O que as garrafas de areia colorida dizem sobre a criatividade dos cearenses? Pesquisadora responde
A arte das garrafas de areia colorida surgiu há cerca de 70 anos na praia de Majorlândia, em Aracati, litoral leste do Ceará. É um ícone do turismo do Estado e ilustra bem a criatividade de nosso povo.
A pesquisadora carioca Tatiana de Sá Freire Ferreira estudou as comunidades que se dedicam a esse tipo de artesanato para sua dissertação de mestrado em Ciências (Geografia), apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O trabalho acadêmico, intitulado "Da paisagem ao território: a arte das garrafas de areia colorida e experiências de mapeamento social em Majorlândia/CE" (em PDF), mostra que o uso do território por uma população tradicional que sobrevive graças ao artesanato popular está estreitamente ligado aos recursos ambientais e à paisagem. O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFC) produziu um catálogo (em PDF) da Sala do Artista Popular sobre as garrafas de areia colorida de Majorlândia.
"Os desenhos das garrafas de areia colorida refletem paisagens do litoral do Nordeste brasileiro, carregadas de sentido, que contam a história de um povo que vive de uma atitude ligada intimamente ao meio ambiente envolvente, seja pela base da matéria-prima principal, seja pelo seu sentido cultural. Nessa arte, o próprio ambiente é desgastado e reconfigurado na forma de desenhos, e passa a se constituir em um nexo, um modo de vida, o principal meio de subsistência de um povo", observa Tatiana.
Há nomes técnicos para definir essa técnica: ciclogravura, silicografia, cericografia ou arenogravura, mas a pesquisadora evitou utilizar esses termos em sua tese, preferindo aproveitar a própria experiência dos artesãos de Marjorlândia na nomeação de sua atividade, ou seja, a "arte das garrafas de areia colorida". Não é uma exclusividade da famosa praia cearense. Em lugares desérticos no Oriente Médio, como em Petra, na Jordânia, também se encontram recipientes de vidro com desenhos de areia. Mas nada de praias e coqueiros, mas referências do local, como deserto e os camelos.
A pesquisadora carioca conheceu as garrafas de areia colorida em 2010, quando atuava como gestora de projetos no âmbito do Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural, que tinha como finalidade apoiar produtores de artesanato de tradição cultural, enfatizando seu enraizamento na cultura local e seu valor identitário.
"Neste lugar foi possível acompanhar e conhecer etapas da produção e comercialização do artesanato, além de verificar os métodos de extração de matéria-prima in loco, quando ficou visível a preocupação dos artesãos com os problemas relacionados à preservação do patrimônio paisagístico das dunas e falésias da região. Ao mesmo tempo em que a atividade artesanal é responsável pela denudação da superfície de aplainamento desta feição morfológica da paisagem, a atividade de extração mineral se converte em fonte de renda para algumas dezenas de artesãos que têm aí seu sustento fundamental", explica Tatiana.
Em 2013, ela contabilizou 28 artesãos em atividade de produção e venda de garrafas de areia colorida e procurou observar todas as fases do fazer artesanal, desde a extração da matéria-prima nas falésias, até a comercialização em Canoa Quebrada e a exportação por correio para lojas e compradores individuais de todo o Brasil. A influência dessa atividade ultrapassou os limites de Majorlândia e se estendeu até o estado vizinho do Rio Grande do Norte.
"O trecho de costa formado por dunas e falésias que se inicia na cidade de Fortaleza e se estende para sudeste até o Rio Grande do Norte, reúne algumas localidades - fundamentais na compreensão do fenômeno - onde a produção deste tipo de artesanato aparece com mais frequência nos roteiros turísticos da região: as praias de Morro Branco e Majorlândia, no Ceará, e de Tibau, no Rio Grande do Norte", situa Tatiana.
Mas como tudo começou? A pesquisadora descobriu o pioneirismo de Joana Carneiro Maia (1908-1978), conhecida por Dona Joana, matriarca de uma geração de artesãos especializados em preencher garrafinhas com areia colorida.
"O artesão Toinho conta que sua mãe, Dona Joana, quando foi morar em Majorlândia, vinda de Quixaba, se deparou com areias finas e de diversas cores na parte de cima das falésias. Para passar o tempo enquanto sofria com a saudade de um filho que trabalhava embarcado em navio do Lloyd Brasileiro, enchia garrafas de vidro transparente com camadas de areia colorida, formando desenhos geométricos. O filho explica que a ideia de sua mãe surgiu no dia em que uma garrafa tombou por acidente. No resultado da mistura das cores ela viu um desenho abstrato e passou a desenhar paisagens de motivos regionais, como por exemplo, mar com jangada, praia com banhistas, casinhas, coqueiros, dunas e falésias", relata a tese de mestrado.
A história oral conta que os visitantes da praia de Majorlândia passaram a comprar as garrafas de Dona Joana para levar de recordação das lindas paisagens do lugar.
"Observando-se o aumento nas vendas e o interesse por esse tipo de souvenir, mais moradores passaram a fazer as garrafinhas.Toinho aprendeu a fazer desenhos com maestria à mesma época que o artesão Edgar Freitas conheceu a técnica com Dona Joana, e ambos passaram a ensinar jovens e crianças da comunidade. Assim, todos os artesãos que vivem atualmente dessa arte foram aprendizes de Dona Joana e de seus descendentes, possuindo laços de consanguinidade ou não com ela, conforme pode ser visto na árvore genealógica de transmissão do saber dos artesãos de Majorlândia", detalha a pesquisadora.
A habilidade de separar a areia e compor desenhos de sua própria paisagem tem a ver com a criatividade. Tatiana destaca o saber popular da comunidade de Majorlândia de dominar a chamada "granulometria", o estudo da distribuição das dimensões dos grãos de um solo.
"Todos os artesãos que aparecem na genealogia extraem as areias coloridas da mesma jazida, em quantidades que variam de acordo com a produção de cada um. A escolha da área de extração se dá pelo tipo de sedimento disponível, que apresenta uma granulometria finíssima após ser pulverizado e peneirado, que foi percebida e apropriada pelos artesãos ao longo do desenvolvimento da técnica. Eles dizem que o material desta jazida é argiloso e que, de tão fino, passa a ser petrificado quando compactado nas garrafas de vidro. Está aí um dos segredos do acabamento e dos finos traços dos desenhos encontrados nas garrafas feitas pelos artesãos de Majorlândia", relata a pesquisadora.
Com as novas gerações de artesãos, os temas dos desenhos de areia também mudaram. Além da representação da paisagem, exploram-se também animais diversos da fauna das florestas brasileiras e do fundo do mar, reproduções fotográficas, logomarcas de clubes e empresas.
Nas suas conversas com os artesãos, Tatiana identificou padrões dos desenhos, símbolos que lhes conferem uma identidade cultural: o "tema de Majorlândia" é a praia com as jangadinhas, os coqueirinhos, as barraquinhas de palha. O "tema de Canoa" é o recanto e a enseada de dunas, a estrelinha, a lua e a estrela, as canoinhas dentro da volta e a igrejinha. O "tema de Quixaba" é a praia e as luzes das lanchas de pescaria no mar. Em Quixaba tem mais lanchas do que jangadas e as dunas são brancas, e não alaranjadas como as dunas e falésias de Majorlândia e Canoa.
"O saber e a técnica das garrafas de areia colorida são passados de uma geração para outra através da observação direta e da prática espontânea. Cada artesão entrevistado apontou uma ocasião de iniciação parecida, ocorrendo geralmente na infância, através da observação dos mais velhos trabalhando no artesanato. Durante a estadia em campo foi possível observar crianças aprendendo de maneira espontânea, como algumas meninas com o artesão Nelito e o pequeno João com o artesão Alberto (Dedé Pastor)", recorda.
A beleza das garrafas de areia parece evocar um modo de vida simples, conectado com a natureza e com a história desse território do litoral leste do Ceará.
"Cabe citar o desenvolvimento da Vila de Canoa Quebrada, que passou um por processo de crescimento vertiginoso a partir do final da década de 1970 com a descoberta da vila pelos hippies, pessoas com um estilo de vida próprio, voltado para liberdade individual e avesso à sociedade de consumo. Este estilo de vida abraça a ideia de viajar para diversos lugares do mundo, para conhecer outras culturas, contemplar a natureza e conseguir algum recurso financeiro, muitas vezes, através da venda de artesanato. São também conhecidos como mochileiros ou pessoas da estrada", ressalta Tatiana.
Naquela época não havia como chegar em Canoa Quebrada de carro, lembra a pesquisadora. Para chegar lá, caminhava-se a pé pelas dunas ou em carroças puxadas por cavalos, hospedava-se nas casas dos pescadores nativos, onde havia shows de forró e danças tradicionais. "Além do recorte do litoral que conforma um recanto de águas quentes e calmas, esta atmosfera propiciava a liberdade e o contato com a natureza que tanto atraíam os adeptos do estilo de vida dos hippies", observa a pesquisadora.
A criatividade desse ofício lida também o reuso do vidro. "A confecção das tradicionais garrafinhas é uma etapa fascinante deste artesanato. A maior parte dos vidros observados eram garrafas, que seriam descartadas por terceiros, e que foram reutilizadas após serem bem lavadas, limpas e postas para secar expostas ao sol e ao vento. Há diferentes tipos e tamanhos de garrafas. As de leite de coco são as mais comuns e obtidas junto aos comerciantes de Canoa Quebrada, às vezes de graça ou por uma pequena taxa em centavos. Estes comerciantes, donos de pousadas e restaurantes, fornecem também garrafas variadas de vidro transparente: de cachaça, vinho, azeite, whisky, e outras. Alguns artesãos, como Lídio e Tonico, fazem peças também em vidros de perfume, que possui um orifício de tamanho mais reduzido, o que torna a tarefa mais trabalhosa", descreve Tatiana.
Atualmente são muito utilizados pequenos vidros de medicamentos obtidos no hospital público de Aracati, copos e taças de diversos tamanhos e formatos, tubos de ensaio apoiados em suportes de arame ou madeira, e até globos de luz.
"Segundo os próprios artesãos, os turistas gostam das tradicionais garrafas, mas se encantam também em levar os souvenires que remetem à função inicial do objeto, assim, levam potes de comida de bebê para mães e copos de bebidas alcóolicas para os bons bebedores. Ao ser figurativa e reutilizar objetos de uso doméstico, que assumem uma função decorativa, pode-se pensar se essa arte se aproxima a uma estética kitsch", conta a pesquisadora.
O modo de produção das garrafas de areia colorida também foi estudada. "Alguns gostam de trabalhar sozinhos e isolados em algum cômodo de sua residência, que seja bem ventilado, muitas vezes com a televisão ligada, enquanto outros preferem trabalhar em dupla ou em pequenos grupos, acompanhado de alguém para prosear. Há os que trabalham na varanda de suas casas e outros em barracas/restaurantes de praia, com grande fluxo turístico, onde turistas podem sentar ao seu lado para a observação do fazer artesanal. O importante é existir uma mesa que sirva de apoio para que os vidros e os potes de plástico, que guardam a areia, não balancem, e onde seus instrumentos possam ser dispostos com precisão", descreve.
A escolha do que eternizar na areia dentro do vidro reflete o que os artesãos valorizam em seu universo particular e seu estado de espírito perante a vida. Para ilustrar essa ideia, Tatiana cita as palavras do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935).
"Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser 'Há sol nos meus pensamentos', ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes".
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