Cadeirantes de Aço: torcida do Fortaleza reúne pessoas com deficiência por respeito no estádio
Brasil tem mais de 18 milhões de PCDs
“A nossa vida se planeja de um jeito, aí vai se desviando até chegar onde a gente quer.”
É assim que Daniel Melo, torcedor do Fortaleza, reflete sobre a própria jornada enquanto contempla a Arena Castelão. Sem o movimento das pernas, o tricolor enfrenta desafios diários, inclusive para acompanhar o time de coração. Mas na torcida Cadeirantes de Aço, que completou um ano no dia 23 de outubro, encontrou acolhimento e uma chance a mais de lutar por acessibilidade e inclusão nos estádios de futebol.
Aguerrido
Com a família quase toda tricolor, seria difícil Daniel fugir da camisa vermelha, azul e branca. Mas Paulo Roberto, único irmão alvinegro e responsável por levá-lo ao PV e ao antigo Castelão, tentou mudar essa história.
“Lá da torcida do Ceará, eu sempre via a do Fortaleza como a mais bonita, mais calorosa... Eu não tenho culpa se meu irmão fez com que eu torcesse Fortaleza. Com todo respeito a ele, que está no céu, hoje eu sou fortaleza de coração”, relembrou.
Após sofrer uma tentativa de assalto na capital cearense, em 1999, o oficial de justiça ficou paraplégico. Mas o amor pelo clube só fortaleceu a luta. Para acompanhar o Tricolor, Daniel sai de casa cerca de três horas antes das partidas. Assim, evita engarrafamento e estaciona perto do elevador. O deslocamento até o estádio é em carro próprio, adaptado. O Diário do Nordeste o acompanhou durante o jogo Fortaleza x Grêmio, pelo Brasileirão, em 30 de setembro.
Quem vai provar a essas pessoas que eu sou cadeirante, se eu estando dentro de um carro e dirigindo? A pessoa fica com receio de ajudar, acontece. Isso não é a normalidade. Quando peço ajuda, gosto de pedir ajuda a um grupo. Procuro trazer um acompanhante, mas o Castelão é bastante acessível.
Francisco Miranda costuma acompanhar o amigo nos jogos. É ele quem tira a cadeira de rodas do bagageiro do automóvel e monta o equipamento. Já Daniel ajusta o banco do motorista a fim de facilitar ser erguido até a cadeira. Próximo dali, o elevador adaptado o levará até a esplanada do Castelão. Depois, basta mostrar a carteira de sócio-torcedor na catraca e procurar o espaço reservado a ele.
O Brasil tem mais de 18 milhões de pessoas com deficiência, segundo o IBGE. A maior parte (5,8 mi) vive no Nordeste. Na arquibancada, a Cadeirantes de Aço chama atenção com a faixa que leva o nome da torcida, contudo, o peso da bandeira é maior: pede dignidade e inclusão.
“A Cadeirantes é também um movimento social que quer garantir o direito das pessoas com deficiência... Sejam elas com deficiência física, visual, auditiva, intelectual... Todas têm o mesmo direito. E é isso que os governos devem fazer: trabalhar com políticas públicas para que a gente tenha um lazer digno.
VEJA COMO É A ROTINA NO ESTÁDIO DOS MEMBROS DO 'CADEIRANTES DE AÇO'
Vibrante
Arley Pinheiro, executivo de planejamento do Fortaleza, teve a iniciativa de criar a torcida. Ele entrou em contato com as PCDs e formou um grupo no WhatsApp. Ao todo, são 47 componentes. Batizada por Daniel, a Cadeirantes também agrega tricolores com outros tipos de deficiência. Além de frequentar jogos, eles realizam ações no clube e outras atividades.
“A gente chegou em cada cadeirante anotando nome, sobrenome, telefone... Se o torcedor cadeirante comprar o ingresso ou ser sócio de um setor superior, o Fortaleza, junto a empresa responsável pelas catracas, alinha para que ele seja remanejado. Ou seja, ele sai do setor superior, que não tem acessibilidade e vai para o setor inferior.. Seja qual for. O Fortaleza abraçou a causa”, completou o diretor.
Carlos Evangelista, de 59 anos, também integra a torcida. Ele ressalta a importância do grupo para tomar conhecimento de alguns direitos das PCDs na praça esportiva.
“Muitas coisas eu não conhecia no estádio, a torcida me mostrou. Tenho o estacionamento, posso pegar elevador e o acesso é fácil. Temos nosso espaço reservado. Estou muito feliz. Desde pequeno eu torço Fortaleza. Também passei uma parte como jogador, uma carreira curta, mas sempre com o Fortaleza no coração. Obrigada, Fortaleza, por proporcionar muitas emoções pra mim”, disse.
Forte
Apesar dos esforços para melhorar o conforto desse público, o desrespeito de outros atrapalha a experiência das PCDs no estádio. Mesmo com a sinalização no chão, que mostra o espaço reservado ao cadeirante e ao acompanhante, Daniel relata situações incômodas.
Tem a sinalização dos cadeirantes, e ao lado tem as cadeiras para os acompanhantes. É importante que respeitem as vagas. Muitas vezes fico numa vaga e a outra, que é de cadeirante, fica gente em pé e atrapalha nossa visão. Já aconteceu de eu levar banho de cerveja, de gente - que não deveria estar naquele espaço - vibrar com o gol e bater sem querer em mim... Acontece.
"Nós temos também que ter banheiros adaptados, acessíveis, limpos, que façam com que a gente possa fazer nossos procedimentos… No meu caso, faço um cateterismo uretral (realizado para a urina). Então é importante dar um maior conforto”, explicou Daniel.
A Arena Castelão passou por adaptações com a reforma para a Copa do Mundo de 2012. Além das rampas de acessibilidade, piso tátil, bilheterias, elevadores e bares com tamanho adequados, a praça esportiva reserva 2.145 lugares para esse público nas arquibancadas.
Dessas, 1.350 são destinadas a pessoas com mobilidade reduzida, 320 para cadeirantes, 328 para acompanhantes, 147 lugares para obesos, além de 32 vagas exclusivas no estacionamento. Todas com marcações específicas. A arquibancada superior conta com acessibilidade para idosos e cegos.
“Melhoria é uma constante que a gente vem trabalhando. Mas a demanda chegando ao nosso conhecimento, óbvio que vamos procurar fazer as adequações. O Governo do Ceará, a Secretaria de Esporte e Juventude e a SOP buscam sempre que o público tenha a melhor experiência na Arena”, disse Rogério Pinheiro, titular da Sejuv.
Como a Arena possui espaço reservado para PCDs, Daniel acredita que uma categoria de ingressos destinados a cadeirantes seja uma possível solução contra a ocupação errada de vagas. Aguerrido, vibrante e forte, como o time no empate contra o Grêmio, o grupo segue a luta fora de campo por respeito aos direitos.
“Em algum jogo, alguns cadeirantes vão deixar de assistir, embora as vagas deles estejam garantidas no estádio, para serem ocupadas por eles. É preciso que se quebre as barreiras atitudinais, comunicacionais, arquitetônicas, todas as barreiras que impedem que a PCD tenha os seus direitos garantidos. É dessa forma que a gente quer desenvolver nosso trabalho e mostrar também que o cadeirante tem o mesmo direito de qualquer torcedor que assiste os jogos no estádio.”