se para o Brasil em 1940, fixando-se inicialmente em Petrópolis (RJ), onde desenvolveu toda a produção. Entre as principais contribuições para o ramo, está a criação do “ponto brasileiro”.

Nele, o ritmo e a cadência do samba foram incorporados à técnica do bordado. Era frequente a artista partilhar: “Eu escutava um samba quando percebi que o ato de bordar também poderia ter uma cadência, impor um ritmo à agulha”. Guiomar Marinho assuntava cada aspecto desse e aprendia não apenas a mergulhar no ensinamento repassado como também a desenvolver novas ideias. “Fui à primeira exposição dela no Rio de Janeiro, e fiquei apaixonadíssima. Disse a mim mesma: ‘Meu caminho é esse aqui’”, conta.

Na imagem, registro de tapete produzido por Guiomar Marinho, artista da tapeçaria agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
Legenda: Pelas mãos de Guiomar Marinho, o artesanato cearense ganhou um novo capítulo a partir da tapeçaria
Foto: Arquivo pessoal

“Quando voltei à Fortaleza, já comecei a produzir. Mas, como todo começo, você vai tateando, não começa logo com algo definitivo. Começa por experiência. Sendo assim, minha primeira experiência – o qual tenho até hoje – foi exatamente um tapete. E, já ali, comecei a introduzir minhas ideias, caminhando desse jeito a partir de então”.

Repassar saberes, crescer o Ceará

Uma vez decidida sobre o tipo de trabalho que gostaria de desenvolver – com foco no desenho livre e na temática da natureza, pela qual sempre fora fascinada – um dos capítulos mais ricos dessa jornada diz respeito ao período em que dividiu saberes com artesãos do interior cearense e impulsionou o desenvolvimento do Estado na seara da tapeçaria. Tudo a partir de finas observações sobre as próprias matérias-primas disponíveis em nosso chão.

Se no início dedicou-se à confecção de tapetes à base de lã – material mais comum naquele tempo – não se conformou e passou a pesquisar novas formas. Descobriu a riqueza do Nordeste em fibras têxteis naturais, sobretudo de ordem vegetal, o que a levou a introduzir elementos como sisal, juta e palha de buriti na tapeçaria, inovação revolucionária em termos de matéria-prima no ramo. “Ninguém usava na época”, recorda.

Na imagem, registro da artista da tapeçaria Guiomar Marinho repassando saberes a artesãs do interior do Ceará na década de 1990
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Na imagem, artista da tapeçaria Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025, repassa saberes a artesãos do interior cearense
Legenda: Guiomar Marinho dividiu saberes com artesãos do interior cearense e impulsionou tapeçaria no Estado
Foto: Arquivo pessoal/ reprodução

“Foi desse jeito que fiz uma exposição em Brasília – já com esse novo modo de produzir tapeçaria. Os repórteres ficaram muito impressionados, me perguntavam como eu conseguia trabalhar com aqueles materiais”. Por sinal, a própria Guiomar também tingia, com produtos naturais, as fibras, uma vez elas mesmas terem cores específicas. A prática ampliava ainda mais a relevância do ofício e, pouco a pouco, a conduziram a tecer grandes formatos, em ritmo de aprofundamento sobre como funcionam teares maiores.

O resultado desse investimento obstinado em aprendizagem traduziu-se em tapetes com relevos e texturas diferenciadas e únicas. Os produtos, de alto valor agregado, traçaram novos rumos para o artesanato cearense. “Foi um longo percurso. E, nele, você vai descobrindo, limpando mais o desenho, deixando que o tema principal se sobressaia”. Permitindo também que outras pessoas acessem uma cultura tão valiosa. 

Em parceria com o Governo do Estado do Ceará, durante a gestão de Tasso Jereissati entre 1987 e 1991, Guiomar elaborou novos produtos artesanais com ênfase na diversidade de objetos utilitários. Dessa vez, não estava sozinha na lida: uniu-se a somas e somas de artesãos cearenses, principalmente de localidades do interior, para incutir neles o conhecimento da tapeçaria e, mais ainda, a importância do sublime.

Na imagem, registro de artesãs trabalhando sobre peça de tapeçaria idealizada por Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
Legenda: Inúmeros artesãos cearenses foram aprendizes de Guiomar Marinho, responsável por incutir neles o conhecimento da tapeçaria e, mais ainda, a importância do sublime
Foto: Arquivo pessoal

Ela recorda, e vários registros dão conta de expressar: a mestra sentada no chão, rodeada por dezenas de olhos atentos e materiais espalhados. Consultavam revistas e tentavam captar detalhes. À Guiomar e aos outros profissionais envolvidos nesse processo de interiorização de conhecimentos sobre artesanato – ação estimulada pela até então primeira-dama, Renata Jereissati – ficou a responsabilidade de despertar naquele público, tão acostumado ao duro da vida, a grandiosidade simples do belo.

“São muitas matérias-primas encontradas no interior – barro, cerâmica, tecelagem, cestaria… Com o tempo, os artesãos foram percebendo, despertando e, a partir daí, criamos diversas coleções. Tudo era previamente pensado e projetado”, lembra.

“Acho que Renata Jereissati descobriu uma coisa que ninguém via: ela notou que o artesão usava muito as matérias-primas da terra, mas não produzia artigos com beleza. Eram apenas artigos comuns. Com os novos passos, além de evitarmos desperdício de matéria, criamos coisas belíssimas”
Guiomar Marinho
Artista da tapeçaria

Revolução no modo de produzir

A capacitação mudou dois rumos: aqueles de perspectiva pessoal, a partir de um olhar diferenciado dos artesãos sobre os próprios elementos à disposição para criar – e, por consequência, novas oportunidades de empreender; e do próprio Ceará, na dianteira em todo o Brasil no que diz respeito à produção de verdadeiras obras de arte no segmento da tapeçaria. Tudo capitaneado pela lente original e sofisticada de Guiomar Marinho.

“Posso dizer que meu trabalho mudou a vida do cearense. Foi realmente inédito, não tinha ninguém aqui que fizesse isso. Penso que a vida da gente, o ofício que a gente tem, é uma espécie de predestinação ou um meio para fazermos uma travessia. Sem trabalho, dificilmente é possível levar a vida. Então você precisa de alguma coisa, e isso faz com que você faça o próprio caminho”
Guiomar Marinho
Mestra de tapeçaria

Trajeto palmilhado com esforço e ousadia. Foram cinco anos saindo cedinho de Fortaleza, dirigindo no próprio carro, para municípios do interior com a intenção de expandir a tapeçaria. Nesse ínterim, a mestra viajou para Minas Gerais – lugar de origem da tecelagem brasileira, conforme ela – aprendeu mais técnicas e, de volta ao Ceará, montou dois teares, compartilhando com artesãos como preparar o fio, colocar no tear e outras etapas.

Além dos tapetes de chão, de caráter utilitário, nada impediu a criação de tapetes para parede – peças que, tempos depois, foram o carro-chefe da loja aberta por ela. O estabelecimento funcionou até 2013 e contribuiu para que a arte de Guiomar transpusesse barreiras e chegasse inclusive ao exterior. Hoje, após receber diversos prêmios, as obras da artista estão em vários países e também em equipamentos como a Pinacoteca do Ceará, onde se encontram três. Elas ornamentam ambientes, contam histórias e trazem a insígnia do fazer manual de nossa gente.

Na imagem, registro da artista da tapeçaria Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
Legenda: Arte de Guiomar Marinho transpôs barreiras e chegou inclusive ao exterior
Foto: Arquivo pessoal

Para Rian Fontenele, diretor geral e artístico da Pinacoteca do Ceará, as peças de Guiomar traçam uma relação direta entre a tradição da tapeçaria – cuja origem remonta a práticas milenares – e a evolução dessa arte no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. A técnica têxtil, além da relevância inquestionável, configura-se também como via de expressão a partir de cores, paletas, luzes, texturas e outros elementos capazes de abraçar identidades eminentemente nossas, brasileiras.

Nesse sentido, lagostas, caranguejos, algodão, jacas, cajus, entre outros componentes da flora e da fauna tupiniquins, são reforçados nas criações da artista e denotam o interesse dela de registrar o Ceará por meio da artesania, prática muito cara a nós – verificada não apenas na madeira, no bordado e na xilogravura, por exemplo, mas também na tapeçaria. Uma geometria orgânica, quase abstrata, no somatório de desenhos tão figurativos.

Na imagem, registro de um dos tapetes produzidos por Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
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Legenda: Do croqui ao resultado final, elementos nos tapetes de Guiomar abraçam a identidade brasileira
Foto: Thiago Gadelha

Por sua vez, para artesãos que conviveram de perto com Guiomar durante o projeto de interiorização da arte no território cearense, na década de 1990, a arte da tapeceira inspira e reflete a força de vencer na vida. Alegre e incansável, a artista costumava dividir pratos de feijão com famílias de diferentes localidades entre uma produção e outra. Na memória dos aprendizes, hoje também mestres na técnica repassada, ficou a ânsia de fortalecer o manual.

“Ela sempre falou: ‘Esse trabalho vai levar vocês longe’. E foi o que aconteceu”, divide Gilmar Martins, natural da comunidade de Carquejo, município de Mucambo, distante 280 quilômetros de Fortaleza. Desde os 12 anos envolvido com artesanato, foi um dos pupilos de Guiomar. “Sempre vi nela uma vontade de ver famílias sustentadas por meio do artesanato. Em mim, nasceu a inspiração de dizer, ‘quero ser igual a essa mulher, gerar emprego para a minha comunidade’. Antes só dependíamos da agricultura. Depois dela, tudo mudou”.

Fios queridos do coração

Se, por um lado, o amor pela arte moveu cada passo de Guiomar Marinho, o carinho pela família não ficou atrás. Em uma época na qual era raro ver mulheres dedicando-se de modo tão intenso ao trabalho fora de casa – fruto de convenções sociais ainda hoje enraizadas – ela conseguiu sabiamente aliar ofício e maternidade. São seis filhos, sete netos e 13 bisnetos felizes por conviver, de perto, com princípios tão nobres e um aconchego que emociona.

Na imagem, registro do casal Cláudio Bomfim Marinho de Andrade e Guiomar Marinho, esta última agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025
Legenda: Guiomar Marinho ao lado do esposo, o engenheiro cearense Cláudio Bomfim Marinho de Andrade
Foto: Arquivo pessoal

A sala cheia do apartamento testemunha: a matriarca soube imprimir a própria identidade ali também. Cada parente traz, no semblante e na fala, um apreço tanto pela arte quanto pela delicadeza nos gestos, característica notável em Guiomar. Os filhos lembram da exigência afável de se reunirem à mesa para as refeições – as oito cadeiras para esse fim continuam no apartamento da família. Recordam igualmente do quanto a mãe acompanhava as lições de casa e gostava de conversar para saber atualizações da escola e de outros assuntos.

Já os netos destacam a influência da avó na busca por um cotidiano mais culto, a partir do consumo dedicado de arte e cultura, e do quanto ela é capaz de inspirar, até mesmo na escolha de qual graduação seguir. Em suma, a perfeita simbiose entre força e docilidade, algo que se refletiu no trabalho. "Nunca tive medo de criar, de fazer diferente, porque sempre fui guiada pelo coração. Isso, para mim, sempre foi muito importante”.

Na imagem, a artista da tapeçaria Guiomar Marinho, agraciada com o Troféu Sereia de Ouro, rodeada das cinco filhas
Legenda: Guiomar Marinho e as cinco filhas: aconchego, amor e infinitos aprendizados
Foto: Thiago Gadelha

Na relação com o esposo também. Conheceram-se por acaso. O tio de Cláudio Bomfim Marinho de Andrade era casado com uma paranaense irmã de uma grande amiga da família de Guiomar. Ao chegar em Curitiba para estudar, o cearense estava na casa dessa mulher, e encontrou Guiomar pela primeira vez. “De certa forma, houve empatia dos dois lados”. Depois dali, eles ainda frequentariam aniversários de amigos em comum e, entre uma dança e outra, iniciaram um relacionamento de seis anos até casar.

O matrimônio durou 32 anos e apresentou a ambos a face mais bonita da união: aquela capaz de tornar a vida do parceiro ainda melhor por meio do apoio mútuo. No íntimo, Guiomar credita à avó, Matilde, essa coragem de se lançar a algo tão profundo como o amor. A parente era alemã e ensinou à neta que criar um ambiente acolhedor não apenas era possível como necessário para que a vida se tornasse ainda mais vida.

Na imagem, a família de Guiomar Marinho, artista da tapeçaria agraciada com o Troféu Sereia de Ouro 2025, reunida
Legenda: Seis filhos, sete netos e 13 bisnetos são felizes por conviver, de perto, com a presença de Guiomar Marinho
Foto: Thiago Gadelha

Talvez seja esta a chave para uma existência tão longa, próspera e lúcida. Noventa e dois anos nos quais os fios da ternura seguem maciços e desejosos de não parar. Continuar a mostrar beleza ao mundo.

“O segredo de chegar a essa idade é gostar da vida. Só isso mesmo, mais nada. A arte contribui nesse processo. Ela não é trabalho, é prazer. Mas exige disciplina grande. Aliar tudo isso torna a vida boa”.
Guiomar Marinho
Artista da tapeçaria

Sereia de Ouro

Ao receber a notícia de que seria agraciada com o Troféu Sereia de Ouro, Guiomar Marinho não disfarçou a incredulidade. “Primeiro, pensei: ‘É verdade mesmo?’. Porque, confesso, realmente não esperava”, diz, às gargalhadas. “Por outro lado,  reconheço que fiz um trabalho sobretudo social. Acho que isso despertou a possibilidade de fazer algo com valor. Tapetes não são apenas para colocar na parede; eles já tiveram papel de abrir a mente das pessoas”.

No mesmo compasso de surpresa, enfatiza a relevância da outorga, notadamente marcada pelo reconhecimento de trabalhos capazes de transformar, para melhor, a paisagem humana e desenvolvimentista do Ceará. “Ela tem um efeito de comemoração. É uma forma de celebrar. Agora, posso comemorar que minha história está sendo homenageada”.

A comenda

Criado em 1971 pelo chanceler Edson Queiroz e por dona Yolanda Queiroz, o Troféu Sereia de Ouro é uma das mais tradicionais comendas do Ceará. Homenageia personalidades que se destacaram em diferentes setores de atuação, contribuindo para o desenvolvimento do Estado.

É concedido bienalmente pelo Grupo Edson Queiroz em solenidade realizada realizada na próxima sexta-feira (26), no Ideal Clube, com transmissão ao vivo pela TV Diário a partir das 20h. 

A honraria já foi entregue a centenas de nomes, brilhantes em atividades públicas e privadas, e que seguem inspirando gerações.