Ex-aluna da rede pública organiza trilha em ‘cidade sagrada’ do CE para apoiar assentamento rural
Do final de setembro ao começo de outubro, todos os anos, a cidade protegida por São Francisco das Chagas, no sertão do Ceará, é tomada pela multidão de romeiros. Além da certeza da fé, outra convicção povoa o imaginário: Canindé tem vocação ao turismo. Mas, boa parte das crenças é que isso diz respeito somente ao aspecto religioso, indutor histórico de diversas movimentações na sede da cidade.
Porém, a 3km do centro da cidade, em um assentamento rural, outro tipo de turismo toma forma e ganha força. Fruto da atuação de uma “filha da cidade”, a canindeense, egressa da rede pública, Maria José Moura, outros potenciais do município têm sido explorados e resultam em novas certezas: o sertão cearense é também terra de turismo de aventura.
O movimento acontece no assentamento São Francisco, na zona rural da cidade, que abriga cerca de 30 famílias. O território, que há algumas décadas já foi a Fazenda Salgado, com a mobilização dos trabalhadores rurais por reforma agrária foi oficialmente demarcado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2009, contam os residentes.
O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.
É de lá que há cerca de 2 anos parte uma trilha rumo ao Serrote do Salgado, ponto mais elevado dessa área rural permeada pela vegetação sertaneja, de onde é possível ter uma vista panorâmica do município marcado e reconhecido pelos visitantes-devotos.
A ideia de estruturar o percurso já conhecido dos moradores do assentamento para visitação de um público externo e fazer dele uma atrativo no cenário natural veio de Maria José, durante o curso de tecnóloga em Gestão de Turismo pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE), em Canindé, em 2022.
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“Mazé”, como é chamada pela comunidade, tem no assentamento sua referência. É na localidade que os pais agricultores têm “tocado a luta da sobrevivência” e residem há décadas. No local, ela conhece e é conhecida por todos os moradores.
Ao ter acesso à formação relacionada ao turismo e ter a ideia de regressar a esse território com uma proposta de ajuda à comunidade, o primeiro passo foi justamente consultar essa população sobre a viabilidade e a aceitação.
Quando a Mazé veio perguntar se a gente queria, achei muito legal. Quando ela passou essa proposta para a gente, que foi em uma reunião da associação, a gente, claro, criou aquela esperança, uma vontade que aconteça mesmo. Aí a gente fica assim, né? Porque sempre vem umas pessoas que dizem que vai acontecer e acaba que nada acontece. Aí quando começa a ver que está dando certo, cada vez mais a gente vai acreditando e gosta.
Ela é uma das moradoras do assentamento que tem participado do processo e acompanhado a comunidade ganhar visibilidade com a presença dos visitantes que já chegaram ao local advindos da própria cidade mas também de Fortaleza, Itatira, Caridade, Quixeramobim, Quixadá, Itarema, Caucaia e até de outros estados, como o Mato Grosso do Sul.
Na trilha, o público é bem diversificado, relatam. Já percorreram o caminho crianças e até idoso de 60 anos.
Trajetória na rede pública
Mazé, que sempre estudou em escola pública, terminou em 2005 o ensino médio no Colégio Estadual Paulo Sarasate, da rede estadual e localizado na sede de Canindé. Na época, há quase 20 anos, passou em um curso universitário em Fortaleza, mas não teve condições de cursar. Com 16 anos, à época, começou a trabalhar, mas relata que sempre “desejou fazer o nível superior”.
Eu continuei trabalhando, ajudando minha família. Eu sempre continuava engajada. Por exemplo, a questão do IFCE. Eu fui várias vezes na comitiva de alunos para a gente poder trazer uma unidade para o Canindé. A gente ia para a Assembleia Legislativa, fazia abaixo-assinado. Tanto é que na pedra fundamental eu estava presente, antes do IFCE ser construído que foi de 2007 para 2008.
O tempo avançou e Mazé se tornou guarda municipal. Alcançada essa função, ela decidiu, finalmente, tentar ingressar no ensino superior. Fez o Enem de 2018 e entrou em 2019 no curso de Gestão de Turismo, no IFCE, de Canindé.
Em 2021, com a produção do Trabalho de Conclusão de Curso, Mazé decidiu “devolver” ao território de morada do país e seu antigo lar possíveis benefícios.
“Um ano antes de eu fazer TCC eu subi no Serrote e já marquei. Tanto é que no meu TCC tem. Tivemos a parceria de um professor formado em turismo de aventura. E entendi que a área tem potencialidades. As terras aqui são centenárias, tem uma questão com a arquitetura. Então, eu costumo dizer que o Canindé Aventura (projeto) abrange o viés da ecologia, do meio ambiente, do social que é o que está acontecendo, e a da história”, reforça.
Turismo de aventura no Sertão
O potencial existe, garante Mazé, e a ideia do turismo de aventura na trilha do assentamento é conectar o contato com a natureza, a prática de atividades físicas e os atributos da agricultura familiar.
“As pessoas, às vezes, não sabem como é que se faz uma farinha, não sabem onde nasce um milho. Você come um bolo desse de macaxeira e não sabe como é a produção”, aponta ela para mesa farta, coberta de comidas feitas pela própria comunidade no dia em que o Diário do Nordeste visitou o local.
As refeições que podem ser café da manhã ou almoço são feitas pelas mulheres da comunidade e oferecidas em um pacote ao turistas. Quem contacta o Projeto Canindé Aventura escolhe se quer incluir essa possibilidade e paga uma taxa por ela.
Os produtos utilizados têm origem na agricultura familiar. Nas visitas, em algumas ocasiões, as mulheres já ofertaram também para compra cheiro verde, pimenta de cheiro, mamão, ovo caipira, mel de abelha, banha de porco e feijão maduro.
As trilhas acontecem de duas formas: podem ser percursos exclusivos para determinados grupos, o que demanda que o grupo reserve as vagas, ou trilhas abertas que têm ocorrido mensalmente. Em cada evento, o dinheiro apurado pelo projeto é dividido com as mulheres da comunidade e os guias que atuam na atividade. A taxa cobrada na trilha aberta é de R$ 30,00 por pessoa.
“A tendência é que o projeto consiga caminhar com as próprias pernas e avance para não dar só uma ajuda e sim possa fazer um investimento maior junto à comunidade. Como reerguer a casa de farinha, fazer o rapel, estruturar o camping”, torce e projeta o integrante da coordenação da iniciativa e condutor da trilha, Fábio Pinheiro.
A formação universitária, reforça Mazé, subsidiou as concepções aplicadas na execução do projeto. Foram as experiências de cada disciplina que a fizeram amadurecer a proposta e o contato com as pesquisas acadêmicas garantiram um intercâmbio com os relatos desse tipo de práticas em outras cidades brasileiras.
Questionada sobre o porquê voltar o olhar e as ações para a terra que preparou para a vida adulta, ela reafirma: “Os meus pais são agricultores. E eu sempre acompanhei a dificuldade deles de dar o pão de cada dia para a gente. E ele sempre dizia, minha filha estude que só o estudo muda a vida da gente. Eu acredito que a faculdade serve para isso, para despertar o que você pode fazer, despertar o seu potencial e o das outras pessoas. Abre a visão”.
> Para conhecer o projeto:
Basta entrar em contacto pelo Whatsapp do Canindé Aventura: (85) 99256-7438.