São três horas da tarde do segundo dia da Farofa da Gkay, uma das festas mais comentadas no mundo dos influencers digitais e que, há pelo menos dois anos, concentra boa parte do assunto nas redes sociais em todo o País.
Dezenas de crianças e adolescentes se debruçam contra as grades verdes do hotel cinco estrelas onde ocorre a festa. Querem ver os famosos e ter algum acesso àquele mundo glamuroso que conhecem apenas da internet. “Não dá pra ver quem é, mas deve ser famoso”, diz uma menina de 10 anos de idade, antes de soltar gritinhos com o grupo para chamar atenção.
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Ali, alguns até alcançam o sonho de entrar pulando a grade, mas reconhecem que é missão impossível conseguir atravessar ao menos o estacionamento. Rapidamente eles vêem seus corpos serem postos para fora daquele lugar ao qual não pertencem.
Não importa. Durante os três dias de festa, sempre há dezenas de jovens sonhando com as mãos apoiadas naquelas grades e de costas para a Avenida Leste Oeste, a mesma que separa dois mundos e escancara um abismo social agora aprofundado pela glamurosa Farofa da Gkay.
Do lado do mar, influencers e músicos desfilam seus abadás customizados e exibem nas redes vários momentos da festa, regada a muita bebida e comida, além de soltar pequenas pílulas sobre o famigerado dark room e muita fofoca de gente famosa. As polêmicas também ajudam a enxurrada de cliques que alimentam os veículos de comunicação, ávidos pela audiência atraída por qualquer notícia sobre a festa.
Do outro lado da Avenida, está o Arraial Moura Brasil, do qual quase ninguém fala. É um dos bairros com baixíssimo índice de desenvolvimento humano da capital cearense, segundo a Prefeitura de Fortaleza.
Ali, a maioria dos moradores segue seu cotidiano normalmente, distante da ostentação da festa e bem próxima de uma realidade que assola os 33 milhões que hoje passam fome no país. Seguem resistindo, como têm feito desde sempre diante do acúmulo de problemas sociais e do avanço da criminalidade e no narcotráfico no território.
Na primeira rua da subida do morro, um grupo de garotos joga futebol sob as bandeirolas verde-amarela, decoração tradicional da Copa do Mundo. Há várias pessoas sentadas nas calçadas, mas o assunto passa longe da Gkay. “Ninguém fala muito não.
Ano passado eu desci pra ver, mas este ano não. Vou lá ficar correndo atrás de famoso?”, diz uma jovem de 13 anos, que acompanha a festa do outro lado da Avenida apenas pelas redes sociais.
“Mas se eu tivesse um convite, iria né? Soube de um rapaz que conseguiu pular. Dizem que até conseguiu falar com a Gkay”, continua. Pergunto então a uma senhora de cerca de 40 anos sobre a Farofa. “Não acompanho nada disso, não. Não é do meu mundo”, ela diz, rejeitando o assunto.
No mesmo dia, o vice-presidente da Cufa, Wilton dos Santos (ou Piqqueno, como prefere ser chamado), foi visitar a comunidade, como tem feito para organizar doações de cestas básicas e outras ações desde o início da pandemia.
A festa é como criar uma cortina do outro lado da avenida para não querer ver a fome, a miséria e a continuação do descaso social que existe no Moura
Enquanto visitava uma artesã conhecida no bairro chamada dona Lúcia, de cerca de 70 anos, ele alfinetou:
- A senhora viu aí a festa da Gkay? Gastaram oito milhões.
- E eu vou fazer aniversário no sábado e só queria um bolo e um forrozinho para dançar!
“Acho que quem tem dinheiro gasta como quiser. Ninguém está reclamando da Farofa, mas os influenciadores poderiam aproveitar este momento para ajudar o entorno. Tentar diminuir esse abismo social entre o local do evento e a favela”, defende Piqqueno.
Outros moradores fazem coro a esta ideia. A cada ano, há certa expectativa de que a mão de obra da comunidade possa ser aproveitada nas atividades do megaevento. Há quem espere até a visita de alguns famosos, que ninguém ali viu atravessar a avenida para acessar aquele outro mundo.
Cerca de 4.000 pessoas vivem no Moura Brasil, um bairro que nasceu da ocupação de pessoas que fugiam da fome e da seca no interior do Ceará nos anos 1930. Nunca superou as mazelas sociais.
Nos últimos anos, o Bairro viu sair a tradicional linha do trem para dar espaço ao metrô ainda não concluído, ganhou algumas obras urbanas e até um centro cultural vultoso. São obras positivas, mas que não necessariamente fazem o bairro sentir-se incluído, segundo moradores.
Há abismos que são tão imensos que exigem muito para começar a construir pontes. Como questionar o eterno medo de remoções a cada nova obra próxima àquela comunidade? O esforço deve ser de todos: do Estado, da sociedade, dos empresários, dos influenciadores. É preciso que todos nós atravessemos esta Avenida. E não só durante a Farofa da Gkay.