‘Nossos filhos vivem em nós’: Chacina do Curió completa 10 anos e massacres em periferias continuam
Uma sequência de sofrimento mental e físico que deixou 11 pessoas mortas e, pelo menos, outras sete feridas. Um bairro marcado por um dos episódios mais violentos protagonizados por agentes da Segurança Pública do Ceará.
O que fica de aprendizado para as autoridades depois de um massacre? A Chacina do Curió completa 10 anos nesta semana e traz um legado de luta das mães que reverberam as histórias dos filhos assassinados a tiros: 'nossos filhos vivem em nós'.
Na série de reportagens especiais publicada nesta segunda-feira (10) e nesta terça-feira (11), o Diário do Nordeste relembra o que aconteceu na última década e traz outros casos de massacres ocorridos em demais bairros da periferia de Fortaleza ao decorrer desse tempo.
'Menos dois para dar trabalho para a Polícia'
O Ministério Público do Ceará (MPCE) divide a chacina em nove episódios. O primeiro deles no dia 11 de novembro.
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De acordo com a acusação, as torturas começaram às 23h30 daquele dia, "na Rua Raquel Florêncio, e tiveram como contexto principal o 'justiçamento'.
Em quatro horas, a Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) recebeu mais de 100 ligações de populares relatando homicídios e tiroteios no Curió
Daí em diante, até às 3h do dia seguinte, o bairro estava marcado por sangue. Ameaças, restrição de liberdade e tortura são algumas das práticas cometidas por policiais militares denunciados.
Promotores que participaram do caso desde então não têm dúvida: "foi uma ação articulada, orquestrada", segundo a promotora Alice Iracema Aragão, uma das assinar a acusação contra os agentes.
Consta no processo que uma das testemunhas ao ouvir os disparos de arma de fogo e ver uma viatura policial ouviu dos PMs: "menos dois para dar trabalho para a Polícia".
Ouça a reportagem especial veiculada na Verdinha FM:
'Cade o Curió e o Índio?'
"Se tu não colaborar vai acabar como os outros aí", foi o que um sobrevivente ouviu de homens camuflados com balaclava que o retiraram de casa e rodaram de carro com ele por cerca de três horas.
O relato do jovem foi ouvido pela reportagem durante a sessão de um dos 'Júris do Curió'.
No Fórum, o sobrevivente disse ter sido "escolhido" por policiais e ameaçado de morte por supostamente conhecer um homem identificado como 'Curió', que estaria envolvido na morte do policial Serpa, ocorrida horas antes da chacina.
A investigação da Polícia Civil e a denúncia do MPCE apontam que o massacre teve ligação com uma possível retaliação à morte do soldado Valtemberg Chaves Serpa.
'Serpa' foi assassinado na noite de 11 de novembro, quando tentou intervir em uma tentativa de assalto contra a esposa, no bairro Lagoa Redonda.
Vídeos apresentados pelo MP durante os julgamentos, colhidos por câmeras de segurança de comércios e condomínios residenciais do Curió, mostram um comboio de veículos percorrendo as ruas após uma mobilização para que PMs fossem ao local cometer uma chacina.
As imagens são cobertas com o áudio de um morador relatando aglomeração de policiais à paisana e usando balaclava no bairro.
"Meu irmão, juntou todos os policiais dessa área de Messejana, da Regional 6. É muito carro, é muita polícia, à paisana. [...] Uma porrada colocando balaclava, tudo à paisana. Meu irmão, vai ser tenso, muito tenso”, diz o trecho.
"O tipo de munição utilizada, o tipo de abordagem, o tipo de indumentária que eles usavam... Abordavam as pessoas dizendo que era a Polícia"
Outra parte toca o áudio de um suposto PM pedindo apoio a policiais de folga: “Bora pra cima, pessoal, pelo amor de Deus. Quem tá de folga, faz alguma coisa!”.
'DOR VIVA, PERMANENTE E LATENTE'
Se vivo, Álef Sousa Cavalcante teria 27 anos. Edna Souza, mãe da vítima e uma das líderes do movimento 'Mães do Curió', lembra do sofrimento, "do impacto psicológico vivido durante esses 10 anos".
"Muito sofrimento, muita luta. É um desafiador, é adoecedor. O que eu disser ainda vai ser insuficiente para o tamanho da dor. Ninguém tem um filho para a Polícia matar", diz Edna.
"Todo dia 11 eu estou acordada de madrugada. Isso é muito cruel. É uma dor viva, permanente, latente. É uma dor que fica"
Maria Suderli Pereira de Lima, mãe do Jardel Pereira de Lima, representa outra família enlutada pelo massacre e garante: "a gente ainda tem muita coisa pelo que lutar".
"A nossa busca por Justiça não é a busca por vingança, é busca para que essas pessoas sejam responsabilizadas pelo que eles fizeram naquela noite. Essa busca, infelizmente, vai ser infinita pra gente, porque nós perdemos nossos filhos, marido, nossas famílias, são 18 famílias. Não é coisa de duas, três, mesmo que fosse, imagine 18", recorda Suderli.
Quem morreu na Chacina do Curió
- Álef Souza Cavalcante, 17 anos;
- Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17 anos;
- Jardel Lima dos Santos, 17 anos;
- Marcelo da Silva Mendes, 17 anos;
- Marcelo da Silva Pereira, 17 anos;
- Patrício João Pinho Leite, 17 anos;
- Renayson Girão da Silva, 17 anos;
- Pedro Alcântara Barroso, 18 anos;
- Jandson Alexandre de Sousa, 19 anos;
- Valmir Ferreira da Conceição, 37 anos
- Francisco Enildo Pereira Chagas, 41 anos.
A assistente social do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará), Mara Carneiro, considera que o 'Caso Curió' "tem muito a ensinar sobre a necessidade de reparação de direitos e responsabilização".
"Precisamos criar sistemas, políticas de atenção às vítimas de violência do Estado. O 'Caso Curió' foi uma violência feita pelo agente estatal, então a rede convencional não vai dar conta", segundo Mara.
O movimento 'Mães do Curió' foi criado a partir da chacina em 2015. Desde então, mulheres se mobilizam social e politicamente denunciando violência social e na busca por garantir assistências.
ATAQUES EM PERIFERIA
"A estrutura do Estado determina quem pode morrer", diz a promotora Alice Iracema ao acreditar que só aconteceu uma chacina porque se tratava de um bairro da periferia de Fortaleza.
Desde então, mais sequências de matanças foram registradas em outros bairros.
Uma delas, ficou conhecida como a Chacina das Cajazeiras, que entrou para a 'história moderna do Ceará' como a matança com o maior número de vítimas: foram 14 vidas ceifadas, no Forró do Gago, em Fortaleza, no dia 27 de janeiro de 2018.
RELEMBRE OUTRAS CHACINAS NA CAPITAL CEARENSE:
Fevereiro de 2017 - Pelo menos 5 pessoas foram assassinadas durante tiroteio na rua José Martins, em um dos apartamentos do conjunto habitacional Leonel Brizola, localizado no bairro Granja Lisboa, em Fortaleza. Na época, o Diário do Nordeste noticiou que a suposta causa da chacina seria a disputa pelo tráfico de drogas na região.
Outubro de 2017 - Quatro pessoas foram encontradas mortas dentro de uma casa na Rua Aguapé Verde, no Grande Bom Jardim, em Fortaleza. As vítimas apresentavam ferimentos na cabeça causados por tiros de pistola. A Polícia atribuiu a chacina a disputa entre facções criminosas rivais.
Dezembro de 2021 - Cinco pessoas morreram e outras oito ficaram feridas na noite do Natal de 2021, no bairro Sapiranga. 22 membros de facção foram acusados pelo crime.
Maio de 2025 - Disputa de território entre as facções Comando Vermelho (CV) e a Guardiões do Estado (GDE) deixaram quatro mortos e seis feridos, na Barra do Ceará. A chacina aconteceu em um campo Society.
Nesta terça-feira (11), o Diário do Nordeste traz a segunda reportagem sobre os 10 anos da Chacina do Curió, com os desdobramentos do processo e a atual situação penal de cada um dos policiais denunciados.