Com medidas mais rígidas em vigor no novo decreto contra a Covid-19 no Ceará, a população passou a questionar a possibilidade da instauração de um futuro lockdown nos próximos dias, semelhante ao aplicado no início da pandemia no Estado, ainda no ano passado.
Nesse contexto, o Seu Direito conversou com os advogados Rafael Cruz, Guadênio Santiago, e o promotor de Justiça Eneas Romero, do Ministério Público do Ceará (MPCE), que explicaram sobre os aspectos jurídicos e a fiscalização do lockdown.
Constituição e lockdown
O que diz a constituição sobre um regime do tipo “lockdown”, quando outras prioridades prevalecem sobre o direito de ir e vir?
Rafael Cruz - Ainda não temos questões específicas na constituição sobre o assunto. Isso porque não existem direitos e liberdades absolutas. Na verdade, são princípios que devem ser medidos em casos concretos para saber qual deles deve preponderar. Eles não são auto excluíveis. A gente precisa ver qual deve ser aplicado: se o que deve prevalecer é o direito à saúde ou essa liberdade de locomoção e abertura do comércio, por exemplo. O que tem prevalecido hoje é o direito à saúde e, na minha opinião, deve ser comedido conforme dados científicos.
Quem pode decretar um regime de lockdown? Estado, União ou Município?
Rafael Cruz - A Lei Federal da pandemia Nº 13.779/2020 estabelece essa legitimação para o poder executivo, tanto estadual quanto municipal e o federal. Sempre lastreado em estudos técnicos.
No ano passado, quando o lockdown foi instaurado em diversas capitais, existiam discussões jurídicas sobre a viabilidade desse decreto? Quais eram os impasses levantados?
Rafael Cruz - Sim. As principais questões que tinham sobre o lockdown envolvem a falta de entendimento entre o governo federal, estaduais e municipais no que diz respeito a quais atividades podem ser consideradas essenciais, ou seja, quais poderiam continuar funcionando durante o regime. Isso é uma questão muito séria levando em conta a Lei da Liberdade Econômica, que dá a liberdade de funcionamento para empresas e comércios.
Nesse sentido, o grande conflito que teve foi que o Governo Federal estava expandindo o número de categorias essenciais durante o lockdown enquanto os governos estaduais queriam restringir mais. Essa questão chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a decisão favoreceu os poderes locais, então estados e municípios, têm legitimidade para impor suas medidas.
De certa forma, passou-se a ter uma insegurança jurídica dos cidadãos pelo pensamento de “que norma está sendo aplicada?” ou “que norma está regendo a minha atividade?”, pois, em muitos estados, o que é essencial em um, não é essencial no outro. No caso do Ceará, por exemplo, o Governo Federal descreveu a Construção Civil como essencial, mas o Estado não considerou. As normas estaduais devem ser complementares às federais.
Sanções a quem desobedecer às determinações de isolamento
O que a legislação diz sobre punições a quem desrespeitar as medidas?
Gaudenio Santiago - Nós temos decretos estaduais, municipais, a Lei Federal e o Código Penal que abordam sobre isso. No Ceará, pelo Estado de Calamidade Pública, o chamado decreto-lei tem mais abrangência com a autoridade de fechar estabelecimentos, por exemplo. Mas, toda essa discussão é muito recente no mundo jurídico.
Todas as medidas sanitárias que são colocadas nos decretos, caso a pessoa cometa algum tipo de infração, ela vai ter duas punições ao mesmo tempo: será multada e o estabelecimento interditado por sete dias. Reincidiu a infração: o prazo da interdição aumenta para 30 dias e pode ser multado novamente. O valor da multa pode ser de até R$ 75 mil.
Já o Código Penal traz uma punição no artigo 268 para quem infringir a determinação do poder público (lockdown, etc) destinada a impedir a propagação de doenças contagiosas, como a Covid-19. A pena pode ir de um mês a um ano de detenção mais multa.
Para fazer lockdowns, os estados ou a União precisam decretar estado de calamidade pública?
Gaudenio Santiago - Sim, para implementar o lockdown é preciso estar em estado de calamidade pública. Mas, pelo princípio de autonomia dos estados, cada estado pode decretar individualmente a calamidade pública.
Diferença entre lockdown e isolamento
O que muda na fiscalização de um regime de lockdown para um isolamento?
Eneas Romero - Juridicamente, não há muita diferença. A diferença é a ampliação das restrições. No regime atual, por exemplo, há limitação de horário e forma de funcionamento de algumas atividades, como restaurantes e comércio. A outras atividades foi estabelecido que não deve haver funcionamento presencial.
O lockdown é uma medida excepcional que só é aceitável em uma situação quando há uma grave crise sanitária em que os indicadores hospitalares e a transmissão viral indiquem que é imprescindível a diminuição da circulação de pessoas para diminuir o número de contágio e permitir um atendimento hospitalar sem colapso na saúde. Sem esses elementos, o lockdown não pode ser adotado.
Como foi feita a fiscalização do lockdown no ano passado?
Eneas Romero - O MPCE acompanhou desde o cumprimento do uso de máscaras nas ruas, filas de banco, no sentido de fiscalizar e até penalizar os bancos que não cumpriam as regras de distanciamento social até os eventos que eram realizados ilegalmente com aglomeração de pessoas.
Durante a eleição do ano passado, não era regime de lockdown na época, mas o MPCE também fiscalizou o descumprimento dos decretos por parte de todos os políticos em diversos municípios.