Ceará se destaca nacionalmente com animações para todos os públicos em festival de cinema
Diversidade de técnicas e também de públicos-alvo na produção do Estado é evidenciada pela seleção de um longa e um curta animados em evento em Curitiba

A partilha de saberes e memórias entre uma avó e uma neta em meio a um quintal mágico. Um futuro que imagina o que seria o Brasil em 2050 caso as revoltas do período regencial tivessem sido exitosas.
Com técnicas, temas e públicos-alvo diversos entre si, o curta “No Início do Mundo”, de Camilla Osório de Castro, e o longa “Glória & Liberdade”, de Letícia Simões, se aproximam por representarem no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba não só o Ceará, mas especialmente a produção em animação feita no Estado.
Respectivamente selecionados para as mostras Pequenos Olhares — dedicada ao público infantil — e Competitiva Brasileira — voltada à exibição de longas inéditos no País —, os trabalhos depõem sobre as perspectivas, especificidades e espaços possíveis para a animação em contextos de formação, produção e difusão no Ceará e no Brasil.
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Primeiro longa em animação em competição
A presença de “Glória & Liberdade” — uma coprodução Ceará-Pernambuco — no festival marca um momento inédito: o filme é o primeiro longa de animação a ser selecionado para a mostra competitiva brasileira no Olhar de Cinema.
Codiretor artístico e curador de longas-metragens do festival, Gabriel Borges pondera que a seção foi criada recentemente, em 2023, e que, anteriormente, tanto curtas quanto longas em animação foram selecionados em outras faixas de programação.
Ele destaca que outra produção cearense, inclusive, foi exibida como filme de encerramento da edição de 2023 do festival: “Todo Mundo Já Foi Pra Marte”, dirigido por Telmo Carvalho
A pedido da coluna, o curador levantou números recentes sobre a seleção de animações no evento: em 2024, foram dez, enquanto neste ano são nove.
Gabriel sublinha, ainda, que no escopo do festival — das inscrições aos catálogos — não há distinção entre animações, documentários e ficções, por exemplo. “Entendendo que, por exemplo, podem existir muitos documentários em animação, ficções em animação, e que esses modos de abordagem estão sempre se conectando”, segue.
Animação para “criar outro mundo”
“Glória & Liberdade” — que foi incentivada por recursos da Agência Nacional do Cinema, do Fundo Setorial do Audiovisual e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul — é descrito na sinopse assinada pelo próprio festival como um “multifacetado e nada convencional documentário utópico de animação”.
O conceito se explica porque o longa cria fabulações sobre como seria o Brasil caso revoltas populares do século XIX, como a Cabanagem e a Sabinada, tivessem se concretizado.
“Desde o princípio da ideia, não tinha outra forma de fazer sem ser em animação, justamente pela proposta de que a gente estava criando outro mundo”, aponta Letícia Simões, cineasta baiana radicada em Pernambuco.
Na trama, a jovem documentarista Azul (com voz da cearense Larissa Goes), da República da Bahia, percorre territórios das regiões Norte e Nordeste do antigo Brasil: o Reino Unido de Pernambuco, a nação indígena Taua Sikusaua Kato, no território da Amazônia; a República de Caxias, nas antigas províncias do Ceará, Maranhão e Piauí; e a terra natal.
No caso de “No Início do Mundo”, a escolha pela animação também se deu por conta do caráter pensado para a obra, uma produção da Mar de Fogueirinha que foi contemplada com recursos do Edital Cultura Infância da Secretária da Cultura do Ceará.
No filme, uma menina e a avó se ligam e se fortalecem por meio da partilha de histórias de mulheres fortes ancestrais contadas pela mais velha à neta.
“O projeto tem elementos fantásticos e mágicos que seriam caríssimos de fazer em live action, além de não produzir o efeito que eu buscava. Já escrevi o roteiro pensando em ser uma animação”, explica a realizadora Camilla Osório de Castro.
“(A animação) sempre foi uma linguagem que me interessou por ser extremamente lúdica e expressiva. É como se ela fosse uma hipérbole do cinema e isso me interessa. ‘No Início do Mundo’ é uma história fantástica onde coisas impossíveis e mágicas acontecem. A animação possibilita que a gente traga essas imagens com muita liberdade”, considera.
Possibilidades e desafios da animação
As cineastas destrincham as possibilidades de liberdade de criação oferecidas pela animação, ao passo que desafios como tempo e orçamento também se impuseram às obras.
“O primeiro desafio (no processo de ‘No Início do Mundo’) foi transformar o meu sonho em algo factível dentro da realidade orçamentária do projeto”, inicia Camilla. A intenção inicial era a de usar a técnica full frame (animação quadro a quadro feita manualmente) e cenários em aquarela.
“Quando orçamos essas escolhas estéticas, a gente percebeu que não cabia. Mas a animação hoje em dia tem muitas possibilidades”, afirma. “Conversando com a equipe, cheguei em uma técnica de desenho digital de cenários que tinha um traço mais analógico”, segue.
A opção final foi pela técnica cut out — “feita em programas, mais ágil e portanto mais barata” — com momentos pontuais em full frame. “O ritmo de trabalho também trouxe desafios e oportunidades”, avança a diretora.
“Foram uns oito meses o processo completo, com reuniões semanais pra aprovar as cenas que as animadoras faziam. Demora muito mais que um curta live action. Por outro lado, as coisas podem ser refeitas e corrigidas em um tempo mais dilatado, então há tempo e espaço para uma criação menos pressionada e um diálogo mais amplo com a equipe”, ressalta.
Em “Glória & Liberdade”, o filme é dividido em quatro capítulos que trazem, cada um, estéticas próprias ligados aos países imaginados pelo longa. “O maior desafio foi todo mundo comprar essa fabulação histórica”, resume Letícia.
“A gente estava criando todo um novo universo com as próprias regras políticas, econômicas, sociais e estéticas, então essas quatro nações tinham que fazer sentido e, obviamente, ter referências ou algum ponto de ligação com o que a gente conhece desses estados”, contextualiza.
Isso trouxe “possibilidades ilimitadas” ao passo em que desafios se deram “porque animação é uma coisa extremamente complexa e depende de muitas mãos e muito trabalho”.
A produtora cearense Zonzo Studio trabalhou na parte da animação do filme, com Esaú Pereira e Telmo Carvalho na direção da área. O longa utilizou técnicas como rotoscopia — na qual se desenha sobre imagens captadas quadro a quadro — e ilustração 2D.
“Ao mesmo tempo que tudo podia, a gente tinha que estar muito seguro do que estava fazendo”, explica Letícia, “porque refazer, reilustrar, reanimar são coisas extremamente dificultosas e trabalhosas”.
O projeto foi inicialmente pensado há mais de uma década, época em que a diretora morou em Fortaleza enquanto bolsista do Porto Iracema das Artes e conheceu Maurício Macedo, que acabou produzindo o longa pela Moçambique Audiovisual.
A concretização, porém, se deu anos depois e “nas condições mais adversas possíveis”. “A gente estava trabalhando sob o governo Bolsonaro, durante a pandemia”, relembra.
“De certa forma, o ‘Glória’ dava uma injeção de lucidez no meio daquele período tão devastador e desesperador. Talvez um desafio tenha sido inclusive esse: a gente continuar acreditando no que estava fazendo quando o mundo estava desmoronando”
Como destaca Gabriel, a variedade vista nas animações cearenses “diz muito da liberdade” dessa linguagem. “Um desses filmes está na Pequenos Olhares e o outro na competitiva brasileira. São públicos muito distintos. É muito bacana que animações diferentes tenham essa capacidade de entrar nesses espaços muito diversos”, compreende.
Destaque para a animação cearense no Estado e no Brasil
Além da presença dos dois filmes no Olhar de Cinema, outras obras em animação já circularam ou irão circular por diferentes festivais pelo Brasil em 2025.
Na Mostra de Tiradentes, realizada em janeiro, a participação cearense foi fortalecida pela seleção dos curtas “Poesia no Vinho dos Seus Lábios”, de Matheus Monteiro, e “O Medo Tá Foda”, de Esaú Pereira — a última, inclusive, foi a vencedora do recente Festival Ceará Voador.
Diretor de animação de “Glória & Liberdade”, Esaú prepara a estreia em longas com a animação “O.B.C. – Operação Bila Cocão”. A obra será produzida pela Moçambique Audiovisual, que também assinará a série animada “Metade Calabresa”, de Bruno Paes. Ambos integram a Zonzo Studio.
Já para o segundo semestre, o curta cearense “Tempo Trem”, de Roberta Filizola e Guilherme C., foi recentemente selecionado para os eventos ComKids 2025 e Festival Internacional de Cinema Infantil.
O cenário de produções e circulação se desenvolve imbricado a outro, que tem se fortalecido: o de formações na área. Junto da já estabelecida Casa Amarela Eusélio Oliveira, da UFC, equipamentos como a Vila das Artes, ligado à Prefeitura de Fortaleza, passaram a ofertar cursos em animação.
Não por acaso, o citado “Poesia no Vinho dos Seus Lábios” foi produzido no escopo da primeira turma da formação. Já “O Medo Tá Foda” também foi fruto da Vila, mas no contexto da 5ª turma do Curso de Realização em Audiovisual.
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O movimento de atenção à linguagem animada é celebrado por Gabriel, curador do Olhar de Cinema.
“É muito caro produzir uma animação, e sempre vai ser, porque exige mais tempo de trabalho, outra quantidade de recursos e de expertise de equipe. A gente entende que o incentivo e a formação nessa área são muito importantes para conseguir cada vez mais ter uma produção forte”, reforça.
Como adjetiva Letícia, o contexto da Vila das Artes é “frutífero” e “de pessoas que estão provocando a linguagem audiovisual”.
“Quanto mais fora do eixo, mais exacerbado criativamente se apresenta o contexto da animação, porque a gente tem que rebolar muito — visualmente, conceitualmente — para dar conta da falta de infraestrutura”
Em uma avaliação panorâmica, a cineasta ressalta que 2025 tem sido marcado por “uma reconfiguração tão grande do panorama do cinema brasileiro autoral independente, reorganização das políticas públicas”.
“Quando as coisas começarem a ser organizadas como precisam ser — como já foram não faz tanto tempo —, a gente tem que falar que sente falta de eixos de formação, produção e difusão voltados para animação fora do eixo e adulta ou jovem adulta”, aponta.
No cenário das políticas públicas cearenses, Camilla ressalta que a Secult “tem correspondido às pressões do setor, colocando categorias específicas para animação nos editais”, tanto para curtas quanto para longas.
“A gente tem conseguido na formação e na produção ter alguma estrutura e fomento do Estado”, reconhece, ressaltando depois gargalos ainda relevantes: “Curtas de animação tem menos aceitação nos festivais que não são específicos e a distribuição de longas tem enfrentado muitos desafios para se concretizar”.
“Nosso primeiro longa de animação só foi feito recentemente, durante a pandemia. Há alguns longas em finalização e lançamento, já fruto dessas políticas públicas mais recentes. À medida que os longas de animação feitos aqui começarem a ficar prontos e a conseguirem ser distribuídos, a gente vai abrindo mais espaço”, antevê Camilla.
"No Início do Mundo" e "Glória & Liberdade" tiveram exibições no festival no sábado (14) e serão reexibidos neste domingo (15). O Olhar de Cinema segue até o próximo dia 19 de junho