Um altar para os grandes mestres cearenses numa antiga estação de trem do Estado

O Ceará é o pífano dos irmãos Aniceto, a louça de barro de Dona Branca, o riso do Palhaço Pimenta. Conheça a história de guardiões das nossas tradições

Legenda: Até o mais ateu há de reconhecer a cultura de fé das rezadeiras nos rincões do sertão
Foto: Imagem: Murilo Monteiro

Há de se exaltar sempre os grandes mestres das nossas tradições. O Ceará é o pífano dos Irmãos Aniceto, que já atravessa dois séculos com música, uma força motriz da cultura popular. É o riso provocado pelo palhaço Pimenta, que não sabia o que era circo e depois virou mestre, com seu nariz de tinta vermelha e as piadas contadas diante da cortina amarela de seu picadeiro, com aquela curiosa textura de animal print.

Palhaço Pimenta
Legenda: Palhaço Pimenta virou mestre com seu nariz de tinta vermelha e as piadas contadas diante da cortina amarela de seu picadeiro
Foto: Fotos: Jarbas de Oliveira/Imagem: Murilo Monteiro

Eu o acompanhei por meses há alguns anos e ouvi como ele aprendeu a “fazer tudo em circo, até ensinar”.

O Ceará também está nas peças de cerâmica feitas por dona Branca lá no Ipu, que há décadas servem comida à nossa mesa. Dona Branca começou a fazer louça de barro com a avó, aos 10 anos, escondida do pai, que não queria que a filha trabalhasse. Nunca mais parou. 

Você duvidaria que nós, cearenses, somos também a energia dos reisados? Até o mais ateu há de reconhecer a cultura de fé das rezadeiras nos rincões do sertão. Abra o coração, leitor, e sinta o quanto de nós há na história de cada um dos nossos grandes mestres da cultura. 

Estação das artes
Legenda: Vale a pena visitar esses guardiões de nossas tradições no altar dedicado a eles numa das mais antigas estações de trem do Estado
Foto: Fotos: Jarbas de Oliveira/Imagem: Murilo Monteiro

Vale a pena visitar esses guardiões de nossas tradições no altar dedicado a eles numa das mais antigas estações de trem do Estado. A exposição “Legado dos Mestres” ficará aberta nas noites de sábado e manhãs de domingo até outubro, na Estação das Artes.

E não há como não se emocionar, por exemplo, com a imagem do sorriso de Dona Nice Firmeza, pioneira nas artes do Ceará, sempre com aquela flor de delicadeza acomodada em uma das orelhas.

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Visitar o espaço no último domingo me levou às histórias que ouvi de perto de vários desses mestres. Alguns me abriram as portas de suas casas e revelaram, com toda a simpatia que a cearensidade poderia lhes dar, o maravilhoso mundo deste universo criativo que é também uma homenagem às memórias da nossa terra.

Pouco antes da pandemia, estive na casa-museu de Raimundo, o mais antigo dos integrantes da banda cabaçal Irmãos Aniceto.

Raimundo
Legenda: O maravilhoso mundo deste universo criativo que é também uma homenagem às memórias da nossa terra
Foto: Fotos: Jarbas de Oliveira/Imagem: Murilo Monteiro

Fotografias de apresentações dele e dos irmãos lotavam as paredes. Geladeira, fogão e cadeiras passaram a dividir o espaço dos cômodos com dezenas de objetos históricos do grupo formado ainda no século XIX ― todos os integrantes descendentes do índio Kariri José Lourenço da Silva (o Aniceto) e de Maria da Conceição.

Com a voz deteriorada desde que sofreu um AVC, seu Raimundo Aniceto tentou me ensinar a tocar pífano, como fez aos seus descendentes que agora levam o grupo.

“A gente quer continuar como meu pai deixou. É se acabando um, e nós botando outro pra não se acabar a tradição”, dizia. O motivo? “Meu pai me ensinou como era a cultura. A cultura é coisa séria. É onde está nossa vida.”

exposição “Legado dos Mestres”
Legenda: A exposição “Legado dos Mestres” ficará aberta nas noites de sábado e manhãs de domingo até outubro, na Estação das Artes
Foto: Fotos: Jarbas de Oliveira/Imagem: Murilo Monteiro

Raimundo morreu durante a pandemia, depois de 80 anos dedicados à cultura. Neste período, viajou pelo Brasil e pelo exterior para mostrar a tradição dos seus. Mas nunca se afastou do seu rincão, o Crato. “Tudo lá é muito bonito, mas eu prefiro o bairro Batateira, onde a gente mora”, disse após voltar de uma turnê à Europa. Ele se foi.

Há outros mestres com suas casas abertas na região do Cariri e que você pode conhecer também na exposição da Estação. O Mestre Françuli, por exemplo, expõe seus aviões em Potengi. Desde criança, ele dizia ao pai que deixaria uma história na cidade. E conseguiu, construindo pequenos aviões com madeira de embiratanha, dessas que se corta até com as unhas, embaixo de um pé de Juá.

FRANÇULI
Legenda: Há outros mestres com suas casas abertas na região do Cariri e que você pode conhecer também na exposição da Estação. O Mestre Françuli, por exemplo, expõe seus aviões em Potengi
Foto: Fotos: Jarbas de Oliveira/Imagem: Murilo Monteiro

No domingo passado, a Mestra Mariinha, do grupo Pastoril Mariinha da Ló, se movia com a dificuldade imposta pela idade entre os enormes painéis com fotografias na Estação das Artes. Mestres como ela estão com suas tradições expostas ao redor da antiga linha de trem. A visita é como conhecer ― e sentir ― a nossa própria história. 

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