Ainda sem cura e causa bem definida, a endometriose — doença crônica provocada pela migração do tecido que reveste a cavidade uterina, o endométrio, para outras partes do corpo — requer tratamento multidisciplinar.

Devido à complexidade da doença, que afeta da saúde física à mental das pessoas que têm útero, é preciso uma reorganização do estilo de vida de modo a buscar bem-estar e alívio dos sintomas, que, muitas vezes, incapacitam atividades simples do dia a dia, como trabalhar e ir à academia. (Entenda melhor sobre os sintomas no gráfico abaixo).

Silenciosa, mas extremamente dolorosa, a endometriose afeta uma em cada dez mulheres no Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde, e está presente na vida de mais de 190 milhões de pessoas no mundo inteiro, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, apesar do número alarmante, a condição ainda não é amplamente conhecida e é tratada com descaso na saúde pública do País.

Para se ter uma ideia dessa negligência, o médico ginecologista e professor de Ginecologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Leonardo Bezerra, afirma que se pode levar até dez anos do início dos sintomas até o diagnóstico, o que faz com que as pacientes descubram muito tardiamente a doença e já precisem de intervenção cirúrgica.

Além de ginecologistas, mulheres diagnosticadas com endometriose precisam ser acompanhadas frequentemente por nutricionistaseducadores físicosfisioterapeutas e até psicólogos. Entenda, neste especial do Diário do Nordeste sobre a doença, o por quê.

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‘Trocava o absorvente a cada 10 minutos’: hemorragia foi sinal de alerta para procurar ajuda profissional

calcinha com absorvente sujo de sangue no chão de um banheiro
Legenda: Endometriose pode causar cólica intensa, hemorragia durante o ciclo menstrual, distensão abdominal, gases e dor durante a relação sexual
Foto: Shutterstock

A cearense Aline Vidal, de 37 anos, é uma das milhões de brasileiras que convivem com endometriose e se viu em um cenário de desinformação por muito tempo.

Com lesões no útero, no reto e no intestino, a gerente de operações conta que as dores menstruais que enfrentava desde a adolescência foram se intensificando ao longo dos anos, até que, um dia, assustada com a dimensão do problema, ela tomou a decisão de procurar um especialista.

O grande alerta aconteceu quando, em outubro de 2023, ela sofreu uma hemorragia durante o período menstrual e acordou coberta de sangue. “Eu já tinha tido hemorragia antes, mas não dei muita importância. Aí, tive de novo. Acordei numa poça de sangue na cama. Era sangue com muito coágulo. Lembro que fiquei dois dias trocando absorvente a cada dez minutos”, disse.

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Além da dor paralisante, o sangramento intenso impedia Aline de realizar de atividades simples do dia a dia, como ir à academia. “Quando aconteceu isso, eu não dei muita bola e cheguei a ir para academia. Do trajeto, em cinco minutos, cheguei com o short todo sujo, já tinha transbordado o sangue. Voltei para casa e foi quando marquei a consulta com a ginecologista para investigar”, conta.

Durante a conversa com a profissional, Aline, que hoje mora em Dublin, na Irlanda, lembra que "gabaritou" com vários "sins" a lista de sintomas indagada pela médica: distensão abdominal, gases, fluxo da menstruação muito intenso ou irregular, cólicas muito fortes e dor durante a relação sexual.

O diagnóstico foi recebido por ela com surpresa, pois, de início, acreditava que sentir dor era normal, até rotineiro, não uma doença. “O diagnóstico da endometriose, a confirmação de tudo, aconteceu no ano passado. Até então, eu considerava tudo normal. Essa questão que a gente já é acostumada, desde adolescente, que, depois que vem a menstruação, as cólicas são muito intensas, que tudo é normal. A gente meio que já é acostumado a sentir dor, então, não liga muito para esse tipo de sintoma”, observa ela.

Dificuldade no acesso a atendimento

Apesar de ser um dos problemas de saúde da mulher mais comuns no Brasil, com a necessidade urgente de criação de políticas públicas de prevenção e tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), outros países ao redor do globo também enfrentam dificuldades em dar assistência a pacientes com endometriose.

Morando fora do País, Aline revelou que não conseguiu consulta com especialista, mesmo particular. Foi apenas em Fortaleza, no ano passado, que ela recebeu o diagnóstico e conseguiu o amparo de que precisava, enquanto estava de férias visitando a família.

“Pelo fato de o sistema de saúde de lá ser muito ruim, muito precário, porque não tem médicos, você fica em filas. Mesmo com plano de saúde, as filas de espera são de anos para conseguir, às vezes, fazer uma cirurgia. Então, quando tive esse episódio no ano passado, da menstruação e da hemorragia, eu estava em Fortaleza e já fui para a minha ginecologista”, relembra.

Por meio de um exame chamado de "mapeamento" — ou ultrassonografia transvaginal —, ela descobriu que tinha endometriose e, também, adenomiose, que consiste em uma alteração benigna do útero caracterizada pela presença e crescimento em localidade anormal do endométrio, tecido que reveste a cavidade uterina.

O poder da multidisciplinaridade no tratamento da endometriose

Na consulta com a ginecologista, logo após receber o diagnóstico, Aline foi orientada a procurar outros especialistas, como nutricionista, para dar início a um tratamento multidisciplinar e mais assertivo contra a doença, aliado a novos hábitos.

“A ginecologista deixou muito claro que eu procurasse um nutricionista para fazer uma dieta anti-inflamatória e disse que eu tinha que fazer exercícios e ter consistência nos treinos”, lembra a gerente de operações.

Comprometida com o tratamento, Aline seguiu à risca as orientações e acredita que a ida à nutricionista foi a virada de chave para a melhoria da qualidade de vida. Isso porque, a partir do relato dos sintomas associados às questões intestinais, a profissional indicou um plano alimentar personalizado, de acordo com as necessidades da paciente, além de suplementações que foram fundamentais para o alívio das dores e dos incômodos causados pela distensão abdominal.

“Depois de um simples jantar, eu tinha que desabotoar a calça, como se fosse uma barriga de grávida de cinco meses. E eu achava que aquilo era normal”, recorda ela. “Inicialmente, fiz essa dieta por 21 dias, para cortar alimentos que o intestino demora mais para digerir. Essa dieta foi muito importante para eu identificar o que estava causando essa questão intestinal, da distensão e dos gases. Depois, você vai reintroduzindo os alimentos e vai vendo quais são os que estão causando esse desconforto. Dentro dessa dieta, eu descobri que, para mim, era o glúten e a lactose”, explica.

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Para a nutricionista Monalisa Moreira, a alimentação adequada pode não só aliviar os sintomas da endometriose como, também, causar uma regressão da doença. "Os alimentos anti-inflamatórios e antioxidantes atuam no fator de remissão da doença, com a redução de sintomas como cólicas, controle do fluxo sanguíneo no período menstrual, redução das lesões na cavidade do endométrio local onde se aglomera com mais profundidade a doença, redução de sintomas gastrointestinais, como a constipação, redução de gases, empachamento e menor risco de foco da endometriose no trato gastrointestinal", ela explica.

Além disso, a nutricionista associa a dieta anti-inflamatória à atuação na melhora do perfil laboratorial, como colesterol, insulina e hormônios femininos, principalmente estradiol, que, em grande quantidade na corrente sanguínea, favorece focos da endometriose e inflamações.

Mulher prepara salada
Legenda: Uma dieta anti-inflamatória, rica em vitaminas dos complexos C e B, auxiliam no alívio dos sintomas
Foto: Shutterstock

Segundo a profissional, outras estratégias que podem ser utilizadas para a prevenção e tratamento da endometriose incluem a prática de atividade física, suplementações ricas em vitamina D, coenzima Q-10, ômega 3, magnésio dimalato e uso de chás anti-inflamatórios como unha de gato, camomila, amora e frutas vermelhas. 

A nutricionista também cita hábitos como higiene do sono para um descanso reparador e de qualidade, drenagens linfáticas, para reduzir o inchaço corporal que persiste em alguns quadros de endometriose, beber bastante água, acupuntura e fazer fisioterapia pélvica. 

Quais os principais tipos de alimentos para incluir na dieta da mulher com endometriose? 

  • Alimentos diuréticos, reduzindo os quadros de inchaço, e alimentos ricos em vitaminas específicas como C, complexo B, magnésio, selênio, ômega 3, ferro, etc;
  • Acerola, laranja, morangos, abacaxi, uvas roxas, brócolis, espinafre, gengibre, açafrão, hortelã, peixes, aveia, nozes, sementes de chia, linhaça, gergelim, girassol, chá verde, ⁠etc.

Quais alimentos evitar? 

  • Alimentos ricos em gordura saturada e ricos em açúcares, como: salsicha, salame, carnes enlatadas, queijos amarelos e processados, hambúrguer industrializado, doces em excesso, glúten e lactose. Eles devem ser reduzidos para evitar sintomas de má digestão.

Remissão da doença

Mudar o estilo de vida, alinhando isso a uma dieta anti-inflamatória e à prática regular de exercícios físicos, rendeu bons resultados para Aline. Hoje, ela comemora a remissão da doença e a cura das lesões que tinha no intestino e no reto, decorrentes da endometriose.

“Comecei a dieta anti-flamatória retirando o glúten e lactose. Fiquei muito bem assim, minha vida mudou depois que cortei [esses componentes]. E a dieta anti-inflamatória também consiste em reduzir o consumo de café e de carne vermelha. Comecei a tomar suplementos como ômega 3 e creatina. Também aumentei o consumo de peixes e frutos-do-mar. Fiz tudo isso durante um ano”, descreve ela.

Mulher come frutas em tigela de madeira
Legenda: A alimentação adequada, aliada ao exercício físico, contribui para a remissão da doença
Foto: Shutterstock

De volta a Fortaleza para repetir os exames de mapeamento da endometriose, a gerente de operações descobriu que a doença regrediu e que não seria mais necessário operar. "Eu tinha lesões no intestino e no reto, que sumiram. Ainda tenho lesões no útero, mas, com o DIU [Dispositivo Intrauterino], isso vai se resolver”, acredita ela. “Fiquei muito feliz e aliviada de não ter que fazer a cirurgia. Mas, é uma doença crônica, então, tem que ter acompanhamento”, reforça.

Hoje, os sintomas da paciente "melhoraram significativamente" e ela não teve mais episódios de menstruação com hemorragia. O fluxo menstrual também deixou de ser irregular e ela não sofre mais com desconfortos intestinais, especialmente por ter retirado da alimentação glúten e lactose. "As cólicas menstruais melhoraram bastante, as dores na relação sexual também melhoram muito. Então, agora, é mais uma questão de acompanhamento e continuar persistindo na dieta, nas atividades físicas, e continuar tomando os suplementos”, comenta a mulher.

'Desamparo, incompreensão, culpa e impotência': os impactos na saúde emocional, sexual e familiar

Os efeitos da endometriose podem repercutir de diversas formas sobre diferentes aspectos da vida da mulher, afetando desde seu cotidiano, como as atividades laborais, até sua saúde emocional, com repercussões nos relacionamentos conjugais, sexuais e familiares.  

Para a psicóloga Marina Teófilo, a dimensão sexual merece destaque, uma vez que esta é fortemente afetada pelos sintomas da doença, que compromete não só as próprias condições de saúde sexual como, também, diversos aspectos íntimos nas suas relações. "As queixas e desconfortos sexuais podem formar um ciclo que dificulta cada vez mais o enfrentamento e tratamento da doença", sublinha a especialista. 

"A doença pode causar dificuldades de diálogo e compreensão nos relacionamentos e até mesmo nos desafios para engravidar. Além disso, a saúde psicológica da mulher pode ser atravessada por sentimentos de desamparo, incompreensão, culpa, impotência, pessimismo, vergonha, rebaixamento da autoestima, alterações na autoimagem, mudanças de humor, irritabilidade, medo da dor, da separação ou do abandono", descreve Marina.

Mulher com a mão sobre a cabeça durante discussão
Legenda: Endometriose também causa danos à autoestima, com alterações na autoimagem e mudanças de humor, afetando relações interpessoais
Foto: Shutterstock

Segundo a profissional, tornam-se fundamentais estratégias de enfrentamento à doença voltadas para o fortalecimento da autoestima e para a melhoria da qualidade das relações íntimas e do diálogo.

"Considera-se que os exercícios físicos, a qualidade alimentar e a manutenção de uma rotina saudável são contribuintes para o controle dos sintomas. Por se tratar de uma condição multifatorial, o tratamento da endometriose deve ser realizado de forma multidisciplinar, contemplando, além das formas mais clássicas, como abordagem cirúrgica e hormonal, outros recursos como as estratégias comportamentais e tratamento psicológico e nutricional", destaca.

A psicóloga também cita que mulheres podem viver situações constrangedoras e até mesmo de violência institucional ou de gênero pela falta de compreensão dos profissionais de saúde e da população sobre as peculiaridades da condição da endometriose.

"Na busca pelo diagnóstico, não é incomum as mulheres se depararem com ambientes hostis e com profissionais diversos em que a hostilidade pode ficar evidente no atendimento rápido e pouco esclarecedor; na migração por diferentes profissionais, inclusive, nos planos de saúde; na desinformação dos profissionais sobre a doença e seu manejo clínico, na desqualificação das queixas relacionadas às dores e na escassez de acesso a serviços especializados diante de uma demanda crescente", pontua.

A psicóloga acredita na postura ativa para a não perpetuação de situações hostis no cuidado à mulher, seja nos serviços de saúde, seja nas relações sociais e conjugais.

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Fisioterapia e exercício físico como aliados

Também paciente de endometriose, a professora e doutora em Educação Física Tatiana Zylberberg, fundadora do projeto de extensão Mulheres e Novelos, da Universidade Federal do Ceará (UFC), que oferece acompanhamento virtual e conteúdos educativos sobre a doença, lista, entre os benefícios dos exercícios físicos para as mulheres que convivem com a patologia, uma melhora significativa na dor e nos quadros inflamatórios.

O projeto de extensão 'Mulheres e Novelos', fundado por Tatiana Zylberberg, da UFC, oferece ações gratuitas de educação em saúde para pessoas com endometriose. A iniciativa tem o objetivo de informar, acolher e empoderar mulheres que sofrem de dores pélvicas, endometriose e/ou adenomiose. O programa foi criado a partir da história pessoal da professora.

"A liberação das endorfinas na prática do exercício inibe a secreção do hormônio folículo estimulante [FSH] pela glândula hipófise. O FSH inibido reduz a produção do estrogênio pelos ovários, e consequentemente, pode desacelerar o crescimento do endométrio e do tecido intruso [endometriose]. Além disso, as endorfinas no sangue podem potencializar a ação do sistema imunitário no combate à inflamação, uma vez que neutralizam hormônios da ativação simpática [estresse], como cortisol e adrenalina", diz.

mulher praticando musculação
Foto: Shutterstock

Os efeitos positivos dessa prática são tanto agudos, podendo durar horas após os exercícios, quanto crônicos, quando o organismo se adapta a médio e longo e prazo. Além disso, Tatiana cita que o exercício aeróbico moderado promove, também de maneira aguda, a vasodilatação, que contribui para a diminuição dos quadros de inflamação e dor.

"Na endometriose, a quantidade e/ou intensidade da dor não está unicamente relacionada ao número de focos [da doença], é multifatorial. Enquanto algumas mulheres com endometriose são assintomáticas, outras têm muita dor a ponto de afetar as tarefas diárias, levando a menos movimentação e ao sedentarismo. O exercício físico moderado e de baixa intensidade ajuda na redução da percepção da dor e na redução do quadro inflamatório", complementa a professora.

Como parte da abordagem terapêutica, a recomendação é de praticar exercícios físicos, no mínimo, três vezes na semana. "Porém, considerando o foco na mudança hormonal para redução do cortisol, por meio da vasodilatação e das endorfinas que estimulam o FSH, são indicadas cinco sessões semanais de exercícios aeróbicos, com, no mínimo, 30 minutos", indica Tatiana. 

Além disso, são recomendadas atividades específicas para aliviar a tensão muscular do assoalho pélvico, que costuma ser agravada em mulheres com endometriose. "Pilates, ioga e fisioterapia pélvica podem trazer grande contribuição. O número de sessões depende muito do quadro de dor e do momento do tratamento das pacientes. Existem posturas restaurativas de ioga que ajudam de diversas formas e podem ser feitas em vários momentos do dia, nas horas de crise de dor ou não", comenta a especialista.

Mulher negra de cabelo cacheado amarrado em um coque praticando yoga. Ela usa top branco e calça rosé
Legenda: Exercícios físicos regulares contribuem para o controle dos sintomas da endometriose, segundo especialistas
Foto: Shutterstock

No que diz respeito à fisioterapia pélvica, o suporte será definido caso a caso, e com base nos sintomas apresentados pelas pacientes, sendo os principais:

  • Dor menstrual incapacitante;
  • Dor pélvica crônica;
  • Dor na relação sexual;
  • Problemas urinários (aumento da frequência, sensação de que não esvaziou completamente a bexiga, desconforto ao urinar e escapes indesejados);
  • Problemas intestinais (constipação, dor ao evacuar, escapes indesejados de fezes e/ou flatos).

"A fisioterapia tem como principal foco quebrar o ciclo medo-tensão-dor que contribui para formação de uma memória negativa da dor, fazendo com que a mulher desenvolva cada vez mais tensões musculares, posturas corporais de proteção e mais estímulos nocivos que aumentam a percepção dolorosa, podendo ocasionar disfunções musculoesquelética no corpo todo, não apenas no assoalho pélvico, e dificultando, por exemplo, a realização de atividades básicas do cotidiano", explica a fisioterapeuta Rayanne Moreira, especialista em Saúde da Mulher pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O tempo de tratamento dura, segundo ela, em média, três meses.

Embora os métodos sejam diferentes, definidos a partir de avaliações individuais, costumam ser executadas terapias manuais e com uso de recursos como eletroestimulação, fotobiomodulação, biofeedback e dilatadores, além de outros de baixa tecnologia que podem ser utilizados em casa.

"Essas intervenções são realizadas com o objetivo de promover mais autonomia e alívio dos sintomas. A fisioterapia pélvica não tem ação de remover os focos da endometriose, a regressão da doença ocorre a partir da somatória da mudança do estilo de vida, do acompanhamento multidisciplinar e/ou da cirurgia", elucida a profissional.