Formação e assistência psicossocial são gargalos para a atuação policial
Profissionais da Segurança Pública têm período de formação reduzido e descontinuado, segundo especialistas; instituição responsável pelo treinamento diz que aprendizado é humanizado e de intervenção técnica
O aumento no número de homicídios decorrentes de intervenções policiais no Estado do Ceará tem raízes que se iniciam não apenas nos últimos seis anos, mas na própria constituição da ideologia militarizada das forças de segurança, bem como em gargalos históricos pleiteados pela Corporação, como problemas na formação e na atenção psicossocial. Esses aspectos são apontados por especialistas como caros aos profissionais e, por consequência, à população.
Anteriormente, um praça da Polícia Militar demorava cerca de seis meses para completar o curso de formação na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp); um oficial passava até três anos estudando para adentrar oficialmente na Corporação. Contudo, segundo o presidente da Associação dos Profissionais de Segurança (APS), Reginauro Sousa, o período diminuiu para quatro meses e um ano e meio, respectivamente.
Formação
"O tempo que eles estão na academia, de forma alguma, é suficiente. Isso é um erro grave, que vem sendo cometido nas últimas gestões na tentativa de dar uma resposta política à população", avalia Reginauro, ao acrescentar a importância do trabalho continuado que deveria ser também adotado pela Aesp.
De acordo com o professor Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), a formação policial cearense é precária e "tem vícios das práticas colocadas por profissionais mais velhos. Ela deveria ter múltiplos profissionais de diversas áreas. A Academia de Polícia era pra ser uma Universidade, com múltiplos profissionais, com independência e autonomia", ressalta.
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A Aesp informou, por nota, que "os policiais formados no Ceará passam por cursos de formação inicial e continuada, baseados na matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública e Defesa Social do Ministério da Justiça e Segurança Pública". A instituição afirmou que "prevê uma formação humanizada e de intervenções técnicas, propiciando a formação de profissionais de Segurança Pública preocupados com as questões sociais e a resolução de conflitos". Embora tenha sido requerido, em nenhuma das respostas enviadas pela Aesp, houve informações sobre o tempo de formação policial de praças e oficias. Contudo, publicações oficiais do órgão dão conta de que as duas últimas turmas formadas tiveram carga horária de 2.720 h/a (para oficiais) e 1.020 h/a (para praças).
Para o pesquisador da UFC, entretanto, não adianta melhorar a formação e esquecer das condições de trabalho. "As coisas são feitas para colocar mais policiais nas ruas e pronto. Trabalho policial é sério, difícil, requer conhecimentos de psicologia, assistência social, sociologia. A arma de fogo é um aspecto de um trabalho muito mais complexo de quem está na rua e precisa controlar suas emoções para entender o outro", diz Luiz Fábio Paiva.
Aspecto psicossocial
Além dos problemas apontados por quem vê de perto a rotina policial, há outra questão que assola a vida desses profissionais. A falta de apoio psicossocial também pode ser fundamental na tomada de decisões durante o serviço, o que corrobora, inclusive, com a problemática do suicídio na classe militar. "As políticas públicas com relação ao atendimento psicossocial são muito tímidas. Temos hoje um acompanhamento setorial, em Fortaleza, que não dá conta do tamanho do efetivo, ao ponto de eu dizer que os serviços de psicologia das associações são lotados", pontua o presidente da APS, Reginauro Sousa.
Conforme Glaucíria Mota Brasil, do Laboratório de Conflitualidade e da Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), os problemas ocorrem em razão do modelo repressivo da própria hierarquia da Corporação. "Nós sabemos que a Polícia brasileira é a que mais adoece mentalmente, que mais tem transtornos mentais, então, é uma Polícia que está pedindo socorro", explica. Segundo ela, as entidades não podem oferecer apenas um sistema punitivo, pois seria preciso subsidiar a efetividade do serviço dos agentes. "Um policial adoecido não vai ter condição de dar essa garantia à sociedade, vai ser um problema para a sociedade, para a família e para sua própria vida", salienta Glaucíria.
Conforme o Portal da Transparência do Governo do Estado, em 2018, a SSPDS teve despesa de R$ 2,8 bilhões. No documento, a linha "assistência aos profissionais de segurança", disponível no Fundo de Defesa Social da Secretaria, apontou investimento de R$ 70 mil; na aba "serviços de atendimento psicossocial e terapêutico para profissionais de segurança pública" da Polícia Militar, foram outros R$ 21.557. Os dois juntos representam 0,0032% de todo o dinheiro utilizado na área.
Mortes de policiais
Em razão da exposição ao crime - iminente aos profissionais da segurança -, além de uma série de negações enfrentadas pela Corporação, policiais também morrem em quantidade preocupante.
Embora o número de agentes cearenses mortos venha caindo desde 2015, os assassinatos ainda preocupam quem estuda a área da Segurança Pública ou nela atua. Entre 2017 e 2018, a redução de 68% nos homicídios que vitimaram profissionais da segurança foi a maior desde 2013, acompanhando uma tendência nacional. O Ceará chegou a ser, em 2017, o quarto Estado no Brasil com a maior quantidade de policiais mortos no ano.
De acordo com o sociólogo Luiz Fábio Paiva, "o policial é exposto à violência, é vítima de uma orientação política construída e é tão prejudicado quanto a população que ele atende, que é tantas vezes prejudicada pelo trabalho mal-feito", ressalta.
O presidente da APS, Reginauro Sousa, afirma que, apesar da redução, a situação ainda não é confortável. "Enquanto as facções criminosas estiverem agindo com tanta tranquilidade e os investimentos na Polícia investigativa forem diminutos, não vai ser possível se antecipar às ações criminosas, que muitas vezes são quem colocam as vidas desses policiais em risco".