A história de Kátia Cilene é de uma menina que cresceu fingindo ser pirata para tomar um castelo desativado e findou criando raiz numa comunidade pressionada pela especulação imobiliária e pela qual precisa lutar todo dia
Kátia Cilene Silva de Lima cresceu brincando de tomar um castelo com os meninos da praia. Num tempo em que faltava quase tudo, o lazer era fingir ser pirata e escorregar pelas muretas pedregosas do Farol Velho, subindo e descendo pequenos montes numa guerra improvisada. Munida com espadas de papelão e toda a vontade do mundo, ela conquistava, perdia e reconquistava aquele espaço todo dia. Foi de tanto tomar aquele castelo na infância ―o único possível em meio à pobreza―, que Kátia Cilene criou raízes no farol.
“Tenho uma vida aqui com uma raiz muito forte. Vai ser difícil me arrancar”, ela diz, já adulta e envolvida em uma outra batalha silenciosa, contra o eterno risco de remoção por viver nos arredores do Farol, no Titanzinho, uma praia que fica bem no meio dos interesses que rondam dois importantes pontos turísticos de Fortaleza: a Praia do Futuro e a Beira-Mar. “Nunca vi isso de, porque o lugar é bonito, o pobre não pode morar. Que história é essa?”, pergunta.
Por ter suas raízes entranhadas no chão do Titanzinho, Kátia Cilene hoje chora ao ver o Farol Velho que tomou tantas vezes na infância se esfacelando, caindo aos pedaços pela corrosão do tempo, pela falta de reformas, pelo abandono contra o qual os moradores do entorno gritam há anos.
Nem o tombamento está salvando o Farol Velho, que durante tantos anos iluminou a enseada do Mucuripe e norteou as embarcações. Mas Kátia Cilene se recusa a deixá-lo existir apenas no brasão do Ceará ou nos versos dos “olhos do mar” da música famosa de Ednardo. “Aqui fizemos a nossa vida e a nossa cultura. O Farol e a comunidade precisam existir”, ela diz.
Kátia Cilene mora no Titanzinho desde que nasceu, no dia 29 de fevereiro de 1976. Filha adotiva, foi criada pela mãe na comunidade, entre o farol e o mar. Quando a mãe dela foi ficando idosa e precisou amputar uma perna por consequência do tabagismo, coube a Kátia devolver o cuidado até o fim da vida de quem lhe criou.
A casa onde mora no Titanzinho, bem de frente para as piscinas naturais formadas por pedras sedimentadas no mar, Kátia construiu com as próprias mãos. É esta a morada que hoje divide com o filho caçula e o sobrinho enquanto se articula com os vizinhos da comunidade para exigir do poder público a reforma do farol, esgotamento e água de qualidade. Todos os dias, eles gritam por direitos básicos. Agora mesmo estão trabalhando em um plano popular que esperam apresentar para as autoridades.
Recentemente o Estado enfim abriu uma via de diálogo, acendendo na comunidade a esperança da reforma no farol. “Mas precisamos de uma política para não haver mais remoções na nossa comunidade”, avisa Kátia. Sem compromissos firmados no papel, ela tenta se equilibrar entre a esperança de melhorar a vida no Titanzinho e o cuidado para não retroceder na resistência.
A capitã da areia do Titanzinho, que tantas vezes tomou aquele castelo, também carece de vitórias nesta batalha sem fim que abraçou naturalmente desde o tempo em que subia, ainda criança, nas muretas pedregosas do farol desativado. “Estou cansada demais”, ela confidencia. “A gente está nessa luta há muitos anos, não paramos nunca.”
Muitas gestões já passaram prometendo reformas e desistindo pela resistência contra as remoções, ela diz. Mas os vizinhos, tantos deles já empurrados ao Titã por outras desapropriações, não vão arredar pé. E, às vezes mais cansada e noutras menos, Kátia estará ali em meio ao surf e ao artesanato, mergulhada no coletivo, para lutar pelos seus. Como ela diz: raiz é difícil de arrancar.