Popular para quem?

Ir ao estádio está cada vez mais difícil. Preços altos, violência e outros fatores têm mudado o perfil do torcedor local

O Siena preto entra apressado no estacionamento privado do Castelão. São 7h20 da noite de uma terça-feira e o jogo entre Ceará e Guaratinguetá pela Série B está marcado para começar às 7h30. Não há problemas para encontrar vagas. O gigante da Boa Vista está longe de ficar lotado. Apenas 7% da capacidade do estádio está ocupada.

O casal de bancários, Heitor e Katiana Fiúza, descem do carro com os dois filhos: Pedro, 6, e João, 2. Todos uniformizados nas cores do Vovô para ver o "Xilalá", como chama o pequeno Joãozinho. A bolsa da mãe é revistada na entrada. "Minha filha, aí só tem lanche e fralda", brinca Katiana s com a funcionária do consórcio que administra a Arena Castelão, futura sede de seis jogos da Copa do Mundo de 2014 no Brasil.

Na bilheteria, pagam R$ 30 pelo ingresso de Katiana que não é sócio-torcedora como Heitor. Foram R$ 10 para o veículo ficar protegido. R$ 20 de guloseimas para os meninos e outros R$ 30 de sanduíche e refrigerante que serão gastos no intervalo.

Ainda do lado de fora do estádio, ouvem o hino nacional. Apertam o passo para ver o time do Ceará mais uma vez em campo. Uma diversão que custa para família uma média de R$ 150 por partida, sem falar o valor mensal pago por Heitor como sócio-torcedor do clube. "Futebol hoje é para rico", critica o alvinegro, que coloca o gastos com o clube de coração no orçamento mensal familiar. "Trazê-los aqui é uma diversão. Ponho como lazer na planilha. Pena que já penso em desistir de vir ao estádio", revela Heitor.

Afastamento

Heitor faz parte de um perfil de torcedor que compra camisa e todo tipo de souvenir (oficial ou não). Adere ao programa de sócio desde 2007 e raramente perde uma partida na Capital. Porém a violência, os altos custos para assistir aos jogos no estádio e a falta de ações para oferecer um ambiente de lazer nos jogos estão fazendo com que ele mude de ideia. "Pagava o sócio-torcedor da Katiana. Não renovei. Ninguém do Ceará foi capaz de ligar para perguntar o porquê. Só fiquei sabendo ontem que há vários tipos de plano. Falta divulgação. O marketing ainda é muito amador. Falta uma atrativo para o torcedor vir ao estádio".

Ele ainda acredita ser na arquibancada a melhor forma de se fazer um torcedor, por isso insiste em levar os filhos aos jogos do Vovô. "Quando meu pai me trazia, não tinha perigo de um jogo do Ceará dar menos que 10 mil pagantes. Hoje, deu pouco mais de 5 mil e ainda tem os sócios dentro disso", lamenta.

Ao lado, o casal de amigos, o contador Giulliano Mesquita e a bancária Débora Mesquita, com a pequena Giullia, 2 anos, corroboram. "Vir ao jogo do Ceará já foi minha primeira opção de lazer. Hoje, é a segunda", conta Giulliano. "Adoro futebol. Mas é caro e perigoso", diz Débora.

Presidente Vargas

No dia seguinte, Fortaleza e Rio Branco jogam no Presidente Vargas. O público é superior, mais de 7 mil pagantes, mas também poderia ser maior na opinião de três torcedores que costumam juntos ir a todos os jogos do Leão. Para Rennan Frota, Rodrigo Castro e José Carlos Costa, os mesmos motivos são apontados como distanciamento da torcida. "Acho que deveriam abrir um estudo de caso para tentar pelo menos a médio prazo. O clube deveria ser mais participativo, mais solidário com a torcida, intervindo na questões dos preços cobrados, preços abusivos nos estádios", reflete o jornalista Rodrigo Castro, que gasta em torno de R$ 40 por jogo e economiza R$ 60 por mês em ingressos por ser sócio-torcedor.

Para o corretor de imóveis, José Carlos, que frequenta o estádio há 40 anos, falta democratizar o ambiente como se fazia antes. "Deveria haver um movimento dos próprios clubes em prol das classes mais pobres. Entre 1974 e 1980, tínhamos três seguimentos dentro do estádio".

Momento dos times

Segundo Costa, os times também precisam estar numa boa fase para motivar a torcida. "Como o futebol é uma fábrica de emoções, o que mais afasta a torcida, aliado a esses problemas financeiros é o próprio time, que às vezes não está rendendo bem. Tanto Ceará como o Fortaleza também causam essa dispersão do torcedor", considera. Ele ainda é do tempo que o torcedor mais humilde tinha condições de ir ao estádio. "É um esporte popular. Poucos não sustentam um time de futebol", acredita.

No próximo domingo, a reportagem trará o posicionamento dos clubes e mais exemplos do novo perfil de torcedores locais.

ANÁLISE

Dono das próprias vontades

Pery Negreiros
Editor

No novo ambiente do futebol, jogadores são verdadeiras máquinas na hora de realizar seus ofícios. Os esquemas táticos há muito abandonaram o lendário WM. Os gramados, pelo menos nos grandes centros, melhoraram consideravelmente e as transmissões pela TV acompanharam as mudanças, com verdadeiros shows de pura tecnologia. Podemos dizer que houve uma evolução. Bom, mas ela poderia ser completa se a cabeça de alguns dirigentes tivesse acompanhado o ritmo das mudanças.

Antigamente, o ato de ir ao estádio era motivado apenas pela paixão. Não havia razoabilidade ao optar por uma tarde-noite no PV ou no Castelão.

Hoje, com a violência nas ruas e as TVs por assinatura oferecendo uma alternativa, o torcedor passa a agir mais guiado pela razão. E chegamos ao ponto nevrálgico: agora, ele é o dono de suas próprias vontades. Pode exigir o mínimo direito de qualquer consumidor comum, que é ser (e muito) bem tratado.

E é pensando nessa nova condição, que o Diário do Nordeste vai abordar, nos próximos domingos, os temas concernentes ao novo jeito de torcer. Qual o perfil desse consumidor no Século 21? Mudou o relacionamento com sua paixão? Que desafios podem ainda surgir para os homens de marketing dos clubes cearenses? As respostas, não temos a pretensão de responder. Mas a discussão se faz urgente para que o futebol local não perca a passada.

Falta gestão profissional nos principais clubes do Estado

Nos últimos 20, 30 ou 40 anos, o futebol mudou bastante. A relação dessa modalidade esportiva com o público também. Uma nova geração de dirigentes assumiu os clubes locais, mas será que a mentalidade desses gestores é diferente da dos que comandavam o "pebol" cearense décadas atrás? Para dois dos maiores especialistas do esporte no Ceará, a resposta é não. E por isso mesmo o torcedor tem se afastado do seu time de coração nos estádios de futebol.

Na opinião do jornalista e autor do site Verminosos por Futebol, Rafael Luís Azevedo, os dirigentes dos grandes times do Estado não acompanharam a evolução da relação de consumo entre torcedor e clube. "Não viram que, hoje, o futebol é um produto, e, como tal, tem concorrentes. Existem, atualmente, diversas opções de lazer. O dirigente precisa saber que tem de convencer o cliente a comprar o seu produto. Porém, ainda acham que o torcedor tem obrigação de consumir. Não é assim", diz.

Para o jornalista, as ações de marketing dos clubes estaduais não são eficientes. "É um ferramenta que está sendo aproveitada de forma rasteira. Nunca os clubes daqui fizeram uma pesquisa, como toda empresa tem de fazer, para conhecer o seu torcedor. É feito no achismo".

O comentarista da Rádio Verdes Mares e TV Diário, Wilton Bezerra, concorda com o colega de profissão. Segundo ele, os clubes precisam sair na inércia de pensamento pequeno de apenas se manter onde estão. "De uns tempos para cá, nossos dirigentes perderam a ambição. Entramos numa faixa perigosa do conformismo. Falta uma gestão mais profissional para se pensar o futebol cearense", analisa.

Várias razões

Wilton acredita que uma junção de fatores colabora para o afastamento do torcedor do estádio. O dirigente precisa entender que torcedor a gente conquista todo dia. É igual a mulher da gente. Senão levam embora", brinca.

Segundo ele, a violência; os horários de jogos, adequados para TV, mas ruins para quem vai ao estádio; e o tratamento "horrível" ao consumidor que paga isso tudo são as razões da evasão. "Até que se prove o contrário, o torcedor é quem mantém o time. Ou estou errado? ", instiga.


ILO SANTIAGO JR./
EDUARDO Buchholz
Subeditor/ Repórter