O que está por trás da economia de quarteirões da rua Castro e Silva?
Ao longo do 1,3 quilômetro da rua Castro e Silva, no Centro de Fortaleza, o cortejo histórico revela uma dinâmica urbana singular, delineada por histórias, intenso fluxo de pessoas e um comércio distribuído em quarteirões especializados, que atraem consumidores ainda fiéis ao hábito de “bater perna” em busca de artigos para festas, moda, artesanato cearense e cultura.
Integralmente inserida no Centro da Capital, a rua está entre as mais antigas de Fortaleza, com registros que remontam ao século XIX. Embora o fluxo cotidiano de veículos e pedestres costume ocorrer no sentido inverso, oficialmente a Castro e Silva começa em frente à Catedral Metropolitana e termina no portão principal do Cemitério São João Batista.
Ao longo do percurso, a via apresenta características econômicas distintas das demais ruas do Centro. O comércio se organiza em quarteirões voltados a serviços específicos, sem a presença de grandes marcas nacionais.
Os diferenciais da Castro e Silva também estão na sua inserção histórica e cultural. Além de funcionar como um corredor ativo de comércio e serviços, a rua abriga a Praça da Estação, que reúne o Complexo Cultural Estação das Artes, e integra o Centro Histórico de uma Fortaleza com quase três séculos de formação.
A reportagem percorreu a Castro e Silva durante os preparativos para as festas de fim de ano, período em que o movimento se intensifica. O cenário mescla o vai e vem de trabalhadores que utilizam a via como rota cotidiana e de consumidores atraídos pela diversidade do comércio local.
Este conteúdo é o único sobre uma rua — o último de 2025 — e integra uma série de matérias sobre as transformações econômicas em vias de Fortaleza. Antes da Castro e Silva, foram publicadas reportagens sobre as avenidas Augusto dos Anjos, Barão de Studart, Bezerra de Menezes, Frei Cirilo, Godofredo Maciel, Gomes de Matos, José Bastos, Monsenhor Tabosa, Mozart Lucena e Sargento Hermínio.
Economia de quarteirões
Não é exagero dizer que se encontra de tudo na rua. A diferença para outras vias de Fortaleza é de que, nessa, tudo está concentrado nos diferentes quarteirões em formato de xadrez, característicos do planejamento arquitetônico e urbanístico do Centro.
Da rua Padre Mororó, o fim da via, até o começo, na avenida Alberto Nepomuceno, são 11 ruas e avenidas entrecortadas pela Castro e Silva. Nos quarteirões que estão no logradouro, as especialidades que se multiplicam com mais destaque são:
- Oficinas mecânicas e sucatas (entre as ruas Padre Mororó, Tereza Cristina e Princesa Isabel);
- Bares e restaurantes (entre avenida Imperador e rua 24 de Maio);
- Artesanato, ferragens e itens para pesca (entre avenida Tristão Gonçalves e rua 24 de Maio);
- Moda no atacado e equipamentos culturais (entre ruas 24 de Maio e General Sampaio);
- Artigos para festas (entre ruas General Sampaio, Senador Pompeu e Barão do Rio Branco);
- Cartórios e edifícios de serviços (entre ruas Barão do Rio Branco, Major Facundo e Floriano Peixoto);
- Moda no varejo e no atacado (entre as ruas Floriano Peixoto, General Bezerril e a avenida Alberto Nepomuceno).
Essa disposição ordenada também é atestada pelos números da Junta Comercial do Estado do Ceará (Jucec). A via oficialmente conta com 353 empresas ativas.
Conforme informações disponibilizadas pela Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae), são 292 segmentos em funcionamento na rua das mais variadas áreas. Vai de serviço de pulverização e controle de pragas agrícolas, passando por tabacarias, hotéis, chaveiros, cabeleireiros até serviços de funerária.
Estão presentes também o comércio varejista de artigos do vestuário e acessórios, comércio atacadista de produtos alimentícios em geral, atividades de apoio a agricultura e gestão e manutenção de cemitérios.
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Moda popular em evidência
Um dos comerciantes localizados no início oficial da via é Flávio Moreira. Ele chegou ao local no início da década de 2010 para vender roupas aos pés da Catedral Metropolitana de Fortaleza. Na região, concentram-se diversos empreendimentos do setor de moda, tanto no varejo quanto no atacado.
Na Castro e Silva, predominam lojas de roupas indianas. Segundo Flávio, a rua é parte importante de um polo de confecção estruturado na região, ainda que sem uma denominação formal.
"Quando cheguei, bem no início, as coisas eram um pouco mais difíceis. Pouco a pouco, fui conquistando meu espaço não só para mim, mas para os meus funcionários e para quem produz mercadoria também. As roupas indianas são uma tendência. Eles estão mais à frente em modelos e também em aviamentos, roupas mais elaboradas", diz.
Essas lojas perpassam por ruas dos arredores, como a General Bezerril, Sobral e a Avenida Alberto Nepomuceno, além do Buraco da Gia, tradicional polo de moda popular do Centro da cidade.
É na região que acontece, duas vezes por semana, a Feira da Madrugada de Fortaleza, que recebe milhares de compradores de todo o País, entre sacoleiros e demais clientes.
Isso aqui é como se fosse uma engrenagem. O cliente da feira compra comigo, meu cliente vem pela feira também. Aqui depende muito um do outro, ninguém está sozinho. As lojas não disputam cliente, só a concorrência com o produto. Estamos todos somando para chegar ao mesmo resultado".
Entre dezembro e janeiro, Flávio espera um movimento crescente, ainda que o fluxo de clientes venha caindo como em outras regiões. Desde que montou a loja na rua, há 15 anos, o faturamento vem gradativamente reduzindo.
"Meu faturamento vem caindo, 10%, 15%. Se eu ganhar o mesmo que faturei no ano passado, a despesa não é a mesma, tudo aumentou. Em virtude das vendas online, das ofertas e dos shoppings, estamos dividindo a fatia, em que todos pegam um pouco e vai dependendo como cada um trabalha e fazendo o diferencial", considera.
Castro e Silva mantém forte a tradição de 'bater perna'
Caminhando ainda um pouco mais, seja na rua ou nas esquinas, se avolumam as lojas de festas. São empreendimentos exclusivos para a venda de bombons, decoração, descartáveis e arte em madeira, que fazem com que Castro e Silva ainda resista como o logradouro oficial das celebrações no Centro da Cidade.
Uma das lojas é chefiada por Francisca Sales. Atuando no local também desde 2010, ela trabalha com artigos para festa em geral, mas o forte mesmo, de acordo com ela, é a venda de materiais de decoração personalizados em madeira.
Aqui na Castro e Silva, o cliente vem em busca de encontrar uma variedade para festas, e encontra: tem descartáveis, MDF, bombons. Tudo se concentra aqui. Compro dos meus vizinhos também. São meus concorrentes, mas todo mundo tem que se unir para a união fazer a força".
Ainda que haja lojas de médio porte, predominam no segmento de festas os empreendimentos de pequeno porte, que vendem todos os tipos de mercadorias. Francisca aponta que ela, além de comerciante, é cliente dos vizinhos de quarteirão.
Em tempos de e-commerce cada vez mais presente no faturamento de lojistas, Francisca Sales observa que uma fatia importante dos consumidores migrou para compras nas redes sociais, assim como parte das vendas da sua loja, mas que permanece pulsante o fluxo de clientes nas calçadas da Castro e Silva.
"Caiu o movimento, mas ainda é o forte da Castro e Silva. No resto do ano, aos sábados, se concentram uma quantidade maior de clientes, mas no final de ano e datas comemorativas, como Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia dos Namorados, é muita gente todos os dias", relata Francisca Sales.
Dos ferros à palha: artesanato popular legitimamente cearense atrai turistas e fortalezenses
Avançando rumo à metade da rua, é possível observar o Complexo Cultural Estação das Artes no início do trecho duplicado da via. Do outro lado, o futuro Estação Fashion, empreendimento focado em moda no atacado. Um pouco mais adiante, estão comerciantes tradicionais que resistem em meio às mudanças acontecidas nos últimos anos.
Quem ressalta a questão é Miguel Arcanjo, dono de uma loja de ferragens na rua Castro e Silva desde 2000. Nesse período, ele viu a desativação da Estação João Felipe, em 2014, e do Terminal da Praça da Estação, em 2019. Todo o local deu lugar ao complexo cultural e a uma ampla praça.
A expectativa dele é que a situação melhore com a inauguração do Estação Fashion, que já teve uma parte inaugurada e terá o shopping concluído no segundo semestre de 2026.
"Aqui era bom o movimento, mas tiraram os ônibus da praça e a estação de trem, e o fluxo diminuiu muito. Meu faturamento caiu mais da metade. A gente vendia mais para o pessoal do interior do Ceará, que vinha fazer compras. A obra piorou a situação: o pessoal só entra na Estação, mas não vem para a banda de cá. O fluxo de gente aqui acabou", lamenta Miguel Arcanjo.
O desejo é o mesmo de Francisco de Assis. O comerciante chegou em 2020, pouco antes da pandemia, para vender artigos de palha de carnaúba de Aracati. Com a reabertura, pouco a pouco, a loja dele tem reaquecendo as vendas.
"Vendemos mais coisas de palha de carnaúba, que vem do Aracati. O movimento está melhorando. Aqui é um local bom de trabalhar. Vêm muitos turistas, pessoas daqui. Durante as férias, aparece mais gente de fora", comenta Francisco de Assis.
O local fica bastante movimentado tanto com moradores locais quanto com turistas. Uma delas é a arquiteta Gabriela Crivellari, de Bauru, no interior de São Paulo, que veio pela primeira vez à Capital cearense e se encantou com o artesanato local.
"Esse comércio traz essa parte mais cultural. Pretendo voltar outras vezes. Essa parte regional é sempre única, não vai ter no interior de São Paulo, e mesmo que tenha, a gente não vai saber a história, como que foi produzido. Também ajuda os moradores daqui, e por mim levava um monte de coisa, só não cabe no avião", opina.
Como chegou já depois do encerramento das operações do terminal e da estação para passageiros, ele declara não ter percebido redução no movimento em virtude disso, mas espera, além do shopping, a entrega da Linha Leste do Metrofor.
Rua termina nos portões do Cemitério São João Batista
Os olhos atentos de Antônio Luiz Sobrinho, segurança do Cemitério São João Batista desde 1986, veem a economia que passa todos os dias pelo portão, que já fica na rua Padre Mororó: dos ônibus e das estações finais Moura Brasil (Linha Oeste do Metrofor) e Chico da Silva (Linha Sul do Metrofor).
Antônio é um dos funcionários que trabalham no fim da rua Castro e Silva. Do portão do local onde atua, ele observa o início invertido da via, o trânsito constante de carros e pedestres, enquanto recebe visitantes do cemitério mais tradicional e antigo da Capital ainda em funcionamento.
Morador do bairro Canindezinho, em Fortaleza, Antônio assume o posto de trabalho orgulhoso e acompanhado de outros funcionários também antigos do cemitério. Segundo ele, a economia da área se torna mais movimentada durante a realização de velórios e, principalmente, em datas como o Dia de Finados, o Dia das Mães e o Dia dos Pais.
Eu sou feliz. Gosto daqui, trabalho dia sim, dia não, o ruim seria se eu trabalhasse todo dia. Já vi muitas histórias: umas verdadeiras, outras mentirosas. Já vi pessoa chegar, pedir ajuda naquele desespero grande, perder um ente querido. Não é fácil perder um indivíduo, a convivência de muitos anos. Mas é a vida".
O local é administrado pela Santa Casa de Misericórdia, onde o segurança trabalhou por 10 anos antes de, em 1986, chegar ao cemitério para desempenhar a função e compartilhar várias das histórias curiosas que habitam e pairam no lugar.
"Diziam que aqui tinha uma mulher-serpente, que saía daqui e ia parar dentro do mar, mas isso é uma lenda", conta.
"Toda vida foi movimentada essa rua, aquele entra e sai dia e noite. Tem pessoas que querem visitar à noite, mas não podemos deixar. Não quero ver esse movimento baixar ou parar", conta Antônio Luiz.
As narrativas de uma rua comercialmente singular
A efervescência mercantil que permeia a Castro e Silva cria uma miscelânea que mistura história, economia e cultura a cada passo. É o que considera Alexandre Queiroz Pereira, professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Observatório das Metrópoles.
"A rua está localizada em uma área onde a cidade foi incorporando dinâmicas ao longo do tempo. Por ser longa, ela estabelece uma série de lojas ao longo do trajeto, o que permitindo a consolidação de uma série de quarteirões especializados em relação a produtos específicos", argumenta.
Queiroz também ressalta que a Castro e Silva enfrenta problemas típicos do Centro da cidade, como desafios de infraestrutura e segurança pública. Ainda assim, a via concentra um fluxo fundamental para o desenvolvimento de atividades econômicas.
"Essa rua especificamente, à medida em que serve também como um corredor de distribuição dos fluxos, permite criar entroncamento. Na lógica da economia urbana, onde há concentração e fluxo, ativa a possibilidade de pontos comerciais pela facilidade de mobilidade e de localização desses estabelecimentos", define o especialista.
Cláudia Buhamra, professora de Marketing da UFC, enfatiza que a Castro e Silva é uma representação fidedigna de "a união faz a força", além de estar situada em uma região rodeada pelo Centro Histórico de Fortaleza.
"Além do acesso por meio de transportes públicos e da variedade de negócios, a rua entrega a proximidade de pontos turísticos como Catedral, Mercado Central, Pinacoteca e Emcetur. A atração de vizinhança é muito forte, na qual empresas pequenas ganham força por meio da proximidade a outros negócios, ainda que sejam concorrentes", avalia.
A especialista ainda destaca a a combinação entre varejo e atacado na região da Castro e Silva, fator que, segundo ela, contribui para atrair o público à rua.
"Outra contribuição é unir o público residente de Fortaleza e que trabalha na região com o público turista, permitindo a estes o convívio com a realidade do cotidiano da cidade. É história, a variedade, a flexibilidade nas formas de venda", pondera.
Os desafios da rua Castro e Silva
Os números revelam dados interessantes sobre a via, que tem um tráfego pungente e é uma das principais rotas desde muito antes de Fortaleza se tornar a maior cidade do Norte-Nordeste brasileiro.
Para Christian Avesque, especialista em varejo e professor da Faculdade CDL, contudo, vai muito além simplesmente dos dados a contribuição que a Castro e Silva tem na história da cidade.
"Essa grande vocação, que é realmente múltipla, deveria ficar somente na parte cultural, com os investimentos em requalificação e no comércio popular. A solução para o Centro é um comércio voltado ao regionalismo. Se virar tudo loja com produtos a R$ 10, acaba com esse contexto cultural e bucólico que tem lá", registra.
O especialista critica o que chama de 'comércio de baixo valor agregado'. Apesar de admitir a importância para esse tipo de empreendimento tanto para a economia quanto para a geração de empregos, Avesque aponta que é preciso um trabalho estruturado que potencialize as raízes históricas e econômicas no logradouro da Capital.
"Se não houver um investimento forte em ocupar de forma qualificada o Centro da cidade à noite, não tem uma ocupação eficaz por metro quadrado. Isso abre espaço para esses comércios informais, de preço baixo. Como a maioria das pessoas tem renda muito baixa, procuram o Centro para ter acesso a esses itens", explica.
Para Alexandre Queiroz, a Castro e Silva, mesmo com o desenvolvimento de outras áreas da cidade e até de municípios vizinhos, ainda atrai o público pela convergência de fluxo e a capacidade histórica de serviços especializados.
"O Centro original ainda é uma área muito valorizada, com dinâmicas e produtos com preços e variedades interessantes que atraem a população local, da região metropolitana e de municípios mais distantes. Por toda a convergência na infraestrutura, o Centro permite que populações variadas continuem frequentando. O Centro original de Fortaleza se transformou no Centro da periferia, em um espaço de comércio popular, dedicado ao consumo de rua, tanto nas lojas convencionais, como no comércio informal", conta.
Como revitalizar economicamente o Centro de uma Fortaleza plural
Além de questões como infraestrutura, em especial nas calçadas, ocupadas por comerciantes informais ou mercadorias de lojas formais, o que dificulta o trânsito dos pedestres, a Castro e Silva tem as particularidades do Centro como pontos importantes.
Os três especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em apontar que a rua precisa receber atenção, se projetar para os equipamentos culturais que a circundam e aproveitar as potencialidades para buscar desenvolver atividades de maior valor agregado — e não somente econômico neste caso.
"O Centro da cidade traz a história, o berço da cidade, ao mesmo tempo em que apresenta a evolução do comércio convivendo lado a lado. É exatamente a variedade que faz da Castro e Silva um shopping popular a céu aberto", defende Cláudia Buhamra.
Para Alexandre Queiroz, a simbologia da rua reforça sua relevância urbana. "Ao ligar a catedral ao cemitério, torna-se simbólica, porque ela atravessa o Centro da cidade praticamente em toda a sua dimensão longitudinal", expõe Alexandre Queiroz.
Já Avesque aponta que o desenvolvimento de áreas do Centro de Fortaleza deve priorizar a criação de um corredor cultural, antropológico e de entretenimento, para qualificar a região e reduzir a dependência de comércios de baixo valor agregado.
"O Centro não pode ser apenas comércio. Ele tem que ser história, tem que ser também narrativa", finaliza Avesque.