Culpa, impotência, vergonha, medo de dor, baixa autoestima, dificuldade de se relacionar sexualmente. São muitos, duradouros e cruéis os sentimentos que atravessam as mais de 190 milhões de meninas e mulheres no mundo inteiro que convivem com endometriose.

A doença — considerada crônica e ainda incurável, embora seja tratável — é uma das mais negligenciadas no que diz respeito à saúde da mulher, mas tem ganhado espaço no debate público nos últimos anos, à medida que crescem os números de diagnósticos e que aumenta a pressão política pelo acesso ao tratamento adequado, seja ele conservador — ou seja, não operatório — ou cirúrgico.

Para se ter ideia, a primeira vez que se falou sobre o assunto na Câmara dos Deputados foi em 2002, quando o deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS) sugeriu inserir o atendimento e o tratamento da endometriose e da fertilização in vitro no Sistema Único de Saúde (SUS).

À época, o parlamentar tratou a patologia como “doença da mulher moderna”, que “cada vez engravida mais tarde e tem menos filhos”, e se preocupou com isso porque uma das complicações da endometriose é a dificuldade para engravidar — e a capacidade reprodutiva das mulheres, sim, em uma sociedade patriarcal, é vista como prioridade.

Só duas décadas depois, após uma menção ou outra na Casa Legislativa, é que subiu o número de atividades sobre o tema na Câmara e que se propôs um cuidado para além da saúde reprodutiva. Um desses projetos foi, inclusive, sugerido recentemente, pela deputada cearense Dayany Bittencourt (União).

Nesta série de reportagens, o Diário do Nordeste explica o que é endometriose, apresenta o cenário da doença no Brasil e no Ceará e mostra por que o tratamento multidisciplinar é necessário para melhorar a qualidade de vida das mulheres e reduzir a necessidade de intervenção cirúrgica.

Diagnóstico próprio foi propulsor de criação de PL na Câmara

A deputada federal Dayany Bittencourt, que tem história própria com a endometriose, propôs, a princípio, incluir a patologia no rol de doenças que não precisam de carência para o acesso a benefícios governamentais como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez — nada muito diferente do que propuseram parlamentares antes dela.

No entanto, após a matéria ser avaliada em comissões internas da Câmara, entendeu-se que seria melhor inverter as prioridades e colocar como principal sugestão a criação de um programa nacional de prevenção e tratamento da doença.

“Eu tenho endometriose, descobri tardiamente, depois de ter sofrido a vida inteira com fortes dores, mesmo tendo condições financeiras para bancar tratamentos, remédios e cirurgias”, justifica a deputada.

Dayany é uma mulher branca de meia idade com longos e lisos cabelos pretos. Na foto, ela está de óculos de grau discursando no plenário e usa um vestido branco com listras pretas
Legenda: A deputada Dayany Bittencourt (União-CE) protocolou um Projeto de Lei na Câmara Federal sobre o assunto
Foto: Mario Agra/Câmara dos Deputados

Foi por isso, segundo ela, que surgiu o Projeto de Lei 1069/23, “com o objetivo de melhorar os atendimentos, tornar a endometriose uma pauta de saúde pública conhecida e, assim, trazer mais qualidade de vida para as mulheres que sofrem com essa doença”.

O PL foi aprovado na Câmara em outubro deste ano e enviado para o Senado, que deve, novamente, avaliar o documento, sugerir emendas e debater no Plenário, antes de deliberar se o aprova ou não. Se o texto passar, ele volta para a Câmara, que fará a redação final. Aprovado, seguirá para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Existem, ao todo, 97 atividades legislativas em tramitação na Câmara dos Deputados sobre endometriose e outras 49 que não estão tramitando. Projetos de lei são 26, tendo seis sido protocolados só neste ano. Além da proposta de Dayany Bittencourt, os projetos de outros políticos incluem a possibilidade de afastamento temporário do trabalho para quem tem endometriose, mioma ou outra doença que aumente o fluxo sanguíneo durante o período menstrual e prioridade no acesso aos tratamentos clínicos e cirúrgicos.

Para o médico ginecologista Thiers Soares, considerado referência em mioma, endometriose e adenomiose, o PL 1069/23, bem como as outras iniciativas parlamentares no Legislativo, são “ações muito válidas”, porque colocam a doença como um problema de saúde pública. 

“Considero a endometriose a segunda doença ginecológica que mais impacta na qualidade de vida da mulher, atrás apenas do câncer de mama”, dimensiona o especialista, que lamenta a escassez de estudos científicos sobre o tema no País. 

“A gente não tem estudo de custo no Brasil, é difícil de fazer por aqui. Mas, só para ter ideia, um estudo feito na Inglaterra constatou que se gastou mais dinheiro com a endometriose do que com a diabetes. O impacto financeiro disso na saúde pública é muito grande”, entende. 

Outros impactos indiretos da doença, segundo ele, são as extensas filas de cirurgia ginecológica nos hospitais, o constante afastamento das mulheres do trabalho devido à dor, que é incapacitante, e a ausência das adolescentes em salas de aula pelo mesmo motivo. 

O médico ginecologista Leonardo Bezerra, professor de Ginecologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), acrescenta que a dor e a incapacitação características da endometriose preenchem toda a vida das mulheres que sofrem com o agravo. "A gente não está falando de uma doença rara. E a gente está falando de uma doença que acomete mulheres que precisam trabalhar para manter a sociedade e suas famílias e não o conseguem por causa da dor", avalia o especialista.

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Brasil gastou mais de meio bilhão em menos de três anos com endometriose 

Mesmo sem ainda existir um plano nacional de prevenção e tratamento da endometriose no Brasil, o que aumentaria a visibilidade sobre a doença e, consequentemente, os diagnósticos e os procedimentos realizados pelo SUS, o País gasta com a patologia em torno de R$ 200 milhões anuais, de acordo com o Ministério da Saúde.

Confira, abaixo, os valores investidos anualmente pelo Governo Federal no tratamento da doença:

“O SUS oferta assistência integral aos pacientes com endometriose, de acordo com o estabelecido no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêutica (PCDT) da doença, instituído por meio da Portaria nº 879 [de 12 de julho de 2016]. Os tratamentos são indicados de acordo com o quadro clínico apresentado, sendo clínico, com a manipulação de medicamentos, entre outras atividades, e/ou cirúrgico”, informou a pasta em nota enviada ao Diário do Nordeste.

Como é feito o atendimento a pacientes com endometriose no Ceará?

De acordo com a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), a porta de entrada para o atendimento a pacientes com endometriose pelo SUS é a atenção básica, por meio dos postos de saúde dos municípios. O atendimento com médico especialista é feito apenas se houver necessidade, e por encaminhamento. 

Há apenas três hospitais capacitados para realizar cirurgias relacionadas à doença no Estado: Hospital Geral Dr. César Cals, Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e Hospital e Maternidade José Martiniano de Alencar. As unidades — todas concentradas na Capital — executaram, entre 2023 e 2024, 896 cirurgias relacionados ao útero.

Representação gráfica de um útero com endometriose
Legenda: Na endometriose, o tecido endometrial cresce fora do útero
Foto: Shutterstock

Em geral, as cirurgias de endometriose são consideradas "simples", como a histerectomia — quando se retira o corpo e o colo do útero — e a anexectomia — quando são removidos os ovários e as tubas uterinas. No entanto, quando classificada como "profunda", a patologia pode demandar a atuação de várias especialidades cirúrgicas durante o procedimento, que pode durar até oito horas seguidas. Neste caso, pela complexidade, os procedimentos são feitos em hospitais da rede terciária.

A endometriose profunda se caracteriza por partes do endométrio que saem do útero e se aderem ao redor de outros órgãos, como bexiga, reto e intestino, por exemplo.

"As pacientes com diagnóstico de endometriose têm acompanhamento durante sua vida, com consultas de rotina e exames. O tratamento pode ser clínico ou cirúrgico. Há pacientes que têm sua doença controlada por terapia hormonal e apoio para a dor e um percentual que necessita de cirurgia", disse a Sesa, em nota enviada à reportagem.

Maternidade-Escola da UFC é referência no atendimento

Uma estrutura que oferece importante apoio ao tratamento da endometriose no Ceará é a Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), vinculada à UFC. A unidade foi a primeira a oferecer gratuitamente o atendimento multidisciplinar para o cuidado com pacientes diagnosticadas com endometriose profunda e lá, ainda hoje, as mulheres são avaliadas por uma equipe de profissionais que envolve ginecologistas, fisioterapeutas, educadores físicos e outras especialidades.

Fachada da Meac
Legenda: A Maternidade-Escola Assis Chateaubriand foi a primeira unidade hospitalar a oferecer atendimento multidisciplinar gratuito para pacientes com endometriose profunda
Foto: Divulgação/Unidade de Comunicação Social do Complexo Hospitalar da UFC/Ebserh

Só na Meac, segundo o médico Leonardo Bezerra, há uma fila com cerca de 1,5 mil mulheres à espera de cirurgia para o tratamento da doença. No entanto, o profissional defende que a atenção básica — de responsabilidade dos municípios — garanta não só o diagnóstico precoce, para diminuir a necessidade de operação por agravamento da patologia, como, também, ofereça atendimento multidisciplinar para que todas as pacientes possam ser tratadas adequadamente.

"A gente não consegue dar conta dessa fila que só aumenta porque só existe tratamento especializado em Fortaleza, porque há a necessidade de [construção de outros] grandes centros [de atendimento] e também porque não se trabalha a atenção primária. A gente precisa que o posto de saúde acolha as adolescentes com dor e oriente que ter dor não é normal. Que, se você tem uma cólica que incapacita, deve procurar o médico. Assim, a gente deixaria para operar um percentual cada vez menor de pacientes. O problema é que, como não existe atenção primária, a coisa vai se acumulando, e a gente chega a essa situação caótica que temos hoje", observa Leonardo.

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Atendimento em Fortaleza

Em nota, a Secretaria da Saúde de Fortaleza (SMS) garantiu que mulheres com sintomas indicativos para a endometriose podem buscar qualquer um dos 134 postos de saúde da Capital para obter diagnóstico e tratamento.

300
É o número de procedimentos cirúrgicos de endometriose realizados em Fortaleza, entre 2022 e setembro deste ano, segundo a SMS.

O órgão acrescentou que, após a primeira consulta, se houver necessidade, a paciente é encaminhada para atendimento ginecológico especializado e exames complementares. No entanto, a pasta não informou se oferece o tratamento multidisciplinar na atenção básica.

"As consultas e cirurgias para essa doença ginecológica são reguladas e classificadas a prioridade conforme quadro clínico descrito na solicitação via Central de Regulação. Os atendimentos estão distribuídos nas unidades da rede municipal. O período para atendimento depende de fatores como classificação de risco, ordem cronológica e disponibilidade de vagas", resumiu a SMS.