A caminho da velhice, Lurdes e Queiroz se apaixonaram

Hoje considerados mestres em suas comunidades, encontraram o amor esculpindo a cultura dos povos do mar

Foto: Arquivo pessoal

A vida toda, Lurdes e Queiroz estiveram a menos de 100 quilômetros de distância, ambos criados entre a roça e o oceano, com olhos atentos e mãos esculpindo as culturas dos povos do mar. Lurdes criava sozinha os quatro filhos que pôs no mundo com as mãos enterradas nas areias coloridas extraídas das falésias do Morro Branco, fazendo desenhos em garrafinhas. Queiroz manejava coco e madeira para fazer pequenos pássaros e chaveiros depois de uma vida inteira dedicada à roça e a pesca no Cumbe, trabalhos essenciais para ver crescer os quatro filhos do primeiro casamento.

Calhou destes dois mestres - que viveram a vida toda separados num mesmo litoral, imersos em suas tradições - se encontrarem pela primeira vez dentro de um ônibus, enquanto viajavam por mais alguns quilômetros adiante para apresentarem sua arte no Povos do Mar, um evento que reúne todos os anos mais de 200 comunidades litorâneas de 25 municípios cearenses. 

Faz oito anos. Lurdes e Queiroz enxergaram ali um amor capaz de amenizar todo o temor que sentiam de perderem a si mesmos - e às suas personalidades - na velhice. “O amor, eu vou lhe dizer o que é”, professora ela. “É respeito, é tratar com consideração. É você estar sempre do lado da pessoa. Quem ama não maltrata e nem machuca, seja lá qual for a situação.”

Legenda: Faz oito anos. Lurdes e Queiroz enxergaram ali um amor capaz de amenizar todo o temor que sentiam de perderem a si mesmos
Foto: Arquivo pessoal

É como se a história dos dois estivesse escrita pelos búzios que vão e vêm com as ondas, repletas de coincidências que se encontrariam quando ambos chegassem à terceira idade. Lurdes, hoje com 54 anos, teve três homens e uma mulher e colocou o nome de todos eles iniciados em C. Queiroz, com 70, também teve uma mulher e três homens, cujos nomes também começam com C. “Até os nomes dos nossos filhos tinham que combinar”, brinca Lurdes.

Francisco da Silva Queiroz nasceu em 1952, no Cumbe, uma comunidade tradicional localizada a duas horas de Fortaleza. Ao longo da vida, viu o território ser engolido pelos viveiros de camarão e pelas usinas eólicas enquanto encurtava o espaço para fazer roça e para pescar. 

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Filho natural daquele chão e nada fã de cidade, aposentou-se da pesca e mergulhou no artesanato. “Aprendi a fazer eu mesmo desde rapazinho”, conta o mestre Queiroz, que ficou viúvo e tempos depois passou a sonhar com uma pessoa para viver. “Mas era muito difícil encontrar”, lembra.

O milagre veio com uma mulher que, segundo ele, “tem uma história comprida”. Maria de Lurdes Lima da Silva, 16 anos mais nova que ele, morou a vida toda em outro pedaço do litoral leste, o Morro Branco. Viu o marido deixá-la sozinha com os filhos para viver com outra mulher. “Foi aí que começou meu sofrimento. Criei os quatro sem ter ninguém pra me dar um pãozinho”, lembra.

Legenda: Lurdes criava sozinha os quatro filhos que pôs no mundo com as mãos enterradas nas areias coloridas extraídas das falésias do Morro Branco
Foto: Arquivo pessoal

Mas Lurdes não esmoreceu, mesmo sabendo que precisaria pedir até roupa emprestada para levar os filhos ao posto de saúde. Encontrou forças na Igreja Evangélica, onde conheceu um rapaz e decidiu casar de novo, mas logo viu que ele não era pra ela. “Pedi perdão a Deus e deixei ele”, conta. Desde então, quis se reencontrar com o amor, mas ficou com medo de se relacionar. Até aquele dia em que, na descida do ônibus, encontrou Mestre Queiroz.

Os dois ficaram conversando por telefone durante meses, até que ele precisou fazer uma cirurgia e a convidou para morar com ele, no Cumbe. “Decidi que ia embora e para o Morro Branco não voltava mais”, ela diz. Lá, mergulhou em outra cultura do mesmo litoral, desta vez distante do turismo que marcava sua antiga morada.

Trocou as areias coloridas pela madeira e outros materiais recicláveis com os quais faz pássaros e peixes. “Muita coisa aprendi com ele”, diz, referindo-se ao marido. Neste ano, mais uma vez eles se preparam para participar do Povos do Mar, que acontece de 20 a 24 de novembro no Sesc Iparana Hotel Ecológico.

Mestre Queiroz praticamente perdeu a visão de um olho e já não consegue trabalhar como antes, mas Mestre Lurdes decidiu ser um pouco também os seus olhos. Os dois fazem suas artes juntos, como dividem quase tudo. “Eu já era feliz, mas faltava uma pessoa para compartilhar a vida”, conta ela. "Moramos numa casinha humilde de tudo, mas cheia de amor. Escutamos juntos o canto dos pássaros. Todo dia, nos abraçamos e nos damos bom dia. Sou feliz porque Deus colocou ele na minha vida. Cuidamos um do outro." 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.

 

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