Foi preciso atravessar o país para que eu me enxergasse nordestina. Era 2013. Desembarquei em São Paulo para fazer uma pós-graduação em jornalismo e, nos muitos meses que se seguiram, eu já não era apenas Beatriz. Tampouco era cearense ou cedrense. Em São Paulo, eu era “a nordestina”.
Boa parte das vezes que entrevistei sudestinos - e eu amo chamá-los assim para inverter a lógica dos rótulos - precisei ouvir coisas do tipo: “Eu tive uma amiga nordestina, mas ela era até inteligente”. Também precisei explicar muito para amigos queridos paulistanos que usar a expressão “deixa de baianagem” é xenofobia, é ofensivo. Ao menos do nosso cuscuz soltinho, gosto de lar em qualquer lugar do mundo, ninguém nunca falou mal.
No início eu até associei ser nordestina a carregar estigmas e ter de se esforçar para combatê-los diariamente. Que cansativo! Mas foi rodar pelos rincões dos vários estados deste Nordeste diverso (aos desavisados, são nove estados) que descobri a potência transformadora de sua força, especialmente pela voz de mulheres tão fortes quanto ativas, que não baixam a cabeça e lêem o mundo com a complexidade que ele merece.
Do mar ao sertão do Nordeste, nós rechaçamos os estigmas da miséria e transformamos o mundo. Querem ver?
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Conheci dona Marlene dos Santos Santana em 2019, numa expedição com ambientalistas pela Bahia. Nunca ninguém a ensinou a pescar. Mas Marlene aprendeu a pegar siri e aratu no mangue, a tirar ostra ou a puxar o peixe com uma vara de linha de tanto acompanhar os pais trabalharem na beira do rio em Campinhos, a maior comunidade da Reserva Extrativista de Canavieiras, no extremo sul da Bahia.
A vida dela seguiu um curso comum para as mulheres que integram as mais de 2.000 famílias que vivem na região: a de abraçar a atividade pesqueira como profissão antes mesmo dos dez anos de idade. “Aqui, todo mundo pesca, mas a força maior é das mulheres. A atividade que tiver aqui no manguezal a gente faz, mas durante muito tempo foi como se a gente fosse invisível”, ela me contou.
Tanto que nem pouco depois de parir ela pôde se dar ao luxo de parar de enfiar as pernas na lama para catar marisco por umas semanas que fossem. Anos depois, Marlene viu as mulheres da comunidade se organizarem na Associação Mãe da Reserva Extrativista de Canavieiras (Amex). Ela integrou o grupo e, ali, começou a entender que também tem direitos.
Não deixou a pesca, mas se embrenhou em uma longa luta pelas famílias de pescadores e, em especial, pelas companheiras. Hoje, vê a geração de suas netas despertar para uma vida que mantém a tradição pesqueira da família, mas tem como premissa não aceitar o mínimo e reivindicar a igualdade de gênero. São elas, aliás, que administram a Moex, uma moeda social que busca fazer o lucro deste trabalho permanecer na comunidade. Estão ali tentando mover estruturas com o pensamento na coletividade.
Dois anos depois, já para os lados do sertão do Ceará, conheci dona Maria de Fátima na periferia de Juazeiro do Norte, no Ceará. Era uma noite de agosto de 2021. Ela estava em uma casinha muito simples onde morava, em frente a um conjunto habitacional que seria inaugurado no dia seguinte pelo presidente da República. Se dezenas de famílias estavam ansiosas para receber sua casa, dona Fátima estava preocupada.
Nos últimos anos, ela viveu do dinheiro que ganhava para cozinhar marmitas aos trabalhadores da obra, agora finalizada. Agricultora desde criança, havia tido sua aposentadoria negada porque não conseguiu provar que trabalhou na roça desde os nove anos de idade. Hoje ela tem quase 60.
Dona Fátima não é de ficar se lamentando, muito menos de depender de ninguém. Por isso, decidiu escrever uma carta ao presidente. Pediu a ajuda da filha, já que estudou pouco porque precisou trabalhar muito cedo.
Debaixo de sol e de um calor de trinta graus, atravessou o abismo entre a sua vida e as principais bandeiras ideológicas do presidente para gritar que seus problemas também são um problema do país. “O presidente que for, se quiser tomar água na minha casa, toma. Acho que presidente é de todo mundo e tem que olhar para quem é pobre”, ela me disse, cercada de imagens de santos na parede. Todos os dias, ela ora para que a vida melhore - a dela e a dos seus.
Mas nada disso (e muito menos o senso de democracia e coletividade dessas mulheres) parece fazer muito sentido na linha imaginária que corta o país rumo ao Sul e Sudeste, um tanto quanto desconectados da nossa realidade.
Se tem uma certeza que nós, nordestinos, temos é que, de quatro em quatro anos, seremos alçados ao ódio das redes a cada eleição presidencial, como está acontecendo agora mesmo.
Primeiro disseram que votávamos com a barriga, depois pelo assistencialismo. Agora, quando o Nordeste votou em peso no candidato opositor ao presidente que turbinou auxílios financeiros na tentativa de conquistar eleitores, dizem que somos analfabetos.
É tudo um festival de xenofobia. Mas nós, nordestinas, sabemos que nossas identidades (lembrem-se, são nove estados diferentes) foram construídas com pé no chão, olho na rua e muita força de mulheres que, nos seus rincões, revolucionam a vida todos os dias.
No fim das contas, é tal qual Belchior cantou: “Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca houve”. Sabemos, poeta. Não somos do lugar dos esquecidos nem da nação dos condenados. Somos brasileiros e conhecemos nosso lugar.