Discursos podem alimentar repressão policial, dizem especialistas
Direcionamentos públicos de enfrentamento da criminalidade e a falta de responsabilização de agentes são apontados como possíveis causas para o aumento de mortes
"Justiça ou cemitério”. Foram as duas possibilidades dadas pelo secretário da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), André Costa, poucos dias após ter sua posse efetivada, em janeiro de 2017. Se a retórica é capaz de respaldar a ação policial, é na ausência de responsabilização administrativa que a impunidade torna-se uma constante. Na época, a frase mais polêmica do secretário foi até defendida pelo chefe do Executivo, sob a ótica de que o então empossado André Costa teria sido “mal interpretado”.
Embora a frase já tenha sido dita há mais de dois anos, foi em 2017 que os números de homicídios em decorrência da atuação policial aumentaram exponencialmente. Desde então, mais gente foi para o cemitério, de fato. “É uma fala que, do ponto de vista do seu lugar institucional, é antidemocrática. Bandido não tem que escolher nada. Ele descumpriu a lei e tem que ser efetivamente responsabilizado de acordo com a lei. E a Polícia é a instituição que vai fazer este trabalho”, afirma Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC).
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Segundo o sociólogo, esse tipo de discurso tem efeito negativo. “A ideologia desloca uma ideia de policiamento democrático, de garantia de direitos, para um policiamento de enfrentamento e produção da violência e de combate ao crime. Isso tem uma consequência, e o número de mortes por ocorrência policial no Brasil e no Ceará mostra qual é essa consequência”.
O vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Ceará (OAB-CE), Paulo Pires, concorda com a afirmação. “Esse tipo de discurso, que não deixa de ser ideológico por parte do chefe da Secretaria, mobiliza a tropa nesse sentido e empodera seus policiais para agir com maior truculência”, afirma, questionando a dificuldade de obter respostas por parte do Estado nessa área.
O tempo
Desde que a série histórica de mortes causadas pelas forças de segurança começou a ser contabilizada pela SSPDS, a gestão do secretário André Costa tem sido a mais violenta. Do dia em que assumiu a chefia da Pasta até o fim de 2018, passaram-se 726 dias, e 376 pessoas foram mortas pela Polícia. Até o fim do ano passado, na gestão atual, em média, uma pessoa foi assassinada pelo braço armado do Estado a cada dois dias.
Fato que não se reflete nos números de demissão ou expulsão divulgados anualmente pela Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD). Entre 2013 e 2018, apenas 24 profissionais foram retirados dos quadros da Secretaria em razão de terem cometido homicídio.
Em nota, a CGD informou que “vem atuando no sentido de apurar administrativamente a conduta do agente de segurança pública, logo ao identificar eventuais irregularidades e práticas ilícitas”. Segundo o Órgão, entre 2015 e 2018, foram instaurados 264 procedimentos disciplinares com o fito de apurar casos decorrentes de intervenção policial.
De acordo com a pesquisadora Glaucíria Mota Brasil, do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e da Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceárá (Uece), pouco se tem ouvido falar da CGD atualmente, ainda que o papel da Instituição seja importante e reconhecido na apuração de irregularidades. “Acho que ela já foi mais requisitada e mais incisiva na apuração de denúncias contra atos policiais fora de padrão e que feriam a Lei”, argumenta.
Para Luiz Fábio, a atuação da Controladoria tem de ser pensada dentro do contexto em que ela está – no qual é criticada dentro do próprio Governo. “Acho muito difícil a CGD cumprir a sua missão diante da situação onde, mesmo quando os policiais erram, o Governo já se apressa em fazer com que a Instituição seja preservada. É muito curioso isso. Há sempre uma certa defesa, negação da responsabilidade daquela pessoa mesmo antes de saber dos fatos”, avalia.
A crítica
O presidente da Associação dos Profissionais de Segurança (APS) do Ceará, Reginauro Sousa, cujo colegiado já possui quase 10 mil associados, afirma que falta suporte jurídico. “Deveria ser obrigação do Estado, mas (o policial) recorre às entidades porque sabe que não vai ter o mesmo suporte se ele depender apenas do Estado”, acredita. Segundo Reginauro, a “CGD tem uma natureza questionável do ponto de vista da sua constitucionalidade”.
Além disso, o presidente da APS também acrescenta que os policiais militares deveriam ser julgados por oficiais. “A sentença final, quando vai pra CGD, é dada por um civil, enquanto o policial deveria ser julgado pelos seus próprios pares, mas a Lei que foi criada no Estado do Ceará ampara a atividade e dá poder grande à Controladoria”, admite.
Por nota, a Secretaria da Segurança preferiu não responder aos questionamentos relacionados ao aumento de mortes por intervenções policiais, na gestão do atual secretário, mas ressaltou que “trata todas essas ocorrências com seriedade e transparência, de forma que esses dados são divulgados e disponibilizados mensalmente no sítio institucional”.
Embora haja aumento nos últimos seis anos, a Pasta argumentou que até abril de 2019 – em comparação com 2018 –, “foi registrada uma queda de 31% nessa estatística. Reduzindo de 88, no ano passado, para 61”, neste ano.