Trabalhar 10 horas por dia, dormir outras 4 e tentar nas demais manter-se firme para não deixar de ir à escola de segunda a sábado. Isso quando ainda tinha entre 18 e 19 anos. Em uma fase onde inúmeras são as pressões e na qual para muitos jovens ou se consegue uma atividade remunerada ou não há como sobreviver. A trajetória do jovem cearense Marcos Antônio do Nascimento Gomes, de 22 anos, morador de Fortaleza, que durante a vida escolar inteira foi aluno da rede pública, é exatamente essa. 

Mas ela não se resume a dureza e queixas. Marcos, ainda que em situação desfavorável e ilustrando a dura realidade que inúmeras pesquisas e levantamentos, incluindo os do próprio Ministério da Educação (MEC), evidenciam, de obstáculos que fazem a juventude pobre deixar a escola, rumou na contracorrente. 

A trajetória, infelizmente, foi cheia de sacrifícios e barreiras, mas ele conseguiu - alinhando a própria vontade com um suporte necessário e determinante da escola - terminar o ensino fundamental, o médio, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2023 e, no final daquele ano, ser aprovado em 2 instituições de ensino superior. Aos poucos, a vida tem mudado. 

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Legenda: Marcos foi aluno da Escola Municipal Frei Lauro Schwarte e da Escola Dr. César Cals
Foto: Davi Rocha

O Diário do Nordeste publica em 2025 a quarta edição do projeto Terra de Sabidos, que neste ano tem como foco o “destino universidade”. O especial percorre Fortaleza e cidades do interior como Itarema, Ipueiras e Granjeiro, e conta experiências de egressos de escolas públicas do Ceará que acessaram a universidade, seja via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou Programa Universidade para Todos (Prouni). As experiências apontam quão desafiantes, mas também recompensantes, têm sido as oportunidades que abrem portas e alteram a vida dos jovens e de quem os cerca. 

Marcos foi aluno de escola pública em Fortaleza tanto no fundamental, na Escola Municipal Frei Lauro Schwarte, no bairro Farias Brito, unidade sob a gestão da Prefeitura de Fortaleza, quanto no ensino médio, na Escola Dr. César Cals, da rede estadual, no mesmo bairro.

De lá, partiu para ingressar no ensino superior e optou por cursar em uma universidade particular com bolsa de 100% do Programa Universidade para Todos (Prouni), do Governo Federal, de modo que todos os custos da graduação feita na instituição privada são bancados pelo poder público.

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Ele é um dos inúmeros brasileiros que precisou conciliar estudo e trabalho, e ainda jovem, teve que experimentar a resiliência para não deixar para trás um processo tão definidor de oportunidades como a conclusão da formação escolar.

Marcos concluiu em 2023, e naquele ano, de acordo com dados do Censo Escolar, no Brasil, o ensino médio foi justamente a etapa com maior taxa de evasão, com 5,9% do público desta idade deixando a escola e não renovando a matrícula no ano seguinte. Entre os jovens do sexo masculino, essa taxa era ainda maior, de 7,3%. Marcos não amplificou essa estatística. 

Pelo contrário, naquele ano, Marcos e outras dezenas de jovens pobres oriundos da rede pública não “ficaram pelo caminho”, mas sim alcançaram a tão esperada “vaga na universidade”. Só a Escola César Cals, em 2023, aprovou mais de 100 alunos para ingresso na universidade, sejam em instituições públicas, via Sistema de Seleção Unificada (Sisu), ou em unidades particulares por meio do Prouni. 

Hoje, a vida segue um pouco mais tranquila. Desde o início de 2024, ele cursa Tecnologia da Informação em uma universidade privada cujo modelo é de Educação a Distância, com sede presencial em Fortaleza. “É desafiador. São aulas gravadas. Tenho que correr atrás em relação a cursos, vídeos, materiais. Cada semestre são 10 disciplinas, divididas em módulos. É bem pesado. Mas tenho aproveitado”, relata o jovem universitário.

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Legenda: Marcos sempre teve afinidade com as áreas de tecnologia e matemática
Foto: Davi Rocha

Quando tentou o Enem, ele tinha dois desejos: cursar Matemática ou Tecnologia da Informação. A nota “não deu pra entrar em nenhuma universidade como UFC ou Uece”, relembra ele. Mas ele passou em Matemática no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), em Caucaia, e em TI na universidade privada. Optou pela segunda. 

Na trajetória, ainda falta dinheiro para comprar um computador. Por enquanto, as aulas são acompanhadas no celular. “Tá um pouco complicado conseguir um notebook", acrescenta, e ele segue trabalhando, ganhando um salário mínimo, agora em outro local, distinto do que ele atuava quando ainda estava na escola. 

“Tenho estudado Tecnologia da Informação e o que mais gosto é análise de rede, relações com as redes sociais. Penso em focar e no futuro quero terminar (a faculdade) e conseguir abrir a minha empresa”, destaca.  

Imagem do Terra de Sabidos

Necessidade de trabalhar

No Ceará, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) na área da Educação, divulgada em junho, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 27,5% da população cearense com 18 a 24 anos estava estudando, seja na escola ou na universidade. Os demais estavam fora desse processo de estudo. E um dos agravantes nesse cenário, tal qual no percurso de Marcos, é a necessidade de conciliar os estudos com o trabalho. 

Na trajetória do jovem que agora é universitário, um dos pontos de virada foi aos 14 anos, ainda no ensino fundamental, quando os pais se separaram. Naquela época, conta ele, morava com os  pais e os 6 irmãos em uma casa no Parque Araxá. “Eu tinha minha estrutura completa”, relembra.

Depois, a mãe foi acometida por um problema de saúde mental, optou por voltar para o interior e fazer o tratamento junto aos avós de Marcos, na cidade de Monsenhor Tabosa. 

Eu precisei ir atrás de emprego, mudar totalmente a minha história em relação aos desafios da vida, do cotidiano. Minha mãe teve crise de depressão e decidiu ir morar com o pai dela. E desde então, eu tô na luta. 
Marcos Antônio do Nascimento Gomes
Universitário

A família se desmembrou. Os filhos foram morar em outras residências, separados do pai em Fortaleza. A necessidade de ter alguma renda começou a se manifestar para Marcos e, no Ensino Médio, ele ingressou na Escola Dr César Cals, justamente, quando a pandemia de Covid já havia se abatido sobre o mundo. 

Assim, os estudos, de modo semelhante a agora - guardadas as devidas proporções - precisavam ser uma parte remoto e uma parte presencial. Desde então, divide a casa com dois irmãos e uma cunhada. 

“Lembro que meu gosto pelo estudo foi no 5º ano. Muito na área de Matemática. Gostava muito de número e almejava cursar Matemática e, depois de um tempo, eu comecei a gostar também de tecnologia, que é o que eu estou cursando”, conta.

No primeiro ano do Ensino Médio, ele já estava trabalhando. “Tinha as aulas de manhã e de tarde eu trabalhava numa lanchonete da minha tia, nas proximidades da Bezerra de Menezes. Lá ajudava servindo lanches”, relembra. 

Mas, foi na metade do 2º ano que ele migrou para um trabalho mais pesado. Passou a atuar em uma hamburgueria, no bairro Benfica. No local que pertencia a um conhecido e era bem pequeno, Marcos ficava sozinho e fazia tudo: atendia os pedidos de delivery, as demandas no local e ainda era responsável pelo caixa. A jornada começava às 18h30 e terminava às 4h30 da manhã.

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Em uma ocasião, relata o coordenador de pré-vestibular da Escola César Cals e professor de Português, Gerlylson Rubens, conhecido como Geh Rubens, ele chegou a encontrar Marcos atendendo no local de madrugada ainda trajando a farda da escola. Isso porque as aulas na unidade escolar iam de 13h às 18h30 e de lá Marcos seguia direto para o trabalho. Algumas vezes, sequer, dava tempo de trocar de roupa.   

“Era totalmente exaustivo. Tinha dias que eu nem sabia o que eu estava fazendo direito. Era uma rotina sem parar. Eu mal dormia”, relembra.  No segundo ano, além de trabalhar à noite e de madrugada e ir para a escola à tarde, ele começou a ser monitor de Matemática, na unidade escolar no turno da manhã. “Tinha que chegar na escola às 8h, ia almoçar, voltava para a aula e às 18h30 já voltava para a hamburgueria”, explica. 

Imagem do Terra de Sabidos

Vontade de ingressar na universidade

O desejo por ingressar no ensino superior existia, mas sobravam dúvidas sobre qual o percurso era preciso fazer para que sendo aluno de escola pública, de baixa renda, e um jovem estudante-trabalhador pudesse realizar esse sonho.

Do final do segundo ano para o terceiro, eu conversei com meu coordenador e ele me incentivou muito. Gostava tanto de Matemática e da TI. E ele sempre me motivou a ir fazer curso, aulas de campo. Toda oportunidade que tinha, ele incentivava que participasse. 
Marcos Antônio do Nascimento Gomes
Universitário

Em meio à rotina exaustiva, Marcos não abria mão de ir para os aulões realizados na escola aos sábados. Na Cesar Cals, as aulas vão de segunda a sábado, e Marcos seguia com a rotina dividida também nesse dia do fim de semana. A segunda-feira era o dia de descanso da hamburgueria. 

No terceiro ano ele tentou pela primeira vez o Enem. Hoje, na escola, a grande maioria dos estudantes, relata o coordenador, já faz o Exame ainda no 1º e no 2º como treineiros. 

Imagem do Terra de Sabidos

A vida na universidade

Hoje, diante da opção que fez, Marcos conta que começa a estudar a partir das 8h e segue até as 11h30. “Depois, faço a rotina de casa e depois vou para o trabalho de 14h20 até as 22 horas”. Ele segue atendendo em estabelecimento de venda de comida, mas agora é menos intenso.  

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Legenda: 1 e 2. Marcos na escola César Cals. 3.coordenador de pré-vestibular da Escola César Cals, Geh Rubens
Foto: Davi Rocha

Sobre o curso, explica ele, é uma área que de tanto gostar, “já tinha um pouco de conhecimento, mas tem coisas novas que eu não sabia”.Como exemplo, fala de conceitos relacionados às tecnologias e às redes sociais.

No começo eu achei uma coisa muito desafiadora e complicada (ingressar no ensino superior). Mas eu queria tentar, mesmo cansado. Eu achava que não ia conseguir por conta das demandas do trabalho e da escola em relação a atividades. Era exaustiva a rotina e eu precisava estar sempre tentando me manter firme para não desistir. 
Marcos Antônio do Nascimento Gomes
Universitário

O coordenador da Escola César Cals, Geh Rubens, destaca que Marcos sempre passou por muitas dificuldades familiares, tendo que enfrentar ainda muito jovem percalços, em geral,  relacionados à vida adulta. “Essa rotina de madrugada, de muito trabalho, claro que comprometia a aprendizagem dele em muitos aspectos. Mas sempre foi um menino que batalhou. Ele tentava assistir todas as aulas e ele conseguiu ir avançando aos poucos.”

Geh reforça que a trajetória escolar de Marcos não é marcada por resultados excepcionais, sobretudo, devido à dura realidade que ele vivenciava que, sem dúvidas, afetou seu desempenho. Mas que o esforço e interesse do aluno em mudar de situação merecem destaque.

Da determinação ele conseguiu alcançar a realização do sonho dele. Na escola ele foi monitor por vários anos. Monitor de informática, com questões que envolviam recursos tecnológicos. Ele sempre teve essa aptidão para área de tecnologia.
Geh Rubens
Coordenador do pré-vestibular da Escola Dr. César Cals

Geh reforça que Marcos tinha “um brilhantismo operacional” e por meio de aconselhamentos pedagógicos, orientações e reforço de conteúdo foi definindo o caminho de formação que desejava percorrer.  

“A história de Marcos pode inspirar muitas pessoas porque não se trata do aluno primeiro lugar. Não se trata do aluno nerd. Trata-se de um estudante comum, que conseguiu se sobressair através do esforço e essa é a realidade da maioria da juventude da escola pública. Não são meninos com altíssima performance, mas são meninos que têm vontade, desejos, determinação. E através dessa determinação conseguiu alcançar os objetivos”, enfatiza o coordenador. 

Imagem do Terra de Sabidos